O “argumento” de João Miguel Tavares em defesa da dupla Reinhart & Rogoff — admitindo que se trata mesmo de uma tentativa de argumento e não a mera exploração de um nicho de mercado editorial (há que mungir a teta do pluralismo) — enferma de dois erros, duas falácias.
A primeira falácia é a do apelo à autoridade (a que já se referiu o Rui), uma das mais divulgadas formas de fugir ao assunto. Não podendo negar o erro fundamental no artigo que tão convenientemente deu sustentação “científica” à sanha anti-estado social, João Miguel Tavares desvia as atenções, tentando ofuscar-nos com os alegados méritos prévios da dupla de economistas. Como se o assunto em debate fosse o direito ou não de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff conservarem os doutoramentos em Economia que certamente têm...
A segunda falácia é a ignorância da natureza não linear do discurso humano. Quero com isto dizer que a “lógica” de João Miguel Tavares (de que o erro de Reinhart & Rogoff num artigo de 26 páginas é nada comparativamente à excelência da sua opera magna de 512 páginas) só seria válida se o discurso humano — de uma simples frase às obras completas de Platão ou Pál Erdős — pudesse ser aproximado a um sistema linear, o que não acontece.
[Abro aqui um parênteses para quem não sabe o que é um sistema linear. De uma forma simplificada, um sistema é linear se a magnitude de um efeito for (directa ou inversamente) proporcional à magnitude da causa que lhe deu origem: pequena causa, pequeno efeito; grande causa, grande efeito. Por exemplo, o controlo de velocidade de um automóvel é um sistema linear: carregando a fundo no acelerador aumenta-se mais a velocidade do veículo do que se carregando menos; idem, mas com efeito inverso, para o pedal do travão.
Já a verdade de uma expressão lógico-matemática não segue um padrão linear. Consideremos, por exemplo, a seguinte proposição verdadeira: «1111111111 > 0». Alterar 10 dos 14 caracteres (71% do texto) da proposição, transformando-a em «9999999999 > 0», ou suprimir-lhe 9 caracteres (64%), ficando «1 > 0», não tem qualquer efeito em termos de verdade: as novas inequações são também verdadeiras; já alterar um único e muito específico carácter (7,1% do texto), «1111111111 < 0», arruína completamente a verdade da proposição resultante.
Também o discurso humano, nomeadamente a verdade que ele poderá encerrar, não se comporta como um sistema linear. A diferença entre dizer «Em mil novecentos e trinta e nove, a Alemanha Nazi de Adolf Hitler invadiu a Polónia» e dizer «Em mil novecentos e trinta e nove, a Alemanha Nazi de Adolf Hitler não invadiu a Polónia» não é um erro de uns meros 4,8% ou 6,25% (conforme se considerem caracteres ou palavras, respectivamente) — aquele «não» a mais faz toda a diferença entre a verdade e a mentira. Pura e simples.]
Assim sendo, e voltando à lógica furada de João Miguel Tavares, o erro de Reinhart & Rogoff não é apenas um erro de 26/(26+512) = 4,8% no contexto da sua obra (admitindo, por simplicidade, que a dupla apenas escreveu o artigo e o livro referidos).
O erro implica a diferença entre as medidas de austeridade que vêm sendo adoptadas basearem-se num resquício que seja de cientificidade (nunca tendo as conclusões do estudo, ao contrário do que nos quiseram convencer, tido a unanimidade entre os economistas, mesmo antes da descoberta dos erros de palmatória), ou serem simplesmente a implementação acientífica e até anticientífica de um programa ideológico.
* Não tendo lido o artigo de João Miguel Tavares (não comprei o jornal e a versão online é reservada a assinantes), a minha contabilidade de falácias restringe-se às existentes na sua invocação do calhamaço de 512 páginas como “argumento” de defesa de Reinhart & Rogoff.
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