domingo, 22 de novembro de 2015

Parem de divulgar mentiras sobre o Islão!

Nos tempos conturbados em que vivemos, com muita histeria, muito medo, muita ignorância e muito maquiavelismo, as redes sociais pululam de informação falsa e enganosa.
O fim do Verão e o Outono deste ano foram particularmente férteis em notícias falsas que procuram denegrir os refugiados sírios: com 5% de Photoshop, 50% de puras mentiras e 0% de contexto, eis como manifestações violentas de muçulmanos radicais alemães em 2011 são apresentadas como manifestações pró-Daesh de refugiados sírios na Alemanha em 2015 ou como um ex-combatente anti-Daesh refugiado na Europa foi apresentado como um combatente do Daesh infiltrado na Europa. E estes são só dois exemplos, de entre dezenas possíveis. (Eu mesmo ilustrei a facilidade com que se poderia “transformar” um heróico voluntário português que lutou ao lados dos Curdos do YPG num membro da horda assassina do pseudo-Califa.)

Mas, nem só de desinformação islamófoba, anti-refugiados e anti-muçulmanos, se faz o nosso tempo. Tão ou mais frequente é a desinformação islamófila. E se aquela deve muito à histeria e ao medo, esta deve não menos a uma certa boa-vontadezinha “flower power” ou a um wishful thinking de Padre Américo do like-and-share. E ambas — desinformação islamófoba e islamófila — são alimentadas pela ignorância de muitos e o maquiavelismo de alguns (porque nem todos podem alegar desconhecimento).

Talvez o exemplo mais claro desta desinformação islamófila seja a tentativa desesperada de apresentar o Islão como uma «religião de paz», quando, como deveria ser notório, o Islão foi, logo desde o seu fundador, uma religião violenta: foi o Islão que inventou o conceito de «Guerra Santa»; as Cruzadas, que os muçulmanos não se cansam de apresentar como raiz de todo o seu ressentimento, foram simplesmente o plágio tardio com que os cristãos responderam.

O expoente máximo desse travestismo pacifista é a suposta citação de um famoso versículo corânico, o 32.º da 5.ª Sura:

Se alguém matar uma pessoa, é como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvar uma vida, é como se ele salvasse toda a humanidade.

Digo «suposta citação», porque uma versão um pouco mais honesta seria:

[...] se alguém matar uma pessoa [...] é como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvar uma vida, é como se ele salvasse toda a humanidade. [...]

Notaram a diferença?
Três reticências, apenas — mas, parafraseando Arquimedes, dêem-me reticências suficientes e ponho Hitler a elogiar os Judeus.

Porque a verdade é que o versículo é sempre “citado” com grandes — e importantíssimas — omissões. Os apologistas islâmicos queixam-se frequentemente de que as passagens violentas do Corão (esgrimidas pelos seus opositores) são citadas removendo o contexto e deturpando, assim, a mensagem. De facto, a apologia da violência está frequentemente lá, sem ou com contexto; já o pacifismo é que só se consegue fabricar à custa de muito corta-e-cose.

Invocar o versículo 32 da Sura 5 para demonstrar que o Islão é uma religião de paz (ou «a religião da paz», como dizem alguns muçulmanos mais enfáticos) é o mesmo que ilustrar o génio literário de José Saramago (e o seu pacifismo, o seu patriotismo e a sua arte poética) com “citações” como «amai-vos uns aos outros», «As armas e os barões assinalados» ou «o poeta é um fingidor».
José Saramago escreveu tais coisas? Sim: estão, respectivamente, nas páginas 43, 68 e 114 de O Ano da Morte de Ricardo Reis, edição de 1995. A questão, claro, é que, apesar de constarem num livro de Saramago, todos (espero) sabemos que ele não é o autor das passagens em causa.

Comecemos por desmontar a tese do suposto pacifismo do versículo corânico.

Sendo menos pródigo em reticências, uma citação mais completa seria:

[...] se alguém matar uma pessoa — que não seja em retaliação de homicídio, ou por espalhar a corrupção pela terra — é como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvar uma vida, é como se ele salvasse toda a humanidade. [...]

Esfumou-se o pacifismo: não só o preceito prevê a possibilidade de se matar alguém como sanção pelo crime de homicídio, como a aplicação da pena de morte é alargada ao convenientemente vago crime de «espalhar a corrupção pela terra». Em que consiste tal ofensa capital? Dependendo do nosso imã, do nosso ciber-guru, do nosso autoproclamado Califa ou do nosso ressentimento doentio, pode ser qualquer coisa — desde desrespeitar o Profeta, abandonar o Islão ou professar outra religião ou nenhuma, passando por cometer adultério ou ser vítima de violação, até jantar no Le Petit Cambodge, assistir a um concerto no Bataclan, passar em frente ao Estádio de França, ir ao mercado em Beirute, dormir num hotel em Bamako: viver, existir.

Mas a contrafacção de um pacifismo corânico que não está lá vai mais longe: não só o preceito não é tão pacífico como no-lo querem vender, como nem sequer é certo que, segundo o Corão, ele se aplique aos muçulmanos.

Porque uma citação ainda mais completa e correcta do versículo seria:

Por causa disso, ordenei aos Filhos de Israel que se alguém matasse uma pessoa — que não fosse em retaliação de homicídio, ou por espalhar a corrupção pela terra — seria como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvasse uma vida, seria como se ele salvasse toda a humanidade. [...]

Exactamente: este preceito teria sido ordenado, no passado, não aos muçulmanos (que no Corão são sempre designados «Crentes»), mas aos «Filhos de Israel», isto é aos Judeus.

De facto, a citação supostamente pacifista não é um original do Corão, embora seja citada actualmente como tal: é uma paráfrase de uma passagem do Talmude (concretamente, do Livro do Sinédrio, 37a), colectânea de comentários rabínicos da tradição judaica. (E o autor do Corão enganou-se: a frase consta do Talmude, não da Tora — a Lei de Moisés — ou sequer de outra parte da Bíblia judaica, pelo que é errado dizer que tal foi ordenado por Deus.)

Pior: a subtil diferença nos tempos verbais («matasse», «seria», «salvasse», e não «matar», «é», «salvar») reforça ainda mais a ideia de que, não só o preceito teria sido transmitido aos Judeus (embora eles nem sempre o cumprissem, falha referida no resto do versículo, que não transcrevi), como, agora que Maomé veio pôr os pontos nos is para os «Crentes» (muçulmanos), tal preceito foi ultrapassado, não se aplicando a eles.

Mas então, que preceito se aplica aos muçulmanos, aos verdadeiros crentes? Não é preciso procurar longe, noutras partes do Corão, caindo uma vez mais no problema do contexto: o versículo seguinte (5:33) dá a resposta imediata:

De facto, a pena para aqueles que lutam contra Alá e o Seu Profeta e tudo fazem para espalhar a corrupção pela terra é não outra do que eles serem abatidos [como o gado, isto é, degolados] ou crucificados, ou as suas mãos e pés serem cortados de lados opostos, ou eles serem expulsos da terra. Tal é a sua desgraça neste mundo; e no outro mundo espera-os um grande tormento.

Suscita-vos algumas imagens recentes?...

Que concluir, então, de tudo isto?

Que, se a ignorância grassa no vulgo, não é crível que tal desconhecimento da totalidade do texto e do seu contexto se verifique nos vários clérigos muçulmanos que, ofendidos na sua dignidade (uma especialidade muçulmana), sacam deste “trunfo” em defesa da sua religião.
Claramente, o que lhes falta em humor e em “poder de encaixe” sobra-lhes em sofisticada ironia: o expoente máximo do suposto «pacifismo islâmico» é um grande saco cheio de vento — a citação incompleta da paráfrase desinformada de um texto judaico. Allahu asghar.

sábado, 21 de novembro de 2015

Por que assumi as cores da França,
mas não as do Líbano ou do Mali

Por que razão é que, na própria noite dos ataques de Paris, espontaneamente, alterei a minha imagem de perfil no Facebook para as cores e o símbolo da França (que ainda mantenho e manterei por tempo indeterminado), mas não tive igual gesto relativamente a, por exemplo, o atentado bombista em Beirute ou a mortífera toma de reféns num hotel em Bamako?

Racismo, preconceito — é do que me tentam convencer algumas publicações partilhadas por amigos e por desconhecidos. Há, parece, mortos de primeira, de segunda e de terceira; há até um «mapa mundi trágico» — dizem-me, apontando um dedo acusador, tentando impor-me um sentimento de culpa ou de vergonha.

Se essa é a intenção, falharam redondamente. Porque a verdade é que um mapa mundi trágico — simplesmente, ao contrário do que os autores daquele pensam, esse mapa mundi é pessoal, não é global: cada pessoa tem o seu próprio mapa mundi trágico (e no meu a Nova Zelândia está a vermelho).

Começo por deixar claro que, ao assumir as cores da França, mais do que solidarizar-me com os mortos e as suas famílias, pretendo solidarizar-me com a França.
Porque, se o atentado na França é uma tragédia de dimensão humana (morreu gente, e não foi pouca), é acima de tudo uma tragédia civilizacional: foi um ataque à ideia de França, ao modo de ser e estar na vida do povo francês (e, por extensão, do Ocidente), foi um ataque a uma certa ideia de sociedade aberta, liberal e laica.
Já um ataque ao Líbano ou ao Mali, o que significa para mim, em termos identitários? Nada, admitamo-lo sem medo. Vistos do ponto onde me situo (e sem esquecer as implicações geopolíticas), tais ataques são quase exclusivamente tragédias humanas. E essas — na França, no Líbano ou no Mali —, tendo vitimado (tanto quanto sei) pessoas que desconheço, são-me sempre algo abstractas, não cravam tão fundo as unhas na pele do sentimento.

Dito de outra maneira, a razão pela qual faço “luto” pelos atentados na França, mas não pelos no Líbano ou no Mali, é a mesma pela qual temos direito a licença por luto se nos morrer um irmão emigrado há anos na Austrália, mas não temos igual direito quando morre o vizinho do quinto esquerdo. Ou a razão pela qual vamos ao funeral do nosso ex-professor primário, mas não ao do ex-professor da escola de (digamos) Trigaches, terra cujo quase nada que sabemos se deve à Wikipédia. O que não quer dizer que o ex-professor de Trigaches não mereça um belo funeral, com grande assistência e sentidas manifestações de pesar — da parte de quem o conheceu e dele se sentia próximo. Idem, mutatis mutandis, para o Líbano e o Mali.

Países há muitos, uns mais próximos geograficamente, outros mais distantes — e, mais importante ainda, uns mais próximos culturalmente, sociologicamente, outros mais distantes (tão distantes, alguns, como se de outra galáxia se tratasse).
Há países que nos são irmãos, há outros que são apenas os vizinhos do quinto esquerdo, e há os que são de Trigaches, professores ou não.
Fingir que isso não é assim, assumir as cores do Líbano ou do Mali só para aparentar uma identificação que não se sente, que não se pode realmente sentir, é hipocrisia. Na melhor das hipóteses, é reflexo sem valor, como o da beata que vai aos velórios de desconhecidos por desfastio.

sábado, 7 de novembro de 2015

Malcolm Gladwell: «Párias, Símbolos e Pioneiros» (palestra)

Malcolm Gladwell, colaborador permanente da revista The New Yorker, deu em 2013 uma interessantíssima (e longa...) palestra sobre uma das formas mais surpreendentes como as classes dominantes garantem a manutenção da sua condição de privilégio.

Gladwell centrou-se particularmente na discriminação das mulheres — na política, na arte, na vida em sociedade em geral —, discriminação que por vezes se mantém, mesmo quando aparentemente a porta se abriu para elas...
(Outro tema importante é o do anti-semitismo.)

O argumento é ilustrado com dois exemplos paradigmáticos: o da pintora inglesa Elizabeth Thompson (1846–1933) e da ex-primeira-ministra australiana (2010–2013), Julia Gillard.

Esta palestra fascinou-me desde que a vi pela primeira vez. Há 2 meses ganhei coragem (e aprendi o procedimento técnico) para traduzi-la e legendá-la.

Uma outra palestra, do mesmo autor e do mesmo ano, centra-se na história de uma das mais importantes sufragistas americanas, Alva Vanderbilt (também conhecida como Alva Belmont) e das razões que levaram esta insuspeita mulher — milionária e privilegiada — a lutar contra o sistema estabelecido.

Infelizmente, quando comecei o longo processo de tradução e legendagem (levou-me 50 dias...), não sabia que havia quase a estrear um filme sobre o movimento sufragista.
Por isso, escolhi começar pela palestra sobre a pintora. Talvez daqui a 50 dias tenha o outro, sobre a sufragista, pronto...