Parque de estacionamento, à espera que o portão se abra. O vizinho chega ao fundo da rampa e o morador recua. O vizinho cruza com o seu automóvel a entrada assim franqueada, passa ao lado do Chevrolet-dos-tesos do morador e nem um gesto de gratidão, nem um meio sorriso de reconhecimento, nem um aceno de cabeça que o faça descer do pedestal de repulsiva sobranceria a que ascendeu. Também costuma, na sua impaciência de ridículo aristocrata, subir a rampa ao mesmo tempo que as pessoas a descem a pé, obrigando-as a colar-se à parede.
O morador recorda-se de o ver no parque, «um advogado e um pastor alemão com o mesmo ar de poucos amigos, ambos sem açaimo». Felizmente que neste jogging arrastado em dia de alma de chumbo são outros os bichos que passeiam. Alguém traz um cão vivaço e curioso. Trocam olhares cúmplices a propósito do bicho e abrem-se sem resistência os sorrisos. Dois perfeitos estranhos cruzam-se e desnudam a alma numa partilha espontânea, despretensiosa, franca, uma repentina felicidade a propósito de nada, um nada que a carranca do vizinho obviamente desconhece e que ao morador faz esquecer a carranca do vizinho pelo resto do dia. Até à hora ritual em que os demónios são convocados para exorcismo. Xô!
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