Há semanas, enquanto almoçava com colegas e comentávamos a política e o estado da economia nacionais, alguém defendeu Vítor Gaspar com o argumento de que ele teria «provas dadas» na área económica, tanto em termos académicos como no “mundo real” da finança empresarial.
Na altura questionei o valor de tais supostas provas, alegando que, pelo menos no caso do meio académico, em áreas “científicas” longe das ciências exactas, a avaliação do mérito é frequentemente inválida, por ideológica: mais vezes do que seria desejável, o avaliador mede, não o valor do trabalho e a validade e verificabilidade das ideias do avaliado, mas o grau de concordância entre as ideias de um e de outro: quem discorda do avaliador não avança na carreira académica; quem lhe diz amém, floresce de viço... (António Borges deu-nos recentemente um exemplo dessa mentalidade.)
Quanto à validade das «provas dadas» no sector privado, uma ideia mais clara da sua questionabilidade surgiria dias depois.
No livro a que já me referi antes, Daniel Kahneman dá um exemplo esclarecedor acerca da mentalidade existente no mundo da alta finança. Em meados da década de oitenta ele e os seus colegas foram convidados por um gestor de topo de Wall Street para uma conversa sobre o papel do enviesamento (preconceitos, ideias feitas, etc.) nas decisões de investimento. Kahneman não percebia nada do ramo, pelo que não estava preparado para o que descobriu (então e desde então) sobre o funcionamento da “indústria financeira” (p. 280):
[...] uma indústria importantíssima parece assentar em grande parte numa ilusão de perícia. [...]
O autor refere, em suporte desta ideia, alguns estudos que demonstram que os supostos especialistas financeiros são tudo menos especialistas ou peritos (p. 282):
Apesar de os profissionais [dos bancos de investimento] serem capazes de extrair um considerável montante de riqueza aos amadores, poucos [...], se houver algum, têm a perícia necessária para vencer o mercado sistematicamente, ano após ano. Os investidores profissionais, incluindo os gestores de fundos, falham num teste básico de perícia: a concretização persistente. O diagnóstico para a existência de qualquer perícia é a consistência das diferenças individuais na concretização. [...]
O que os estudos mostram é que não existe tal consistência: um gestor de um fundo de investimento tem sucesso acima da média num ano, mas abaixo da média logo a seguir. A razão do sucesso, quando ele existe, é fundamentalmente a sorte, não a especial capacidade desse gestor para fazer boas decisões de investimento. No entanto, a ilusão da perícia no mundo financeiro grassa (p. 283):
Há alguns anos, tive uma invulgar oportunidade de examinar de perto a ilusão de perícia financeira. Fora convidado a falar perante um grupo de conselheiros financeiros numa empresa que fornecia aconselhamento financeiro e outros serviços a clientes muito ricos. Pedi alguns dados para preparar a minha apresentação e foi-me confiado um pequeno tesouro: um registo que sintetizava os resultados dos investimentos de cerca de 25 conselheiros financeiros anónimos, para cada um de oito anos consecutivos. A pontuação de cada conselheiro [em termos de sucesso dos seus conselhos de investimento] era o principal determinante para o seu prémio do final de cada ano. [...]
Kahneman calculou o coeficiente de correlação entre as pontuações de cada conselheiro em diferentes anos, em busca da alegada perícia que a empresa premiava anualmente (p. 284):
[...] estava preparado para encontrar uma fraca evidência de persistência de perícia. Mesmo assim, fiquei surpreendido ao verificar que a média das 28 correlações era 0,01. Por outras palavras, [na prática,] zero. As correlações consistentes que indicariam diferenças em termos de perícia não existiam em lado nenhum. Os resultados pareciam-se com aquilo que se esperaria de uma competição de lançamento de dados, não de um jogo de perícia.
Ninguém na empresa parecia estar consciente da natureza do jogo que os seus selecionadores de ações andavam a jogar. Os próprios conselheiros sentiam ser profissionais competentes a realizar um trabalho sério e os seus superiores concordavam. [...]
A nossa mensagem para os executivos foi a de que, pelo menos no que dizia respeito a construir portefólios, a empresa estava a premiar a sorte como se fosse perícia. Isto deveria constituir uma notícia chocante para eles, mas não. Não havia qualquer sinal de que não acreditassem em nós. [No entanto,] não tenho qualquer dúvida de que ambas as nossas descobertas e as suas implicações depressa foram varridas para debaixo do tapete e que a vida na empresa prosseguiu como até aí. A ilusão de perícia não é apenas uma aberração individual; está profundamente impregnada na cultura da indústria [financeira]. [...]
Como conclui Daniel Kahneman (p. 286), as supostas «provas dadas» na área financeira sofrem do facto de serem avaliadas segundo princípios enviesados, ignorando os factos:
[...] as ilusões de validade e perícia são apoiadas por uma poderosa cultura profissional. Sabemos que as pessoas conseguem manter uma fé inabalável em qualquer proposição, por muito absurda que seja, quando é defendida por uma comunidade de crentes que pensam de igual modo. [...]
O recurso a terminologia da área religiosa não é casual: como eu já disse antes, a política económica de Vítor Gaspar (cujos pergaminhos foram obtidos com a seriedade relatada atrás) e do seu governo é determinada por dogmas, por “artigos de fé” que não passam na análise racional dos factos — mas que mesmo assim, teimosamente, subsistem. Amém.
Sem comentários:
Enviar um comentário