sexta-feira, 16 de agosto de 2013

15 de Agosto do ano em que Portugal saiu da recessão
(ou notas sobre A Piada Infinita)

Depois de por três vezes tergiversar (aqui, aqui e aqui) sobre A Piada Infinita, de David Foster Wallace, esperar-se-ia que agora dissesse alguma coisa sobre o livro. Bem, eu esperaria.

Lido no Verão e em férias, os problemas de pulsos e as ameaças à cana do nariz são bastante minimizados. Logo, estamos disponíveis para voltarmos aos prazeres infinitos (lá está) da adolescência. A Piada Infinita (API) tem um pouco de Júlio Verne e um pouco de Tarantino. O espírito do primeiro não está tanto na obra em si, mas na mesma sensação algo transgressora de termos, paradoxalmente, legais, autorizadas e estimuladas tardes intermináveis de ócio ao nosso dispor. Um livro como este ressuma o seu próprio respeito, tanto pelo volume como pela fama: quem se dedica a uma obra assim tem de ser admirado e deixado em paz no seu labor solitário e na sua dedicação metafísica. E a gente ri puberemente cá por dentro como se nos estivessem a dizer que Jules Verne é bom para o nosso desenvolvimento e sempre é melhor do que andar a jogar à bola com a canalhada vadia1.
Na verdade, embora tratados com reverência2 por transportarmos um volume destes, e este volume em particular, cá por dentro estamos a rebentar de prazer pueril, porque API é um livro para nerds, a sua inteligência, o seu carácter cerebral, intelectual, a sua complexidade enciclopédica estão orientados para o mesmo tipo de emoções que sente um adulto que recusa amadurecer e ainda alimenta a esperança de ser raptado por alienígenas. Ouçam, não lemos este tratado sobre a América e sobre a sociedade contemporânea com severidade filosófica ou académica, mas a rebentar de gozo e com a ironia traquinas de diabretes num panteão luciferino. Se um livro costuma fornecer a suave luz coada com que observamos o mundo vil dos humanos, um livro desta espessura (agora falo metaforicamente) é o filtro por excelência.
Acresce que lemos partes de API como a mesma incredulidade divertida e sentindo o mesmo desafio infantil com que abordámos As 20.000 Léguas Submarinas: o tio Júlio não ia parar nunca de nomear e descrever espécies oceânicas? Peixes? Quantas mais páginas ia ele continuar naquilo e quantas resistiríamos nós sem passar à frente? Para compreender a analogia, troque-se aqui a fauna atlântica por um catálogo de indústria farmacêutica legal e ilegal mas mantenha-se a mesma aderência assassina e apaixonada do leitor a uma obra literária.
E depois Tarantino, outro indivíduo adulto apenas no BI. A Piada Infinita é um compêndio de malformações (de corpo e carácter) resultantes do abuso de substâncias legais e ilegais e do abuso que é tentar viver nos dias que correm3. Tal como Tarantino, DFW diverte-se a fazer desfilar personagens de um circo de horrores, diverte-se a compor uma montra de freaks, e diverte-se a arranjar deixas e cenas e histórias para eles com o mesmo entusiasmo que o Quentin põe nos seus filmes marados. Talvez a grande diferença seja que Tarantino se descontrola e fica fascinado4 a ver o sangue a correr e Wallace talvez nos forneça a composição química desse sangue5.


NOTAS:
1 Bem, hoje a maioria dos pais não pensa assim, eles mesmos malformados e desejosos de ter uma caixa registadora CR7 em casa.
2 Não somos olhados com reverência, isto é uma liberdade literária; poética, mesmo. Somos é olhados com um certo nojo, com a condescendência que a aldeia dedica ao tolo (quando se permite dedicar-lhe tal coisa), com a jocosidade que a comunidade atira a um casal gay que passa de mão dada pela rua.
3 O mundo não mudou assim tanto de 1996 para hoje.
4 Deixando a câmara ligada.
5 Não necessariamente na secção reservada às notasi.
i A importância das notas em API não é reflectida por esta observação tautológica e pretensamente engraçadinha; o mesmo não se pode dizer sobre o quão é ridícula a nossa resistência ao ímpeto copycat depois de ler a obra, aqui total e vergonhosamente exposta.

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