(Resgatado do baú da memória pela leitura do post “Necessidade e contingência”, do José Ferreira Borges.)
1
Queria ser escritor.Não tinha disciplina nem profundidade para o romance. Não tinha objectividade para a novela. Não tinha relevância para o conto. Não tinha poder de síntese para o microconto. Fora isso, não lhe faltava nada.
Nem sequer o Moleskine.
2
Queria ser escritor. Desse por onde desse, seria escritor.Tentara o romance, tentara o conto — nunca acabara nada.
Tentara, em desespero de causa, o microconto — nenhuma ideia surgira.
Um dia, uma súbita inspiração: abriu o Moleskine e, de rajada, escreveu um ponto final.
3
A publicação de “.” apanhou a cena literária e o mercado livreiro de surpresa.Em pouco tempo a sua obra inaugural arrebatava os tops de vendas. No final do ano a crítica foi unânime em elegê-lo como escritor-revelação. Era a nova coqueluche literária: não havia epígrafe em que não figurasse, não havia curso de escrita criativa que não o glosasse, nem dissertação de mestrado ou tese de doutoramento que não o citasse.
Era também terrivelmente plagiado. Mas aprendeu, estoicamente, a resignar-se.
4
À surpresa seguiu-se a certeza: contra todos os medos e maus agoiros, as obras seguintes confirmaram o fulgor e a frescura do Escritor. E não só como ficcionista, mas também nas vertentes de investigador e pensador crítico do nosso mundo: da sátira (“þ”) à Economia (“$”, “£”, “€”, “¥”...), passando pela Matemática (destaque para a diversas vezes reimpressa trilogia “>”, “<” e “=”), o seu contributo foi tudo menos irrelevante.De facto, a sua primeira incursão pelo ensaio — “?” — tornou-se rapidamente leitura obrigatória nos mais prestigiados cursos de Filosofia (sucesso que se estenderia ao mundo hispano-falante depois da publicação de “¿?”, edição «revista e aumentada» cuja responsabilidade de tradução para o castelhano o Escritor chamou inteiramente a si). Anos depois, por pressão de alunos que se queixavam da exigência de tal obra de leitura integral, alguns cursos — à semelhança, de resto, do que já se passava em todas as faculdades de Teologia — adoptariam o menos inquisitivo e mais assertivo “.” (não confundir com a obra de ficção homónima, do mesmo autor). E, num exercício próximo da heteronímia, ou sinal de obsessão pelo contraditório, publicaria quase em simultâneo, sob nome suposto, “;”, uma refutação implacavelmente sardónica de “.” (referimo-nos ao ensaio, naturalmente).
5
Já num campo mais marginal, foi internacionalmente aclamado como «ground-breaking» o psicadélico “Ctrl+Alt”, também descrito como «o único digno sucessor de “The Doors of Perception”».E, claro, como esquecer “æ” e “œ” («duas obras-primas da literatura erótica», chamaram-lhes), ou os muito mais polémicos “§” e “¶” (cuja temática homo-erótica ditou a sua remoção de muitos escaparates)?
Só não vingou na poesia. O manuscrito de “!” foi considerado «de um débil e inflacionado “sentimentalismo” poético» pelo único editor que contactou; o balde de água fria retirou-lhe o ânimo para novas tentativas.
6
Radicalmente anti-elitista, não desprezou os ditos “géneros menores”.Foi com total desassombro que trouxe à luz do dia “—”, livro de auto-ajuda (subcategoria, autoconhecimento) que, à venda em todas as estações dos Correios, pôs meio país a falar com o seu Eu interior. (Pela mesma editora, o manual de yoga “&” foi apenas um sucesso relativo.)
7
Um dia atribuíram-lhe o Prémio Nobel. Polida mas irredutivelmente, recusou: as solicitações sociais de um laureado eram «too time-demanding».E o que ele queria mesmo era escrever.
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