quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Vendas por telefone

[versão resumida, a bem da paciência dos leitores]

— Boa noite, fala Fulana de Tal, do Barclays Card. Estou a falar com o Sr. Pedro Carvalho?

— Não, aqui não é Pedro Carvalho. É engano.

— Mas o senhor conhece o Sr. Pedro Carvalho?

— Até posso conhecer algum Pedro Carvalho, porque tanto Pedro como Carvalho são nomes comuns, mas se a senhora deseja falar com um Pedro Carvalho, por que razão ligaria para o meu telefone? Sugiro que se informe quanto ao número de telefone dessa pessoa e tente de novo.

— Não, eu desejava falar com o proprietário deste número de telefone. Tenho o prazer de estar a falar com...?

— O meu nome não interessa, porque não sou Pedro Carvalho, tenho o jantar no prato e a arrefecer e, além do mais, não estou interessado na sua proposta.

— Como é que pode dizer isso, se não sabe do que se trata?

— A senhora já me disse que é do Barclays Card: não estou interessado.

— O senhor já foi cliente Barclays Card?

— Não, nunca.

— Então como sabe que não está interessado em algo que desconhece?

— Olhe, eu também nunca experimentei sexo homossexual, e tenho bastante certeza de que não estou interessado...

— ...

— Não estou a dizer que ser cliente Barclays Card é o mesmo que ser enrabado, mas acho que percebe a minha ideia...

— Ainda assim...

— Desculpe, como lhe disse, tenho o jantar a arrefecer no prato. E mesmo que não tivesse: não estou interessado.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

«António Lobo Antunes. Ascensão e queda do ‘enfant terrible’ da literatura portuguesa»

Não me chateia nada que a reportagem do Observador com o título acima possa regozijar-se com a “queda” de Lobo Antunes. É apenas ridículo que, apesar de ter em si mesma, e com certo mérito jornalístico, suficientes elementos para perceber que passar de 100 mil exemplares vendidos para poucos milhares não é uma “queda” literária (nem o é aos olhos dos leitores), a reportagem não deixe de insinuar esse sabor de derrota (desde logo no título).
A única coisa estranha em relação a Lobo Antunes era precisamente a venda de milhares de exemplares. Alguém que viva neste país, que saia à sua rua neste país e que conheça os seus conterrâneos terá em algum momento achado possível haver em Portugal dezenas de milhares de pessoas a ler Lobo Antunes?
É certo que o próprio escritor, que neste particular do ego se aproximou muitas vezes do inefável Rodrigues dos Santos, acreditou ou pareceu acreditar nessa possibilidade de ter um estádio-da-luz-com-terceiro-anel a lê-lo. Mas não, não há nem nunca houve em Portugal essa multidão furiosamente interessada em ler Lobo Antunes — nem, de resto, em ler regularmente seja o que for de literatura (ou ensaio ou história ou o que quer que não seja lixo).
Por outro lado, percebo as saudades de um tempo em que escritores como Lobo Antunes podiam ser best-sellers em Portugal. Isso impunha um certo respeito, balizava as coisas, ajudava a manter a bicheza literateira à distância, higienizava o ambiente. Hoje, a literatura de cordel — muita dela em regime de franchising, como a ancestral —, tomou conta do mercado e da sociedade como nunca na História — mas perdeu os velhos, tradicionais e sobretudo justos, adequados, complexos de inferioridade. Também porque já ninguém tem vergonha de se confessar leitor-não-praticante ou mesmo acérrimo analfabeto. E esta "emancipação" popular não é um progresso. Nem democrático nem de espécie alguma.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Abduzido pela música

A música, como a literatura, transporta-nos. É um velho cliché e, como tantos velhos clichés, uma verdade. Mas em alguns momentos da minha vida a música foi para mim menos Ambrósio e mais Mr. Scott, não tanto por o meu imaginário permanecer intergaláctico mas porque a deslocação promovida pela música era do género teletransporte, sugava-me a alma e materializava-a através de um feixe numa realidade paralela. Só assim se compreende, por exemplo, que certa noite na alta adolescência eu subisse a rua e em vez de torcer o nariz ao rádio que a Maria da Luz sintonizara em volume de arraial no passeio desse por mim a dançar a “Billie Jean”, do Michael Jackson. É certo que tinha andado a tentar aprender a linha de baixo da canção, mas geralmente mantinha na intimidade esse tipo de desvio de personalidade. Era Verão e havia possivelmente lua cheia, mas não me lembro de nenhuma visão que quase me parasse o coração (caso contrário teria dançado o “Thriller”). Aquilo era abdução pura, um metafísico tabefe gaulês que de mim só deixava as sandálias em modo moonwalk no passeio. Era eu por interposta pop a convidar o Álvaro de Campos sensacionista que havia em mim a calçar os meus sapatos (sim, felizmente também me acontecia a ouvir Depeche Mode, mesmo antes de eles terem gravado a canção). Depois a música acabava — depressa demais, como sempre acontece com a pop/rock (que saudades tinha do Barroco) — e lá ficava eu aturdido a sacudir o pó da roupa como se tivesse acabado de fazer a Route 66 ou de acompanhar Bento de Góis na primeira viagem europeia terrestre da Índia para a China (e toda a gente sabe como ficamos cheios de pó se vamos a pé da Índia para a China). 

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

João Miguel Tavares segrega pessoas de estatura mediana

Aborrecido com o hábito de ainda se confundir a direita com os ricos e a esquerda com os pobres (a quem ocorre tal coisa?), João Miguel Tavares resolveu introduzir um novo «eixo político» para separar as águas de forma mais democrática, digamos. Esse novo eixo dividiria o espectro político em «alto/baixo». Ouçamo-lo: 
«Neste novo “alto” poderíamos incluir tanto a habitual casta económica e política, como os detentores de privilégios corporativos, os burocratas que dificultam a livre iniciativa ou os especialistas na arte de fugir aos impostos; enquanto no novo “baixo” poderíamos colocar não só os pobres, mas também os reformados que se sentem espoliados, os jovens que nunca conseguiram um emprego, e todos aqueles que vêem a sua ascensão social dificultada pelas mais variadas redes de interesses que dominam os estados contemporâneos.»

Ora, a não ser que JMT reconheça que todas as pessoas honestas e boas são pobres (o que se diria uma surpresa na sua mundividência), esta nova divisão acrescenta a um novo maniqueísmo uma omissão ou um estigma. Um tipo que mantenha um emprego conseguido por mérito e não passe fome ou não existe no Portugal tavaresco ou é detentor de um privilégio corporativo, um burocrata que dificulta a livre iniciativa, enfim, um especialista na arte de fugir aos impostos. Acreditando que JMT não se vê a si mesmo como uma destas pessoas, temos de concluir que faz parte da habitual casta económica e política. Ou então é um pobre, já que não parece um dos reformados que se sentem espoliados nem um dos jovens que nunca conseguiram um emprego. A não ser, claro, que Tavares se sinta como um daqueles que vêem a sua ascensão social dificultada pelas mais variadas redes de interesses que dominam os estados contemporâneos e aí está tudo explicado, incluindo a sua divertida proposta taxonómica.

O Brecht dos bons observadores

Observador é uma bela ideia na imprensa portuguesa: junta num mesmo antro uma quantidade jeitosa de situacionistas. Torna-se mais fácil evitar a seita quando sabemos onde ela se acoita e é também mais simples mantermo-nos actualizados (basta um clique) quando, enquanto verdadeiros democratas, procuramos a nossa dose higiénica de contraditório. (Na verdade, não é bem isso que ali se procura, não vale a pena sermos generosos — nem escondermos a nossa compulsão pornógrafa.)

Numa das produções recentes daquela folha online lemos de um tal Mário Amorim Lopes: 
«Quando financiamos uma peça de Brecht de um qualquer encenador que jura que a cultura deve ser financiada por todos nós, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. E sacrificar a vida de uma criança é um preço demasiado elevado a pagar.»*

O parágrafo é todo um programa — e de uma subtileza antológica. Imagine-se que o rapaz escolhia outro dramaturgo; por exemplo, um daqueles gregos um pouco menos odiados pela direita Observadora: Sófocles, Eurípedes. Ou o inglês Shakespeare. O sofisma teria um impacto diferente. Aqui e ali, um ou outro velho conservador torceria a sua penca, sentado em frente às prateleiras de bom carvalho da biblioteca do solar. Um clássico grego é um clássico, raios, e Stratford-upon-Avon não é assim tão longe de Oxford. Há sempre uma criança que se pode sacrificar para salvar os clássicos, como sabia Churchill. Com dramaturgo de outra família literária, o voluntarismo do neófito seria remetido para a gaveta das inanidades próprias da juventude. Mas ele soube jogar em terreno seguro e lá colheu as suas palmaditas nas costas.

Jogou aliás tão pelo seguro que usou para sofismar esse democraticamente odiado universo da performance teatral. Imagine-se que ele tinha dito, por exemplo, quando financiamos uma apresentação da 9.ª Sinfonia de um qualquer maestro que jura que Beethoven é património da humanidade e a sua interpretação deve ser financiada por todos nós, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vidaHaveria por certo chatice da próxima vez que o avô descesse à capital para a sua ida sazonal ao S. Carlos.
Ou imagine-se que Amorim se atrevia ainda mais, num acto de verdadeira rebeldia juvenil (hipótese meramente académica, já se sabe), e saía para outros campos semânticos: quando financiamos uma empresa que paga impostos na Holanda, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. Ou, já num assomo de loucura: quando financiamos pornograficamente prémios a gestores, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. E sacrificar a vida de uma criança para enriquecer uma classe não raro incompetente e criminosa que se julga incensada e merecedora de todo o dinheiro que nega aos outros é um preço demasiado elevado a pagar.

Mas não. Quem escreve no Observador não se atreve a boutades divertidas como estas. Os bons conservadores preferem piadas onde se bate sempre no ceguinho do Brecht (aliás felizmente já tão pouco habitual nos teatros quanto decerto o próprio Amorim Lopes).


*A prosa tem um contexto alegadamente racional que pode ser livremente aferido aqui: http://observador.pt/opiniao/quanto-vale-uma-vida/

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Está explicado!

Explicação do meu ocasional companheiro de viagem (homem dos seus sessenta anos) para o facto de a Suíça ser verdejante:

«As montanhas estão cheias de árvores, que puxam a chuva. Aquilo come o bicho da atmosfera (sic) e é por isso que é tudo verde e sem poluição.»