Álvaro Santos Pereira saiu do governo e os bloggers de direita correram a escrever-lhe a hagiografia. Um exemplo paradigmático é o de Henrique Raposo:
«A atmosfera que rodeou Álvaro Santos Pereira merecia um estudo de caso. De forma inconsciente, o ex-ministro conseguiu a proeza de atrair contra si um conjunto de vícios que caracterizam bem as elites da ditosa pátria. Comecemos pelo mais evidente: a snobeira. Quando pediu para ser tratado por “Álvaro”, este homem cometeu o maior dos pecados no país dos doutores, retirou a importância aos cargos e títulos para grande irritação da porcelana que exige ser tratada por “V. Exa.” Pior: ao cheirar esta inocência tão americana, os cínicos profissionais de Lisboa atacaram como uma alcateia de hienas gozonas. Que ganda totó, pá. Nestas cabeças provincianas que se julgam moderninhas, Álvaro não procurou introduzir em Portugal um trato pessoal simples e até igualitário no sentido americano. Nada disso. Ele apenas mostrou que é um totó, um fraco, um saco de boxe. E assim foi: uma multidão de palhaços pomposos passou dois anos a socar o totó que veio do Canadá, esse sítio atrasado onde as pessoas, vejam bem, só são tratadas pelo nome próprio.»
Tudo isto é uma falácia, claro.
Pedir para ser tratado por «Álvaro» não foi um acto de inocência de um homem vindo de uma terra menos centrada em títulos, mais igualitária. Querer ser o «Álvaro» fora do seu círculo íntimo foi, isso sim, um acto de demagogia: Álvaro Santos Pereira tentou fingir ser mais um dos nossos amigos, talvez para atrair mais simpatias; saiu-lhe mal a jogada.
Até porque é falso que no Canadá os jornalistas tratem os detentores de cargos públicos com a familiaridade do primeiro nome. Nesta conferência de imprensa, o ministro canadiano das Finanças é referido como «Jim Flaherty» ou «Mr. Flaherty», e o até então Governador do Banco do Canadá é referido como «Mark Carney», «Mr. Carney» ou «Governor Carney» (o mais frequente).
(O ministro trata o ex-governador uma ou outra vez por «Mark», mas apenas no contexto mais intimista de uma resposta, em que expressa a pena sentida por vê-lo partir; os jornalistas nunca os tratam tão familiarmente.)
Outra vertente da heroicização do ex-ministro Santos Pereira é apresentá-lo como vítima sacrificial de um sistema político que não tolera estranhos. É esta a linha, por exemplo, de João Quaresma («O sistema não tolera os outsiders.»). Também isto é uma falácia. Não que o sistema político nacional não seja extremamente desconfiado dos independentes, a quem trata por vezes com inclemência. Tudo isso é verdade. Mas essa desconfiança para com os não-boys não explica totalmente a falta de poder de Álvaro Santos Pereira no governo.
Vítor Gaspar era bem mais outsider do que Álvaro Santos Pereira: tal como este, o ex-ministro das Finanças estava fora do sistema partidário. Mas, ao contrário do ex-ministro da Economia, Vítor Gaspar fez questão de por mais de uma vez deixar claro o seu afastamento — e até mesmo o seu desprezo — relativamente aos militantes do PSD. E se Álvaro Santos Pereira fora ainda outsider num outro sentido (ex-emigrante no Canadá, condição que o ex-ministro não se coibiu de usar em demagógicos exercícios de autovitimização, imputando a outros sentimentos discriminatórios que não existiam, e que ele sabia não existirem), Vítor Gaspar foi outsider em todos os sentidos: não só se viu que as suas teorias económicas não funcionam neste mundo, como a lentidão demonstrada no domínio, não apenas da língua portuguesa, mas verdadeiramente da humana forma de comunicação oral, sustentam a hipótese de ser ele um verdadeiro alien, um extraterrestre. (As semelhanças com o E.T. de Steven Spielberg eram, de resto, evidentes — se refreei até agora a comparação foi por respeito à adorável personagem cinematográfica.)
Apesar disto tudo, Vítor Gaspar era o homem mais poderoso do governo. Ao contrário de Álvaro Santos Pereira, que foi encostado ao um canto e finalmente demitido, Vítor Gaspar mandou em tudo e saiu quando ele mesmo decidiu, deixando os demais como umas baratas tontas, sem saberem o que fazer.
Álvaro Santos Pereira foi um outsider desprovido de poder. Mas a sua falta de poder não foi promovida pelos insiders, mas por um outsider ainda maior, que o relegou à insignificância. Foi esta percepção de que Santos Pereira não mandava nada, e não o seu pedido de um tratamento familiar, que estimulou os críticos (incluindo jornalistas) a saltarem-lhe à jugular. Como na selva, em política as fraquezas expostas são rapidamente detectadas e exploradas pelos predadores.
Ilustração: wehavekaosinthegarden.wordpress.com
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