Se não houvesse tiranetes do gosto nas TVs e numa grande quantidade de câmaras, muito povo estaria ele próprio disposto a sair à rua a gritar que «os portugueses quando vão ao teatro querem apenas divertir-se».
Essa é, precisamente, a premissa do livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.
O grande pecado de François Truffaut, na adaptação ao cinema, foi alterar (ou deixar irreconhecível) esta ideia.
Quando vi o filme, interpretei estar perante uma sociedade com um regime repressivo clássico, que proibia os livros por eles serem perigosos para esse regime, por alimentarem sediciosos (não que os livros em si fossem políticos, mas os regimes repressivos, mais do que os outros, viçam na ignorância). Pensei, com as devidas diferenças, em regimes como o Nazi, o Soviético ou mesmo o nosso Estado Novo.
Mas quando, muitos anos depois, li o livro (que em termos estéticos é pior do que o filme), vi que a ideia era ainda melhor: o narrador faz-nos saber que o sistema repressivo sobre a posse e leitura de livros foi imposto pelo desejo manifesto da maioria, que não queria enfrentar as questões incómodas levantadas pelos livros e seus leitores. Queriam paz de espírito: como ouço frequentemente por aí, «É melhor não pensarmos nisso...».
Por isso Fahrenheit 451 não é redundante face a um, literariamente muito melhor, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. De facto, os dois são um bom contraponto. O livro de George Orwell fala-nos de um regime ditatorial em que uma minoria oprime e manipula a imensa maioria; o de Ray Bradbury apresenta-nos um regime originalmente “livre”, em que a maioria estupidificada oprime e tenta formatar à sua imagem e semelhança uma minoria (cada vez menor) que se recusa a ir por aí. Fahrenheit 451 e Mil Novecentos e Oitenta e Quatro formam uma dupla esclarecedora: lembram-nos que a ditadura e a opressão podem lançar raízes em diferentes terrenos.
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