["Gravity of Center", Rubberbandance: http://vimeo.com/30708149]
Gosto de música, de pintura, de cinema, de dança, de literatura, de teatro, e gosto de tudo isto com um eclectismo bem pronunciado, que em certos momentos — na presença de certa fidalguia artística menos condescendente — se pode tornar embaraçoso. Mas, de todas as artes, a que mais me arrebata é a dança. Não a dança clássica ou de salão (aqui o eclectismo retrai-se). Refiro-me à dança contemporânea.
Não sou um indefectível da arte contemporânea. Nem sequer da arte moderna. Ou modernista. Há movimentos ou tendências do século XX que deixaram sementes e eu dispenso fora do seu contexto histórico e fora da história das ideias, ou das atitudes. Acresce que o verniz de leituras, viagens, idas a museus e teatros não sepultou de todo o rapazola que no fim a província manteve enredado: por vezes dou por mim a olhar para algumas obras como um tradicional boi a olhar para um palácio. (Porém, um boi que não investe.)
Mas sou certamente alguém que se aborrece com águas estagnadas, com o gosto tradicional ou massificado, com a ingenuidade popular, com a pomposidade e a arte mecânica, imitativa, evocativa, desinspirada, insensível, medíocre, atrofiante.
Do ballet clássico, por exemplo, interessa-me apenas a música. Se tenho o azar de entrar numa sala onde se dança uma dessas peças, fecho os olhos e passo um bom bocado — que é ainda melhor se há orquestra ao vivo.
De resto, por alguma razão o ballet clássico se tornou “popular”, enchendo coliseus, e virou fetiche de elementos de todas as classes (alta, média e baixa), que acorrem a ele com entusiasmo e casacos de pele como a um ritual, a uma festividade religiosa, a uma vernissage, na sua ânsia de emular nos hábitos e na pose fútil a elite aristocrata há muito destronada.
A dança contemporânea — expressão aliás vaga, equívoca, designando desde peças efectivamente de dança a performances; de teatro físico ou de objectos a produções multidisciplinares e transdisciplinares; de momentos de expressão corporal a happenings —, a dança contemporânea, dizia, aquela de que eu mais gosto, confunde-se com algum teatro e raramente deixa de lado ou menoriza a música, ou uma criativa sonoplastia. Está consciente da história da dança e das suas múltiplas expressões — clássicas ou primitivas, de salão ou de rua, urbanas ou folclóricas — e não desdenha cumplicidades com a palavra e a atitude teatral. De certo modo, em muitos casos, é aquilo a que eu chamaria a ópera dos dias de hoje: um espectáculo global expressionista, que se absorve mais com os sentidos do que com a razão. Como se lia num título do Público, «uma dança que não é para perceber, é para sentir».
N’Os Idiotas, a minha «novela picaresca» (assim se referiu ao livrinho um ilustre leitor), uma personagem definia a dança contemporânea da seguinte maneira… picaresca: «um reboliço caótico onde, espantosamente, era possível ainda assim perceber disciplina, padrão, coreografia. Aquelas pessoas no palco assemelhavam-se a vítimas de trombose, doentes epilépticos, loucos saídos do hospital psiquiátrico, mas no meio do frenesim, dos transes, das convulsões e das quedas percebia-se que exerciam autoridade sobre os seus membros. Pareciam desajeitadas porque tinham decidido ser desajeitadas. Caíam, mas levantavam-se por si mesmas. Derrubavam objectos no palco porque estava no guião derrubar objectos no palco. Eram, enfim, donas do seu corpo e da sua vontade.» E também fazia um paralelismo com o ballet: «[…] o que distinguia a dança contemporânea da clássica era o que distinguia o caos da ordem. O ballet clássico tentava uma tal harmonia e uma tal perfeição que se tornava artificial e enfadonho. A dança contemporânea parecia mais ligada ao erro e à vida quotidiana dos corpos, mesmo que na maior parte das vezes se tratasse de corpos atormentados», interpretados por gente com um «perfil fibroso e elástico».
No texto do Público referido atrás, um coreógrafo fala da sua arte como uma coisa «abstracta» e «poética» e eu acho que ele tem razão. É de poesia que se trata, quando as peças são boas e nos enfeitiçam. Talvez não as possamos explicar, ou o que delas entendemos nem sequer se aproxime das intenções do coreógrafo/encenador (que quando é avisado não manifesta intenções, não muito específicas, pelo menos; não escreve sinopses detalhadas do indescritível). Perante a dança contemporânea julgo que nos devemos simplesmente sentar, disponíveis para sermos estimulados, desafiados através dos olhos, dos ouvidos e das entranhas; disponíveis para termos a epiderme da alma (passe a imagem pateta) titilada, acariciada, massajada. Em muitos casos, nos melhores, é também a nossa inteligência que, além de respeitada, é sugestionada, a nossa imaginação expandida.
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