A propósito do relatório do FMI, o agora menos moderado Pedro Lomba conclui o seu artigo no Público com uma evidência: «…este Estado tem de mudar. Se não mudar, implode.» Faltou-lhe foi acrescentar que, não implodindo, há alguém que vai tratar de o fazer explodir. Para todos os efeitos o Estado português será demolido. Resta saber se pelos seus próprios vícios se por alguém ter interesse nisso. Talvez nunca o venhamos a saber, tal a mistificação e o sucesso do discurso da austeridade.
Em muitos aspectos, o Estado português não merece que o defendamos. Os próprios portugueses tornaram a sua defesa uma tarefa um pouco suja. Até certo ponto, pode-se dizer que, como país, temos o que merecemos.
Durante décadas, a sociedade portuguesa foi cúmplice do nepotismo, da cunha, dos favores, da troca de empregos por um punhado de votos, da corrupção, do caciquismo, do despesismo, do oportunismo, do chico-espertismo e de uma boa dúzia mais de ismos perniciosos. Os portugueses pugnaram sempre por eleger os políticos que os tratavam como crianças ou imbecis. Era esta a sua opção firme. O tipo que mais banha-da-cobra vendesse era o que levava os votos. Para o eleitorado, as boas ou más medidas políticas não eram as que tinham o bom governo do país como objectivo ou falhavam nisso — eram as que iam ou não ao encontro das mais altas expectativas do português, geralmente em domínios espúrios. E as medidas não dependiam do PIB ou duma qualquer estratégia governativa. Dependiam da boa ou má vontade do líder; do seu bom ou mau carácter; do amor ou do ódio que este tinha aos portugueses. Se um líder propunha apertos de cinto ou moderação de despesas públicas, não era alguém sensato a tentar ter mão na economia — era um malvado que só nos queria prejudicar. Se, pelo contrário, propunha baixar os impostos e investimentos a rodos, não era um irresponsável ou um lunático — era um grande político.
Não admira que em plena crise haja quem pense que o Governo é mau simplesmente porque corta salários e aumenta impostos, em vez de mandar imprimir mais dinheiro. O Governo é de facto mau, mas não nesta acepção infantil, de vilão, de figura cruel e caprichosa de desenhos animados. Muitos portugueses, se perguntados sobre o que acham do Governo, dirão «é mau!» com a clarividência, o tom, a expressão, a lagrimita e o polegar na boca de uma ressentida criança de seis anos.
Paradoxalmente, os políticos foram sempre tidos numa péssima conta pelos portugueses. Ladrões, oportunistas, mentirosos, gente sem escrúpulos nem interesse pelo bem comum. Estavam lá, no poder, apenas para se servirem. Depois, eleição após eleição, estes ladrões angariavam a maioria dos votos. É que, nas pausas de serem crianças, no meio da sua esquizofrenia, os portugueses sabiam que os políticos não eram diferentes deles próprios. Eram seus iguais. Tinham saído do seu seio. Que cidadão não aproveitava ou traficava uma cunha, não fazia ou pedia o seu favorzito? Que cidadão não enganava o fisco, se pudesse? Que cidadão não encarava o Estado como uma entidade opressora ou um tesouro a saquear, se tivesse a oportunidade? A má opinião sobre a classe política era apenas o exercício quotidiano da hipocrisia, a receita a horas certas para recalcar os próprios defeitos.
O Estado desbaratou os fundos europeus. E quantas empresas e cidadãos o não fizeram? Quantas empresas e cidadãos não usaram o crédito e os incentivos financeiros como meio para obter brindes de vaidade em vez de melhorias na produção? Quantos portugueses não frequentaram sonambulamente cursos de formação apenas pelo dinheirito ao fim do mês enquanto aquilo durava? Quando o Estado desbaratou fundos não o fez, aliás, para agradar ao portuguesinho na sua necessidade de ornamento, de festarola? (Ou de lucro fácil para alguns…) Quantos portugueses pensaram que os estádios do Euro eram uma insanidade? Quantos portugueses não julgaram os presidentes de câmara pela obra feita, mesmo que essa obra fosse frequentemente inútil e desmedida?
Muitos sabiam, muitos diziam que ainda um dia haveríamos de pagar. Esse dia é hoje.
Mas se tudo o que disse atrás é verdade, nada autoriza o Governo a solicitar ou aceitar relatórios conducentes à explosão do país. Uma coisa é mudar o estado das coisas, outra é acabar com o Estado. É que, paradoxalmente, o Estado português melhorou e muito nos últimos vinte anos. Em muitas áreas tornou-se mais eficaz, mais presente no território, mais próximo do cidadão. Descentralizou-se e melhorou, na saúde, na educação, na cultura. Diminuiu a pobreza. Protegeu. Só quem não tem memória ignorará como se vivia melhor em 2010 do que em 1980.
Claro que se pode dizer que o dinheiro da Europa foi tanto que deu para desbaratar e fazer boas coisas. Deu para as grandes negociatas e para as boas obras. Ou, se quiserem, que o endividamento foi tanto que permitiu dar crédito e lucros milionários aos barões dos negócios e umas belas férias ao cidadão anónimo.
O Estado precisaria então de ser reformado? Certamente. Era preciso eliminar a corrupção, o despesismo, o tráfico de favores, o saque, a cultura de indolência e de irresponsabilidade. É isto que o Governo está a tentar fazer? Nem em sonhos. Nada de verdadeiramente estrutural está a ser mudado na sociedade portuguesa para este fim. Desde logo porque o Governo é demasiado representativo do que há de podre na sociedade portuguesa. A inefável dupla Dupont e Dupond, ou Passos & Relvas, não mexerá, não saberia ou quereria mexer uma palha nesse domínio. Tirando umas generalidades — como eliminar freguesias e acabar a eito com empresas municipais ou fundações, que se convencionou serem todas antros de compadrio ou esbanjamento e por isso dão para fingir que se combate esses males — os homens não querem ir ao cerne das questões. Preferem derrubar a floresta a ter de identificar as árvores apodrecidas e lidar com elas.
Tudo o que se está a tentar fazer em Portugal é avançar com bulldozers, terraplanar sem observar o território. Um governo que põe capacete e se senta aos comandos duma retroescavadora pode parecer aos olhos duma qualquer troika ou duns falcões estrangeiros um Governo laborioso, cheio de energia e vontade de começar de novo. Mas na verdade o Governo é uma espécie de homem do fraque, ocupado apenas em cobranças coercivas à classe média. Decidiu-se que há uma factura a pagar já, e o Governo encarregar-se-á disso. Sem argumentar. Sem pedir tempo. Sem ligar às baixas. Fingindo que a Grécia é longe.
É que o Governo também tem uma costelita ideológica. Identifica-se com um certo liberalismo avançado e a alta finança. A sua fidelidade não vai para o povo português — vai para a doutrina e para os gurus internacionais. O Governo não se preocupa se ninguém consegue ver a economia a criar empregos nos próximos anos. Não o preocupa o desemprego — preocupa-o o custo do trabalho. O seu ponto de vista é, por defeito de formação, o da empresa, da grande empresa — exclui o do trabalhador. As empresas têm de dar lucros, eis o ponto. O problema do desemprego resolve-se com fé numa página de Excel (em papel Bíblia claro) ou diminuído o período de vigência do fundo de desemprego. É que o problema do desemprego só existe enquanto isso significar encargos para o Estado. Se a economia criar empregos, diminui-se a despesa do Estado. Se as pessoas forem perdendo o direito ao fundo de desemprego, diminui a despesa do Estado. Diminuir a despesa do Estado é tudo o que importa. E isso é cumprido de duas maneiras: em resultando a estratégia (mais conhecida por wishfull thinking) do ministro das finanças ou pela via da demolição das funções do Estado.
Lá fora são solidários com este objectivo. Muito solidários, mesmo. O FMI, que já percebeu como falham as suas previsões e as suas estratégias, tratou agora de forçar o plano B. Que na verdade sempre foi o plano A. O seu relatório parece, e de certa forma é, uma confissão de culpa e falhanço da troika e do Governo, mas é apresentado como uma incriminação dos portugueses. Porque o que querem fazer em Portugal necessita que os portugueses se sintam demasiado envergonhados e culpados para se defenderem ou procurarem alternativas.
Como diz Luís M. Jorge neste post, o relatório do FMI é uma «posição negocial». Tão dura que qualquer concessão nos parecerá uma amostra de paraíso. Preparam-se para nos bombardear e ameaçam com a bomba atómica. De seguida enviam “apenas” uns misseis convencionais que poucas paredes deixam de pé e nós agradeceremos como se tivéssemos sido aspergidos com rosas.
Se a troika e a Europa estivessem interessadas em resolver o problema de Portugal também para os portugueses, davam-nos tempo e condições para isso. Exigiam que o Governo fizesse de facto reformas, não demolições. Mostravam um pouco mais de solidariedade. De resto, a Europa, que não foi inocente na desmontagem da nossa economia, já foi solidária com povos com culpas maiores do que as portuguesas.
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