quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Such a perfect Lou

Perder tempo

Uns vinte anos depois de ter pousado a viola-baixo, dei por mim na última madrugada a assistir online a lições sobre matérias prementes como walking bass lines, slap e the secret triplet (admirável técnica), ministradas por um tal Scott Devine. Não tenho qualquer intenção (ou esperança?) de voltar a pegar na guitarra e as tarefas que nos próximos tempos me esperam não convivem bem com este diletantismo fora de horas. Acresce que, tirando certas facetas parvas do emprego, todas as tarefas que me esperam têm a particularidade de serem prazerosas — ou necessárias, úteis e prazerosas — e envolvem livros.
Porquê então esta tendência para a perda de tempo? Racionalmente, não comungo da definição de liberdade expressa no poema de Fernando Pessoa (Ai que prazer / não cumprir um dever. / Ter um livro para ler / e não o fazer! / Ler é maçada, / estudar é nada. / O sol doira sem literatura.)
Emocionalmente, também não, já que o meu prazer mistura o sol, a brisa, o rio, a bruma, danças, flores, música e luar (passo as crianças) com livros.
É isto uma manifestação de irreprimível curiosidade? De fome de conhecimento? Ou uma forma velada de descer à franca humanidade dos que passam os serões e as décadas vendo novelas, futebol ou reality shows como se não houvesse outro sentido para a vida?
Vou por esta prova de fraqueza, da minha iniludível pertença ao género humano. Uma parte de mim também desiste a espaços perante o absurdo de uma existência efémera. Para quê fazer um gesto que nada muda se podemos ficar simplesmente à espera?

Ou talvez não, talvez isto seja apenas um problema de gestão da curiosidade. Lembro-me agora que depois dos vídeos, já se descarregavam as hortaliças no mercado, ainda fui perceber a razão por que o baixista Devine tocava com luvas. Distonia Focal, descobri, uma doença neurológica que afecta um músculo ou conjuntos de músculos e causa espasmos involuntários. O uso de luvas de seda (terapêutica chique, de ambivalente delicadeza) altera a sensibilidade e engana os neurónios avariados, bloqueando as contracções.

Descoberta útil, não? Não?

terça-feira, 29 de outubro de 2013

A cantiga é uma arma!

A cantiga em Portugal ainda é uma arma apontada ao sistema... nervoso. Numa transposição para a actualidade, a letra seria do clã Carreiras para um genial arranjo musical quimbarreirense — sem menosprezo por outros astros que dominam o meio artístico.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Veterinário vegetariano fundamentalista faz inspecção sanitária no mercado municipal
ou Vasco Câmara avalia o filme “Hannah Arendt”

cartaz do filme

Há dias fui especialmente ao Porto ver o filme “Hannah Arendt”, de Margarethe von Trotta, com Barbara Sukowa no papel titular. O tema interessa-me (em especial depois de ter lido As Origens do Totalitarismo) e o resultado no ecrã não me desiludiu, bem pelo contrário.

Foi por isso que me surpreendeu a classificação que Vasco Câmara, crítico do Público, lhe atribuiu: 1 estrela, o que na escala do jornal corresponde à apreciação de «Medíocre». Medíocre?!

Não consigo imaginar que falhas viu Vasco Câmara no filme para lhe dar um medíocre.

É uma história “hollywoodesca”, sem pés nem cabeça? Não: é uma história verídica.

OK, seja. Mas é uma história irrelevante? Não: trata do momento mais importante da vida de uma das mais importantes filósofas do século XX, tendo como pano de fundo um dos acontecimentos mais importantes do século XX (o Holocausto), concretamente, a polémica reportagem que a filósofa judia alemã Hannah Arendt fez do também polémico e mediático julgamento de Adolf Eichmann por Israel, em 1961.

Está mal filmado? Está mal representado? Não sou especialista nem numa coisa nem noutra, mas diria que não. A representação é realista, tendo em conta o perfil das personagens, e a filmagem é eficaz, sem espectacularidade, sem sentimentalismos, sem masturbações estéticas — como convirá quando se aborda um assunto, não só sério, mas verídico e sensível.

Porquê, então, uma só estrela?

A resposta não é que “Hannah Arendt” é, de facto, um filme medíocre; a resposta é que o filme de Margarethe von Trotta, seja por que razão for, não é o tipo de filme de que Vasco Câmara gosta, e isso basta: qualidade do argumento, da realização, da interpretação, é tudo irrelevante.
(Eu prefiro o verso livre e o tom desabrido de Álvaro de Campos ao metro rígido e ao tom contido da lírica camoniana, mas não meto no mesmo saco os sonetos de Camões e os do Chico Cheta...)

Vasco Câmara não é um crítico de cinema, de facto. Vasco Câmara é, mais propriamente, a versão cinematográfica do veterinário vegetariano fundamentalista que, posto a fazer inspecção sanitária no mercado municipal, classifica toda a carne à venda como «Imprópria para consumo».

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O homúnculo

Embora mãe há vários anos, acredita que os filhos vieram inteiros do marido, passaram uma temporada a crescer dentro dela e abordaram a luz na altura certa. Trata-se de uma versão da antiga conjectura de que existia um homúnculo no interior do espermatozóide. Tento apresentar-lhe uma explicação alinhada com a ciência. A tarefa revela-se penosa. Nunca será sem choque angustiante que se desiste da ideia de que os machos são demiurgos por natureza e homicidas por distracção.

Inveja

INVEJA. Tinha todas as virtudes, incluindo a de ter morrido.

(Versão nano do microconto “Defeitos e virtudes”, da Maria Filomena.)

Da praxe no parque à escatologia: ensaio taxonómico sobre a academia

A propósito de uma sucessão de casos, ou antes, da cobertura jornalística de casos de francos excessos nas praxes académicas, e em sequência de uma débil pressão social ou de uma réstia de escrúpulos, algumas universidades lá assumiram que lhes cabiam desempenhar um papel, não exactamente na formação de carácter dos seus alunos (não exageremos), mas de moderação da selvajaria. Passaram a existir regras um pouco mais restritivas para a praxe em alguns campus. Como em certas cidades mais progressivas do farwest, os alunos foram convidados a deixar as armas no portão. Se querem brincar aos índios e cowboys, que o façam lá fora. A academia nada tem contra os tiroteios e a caça ao escalpe — desde que essas românticas actividades ocorram extramuros.

E também assim a academia volta as costas à comunidade, ao mesmo tempo que renega as suas incumbências fingindo que a sua jurisdição sobre o estudante é limitada pela vedação do campus.

Os grupos de praxe, aliás, parecem não caber no âmbito jurisdicional de nenhuma instituição, civil ou uniformizada. Desde que notoriamente envolvidos — quer como vítimas, quer como algozes — nessa fundamental ocupação dos vinte anos que é a praxe, é-lhes passado um livre-trânsito, uma espécie de carta de alforria para a ignomínia e o vandalismo, sem limitação de decibéis.

Se você, caro cidadão, dando-lhe na veneta, resolvesse, como por aqui se faz, chafurdar ou fazer bodyboard na relva húmida de um parque até transformar o círculo do seu enchafurdamento num lamaçal, ou arrancar, com sequelas para o futuro botânico do sítio, qualquer vestígio de relva no percurso do seu reiterado deslizamento, provavelmente teria um funcionário municipal ou um agente da autoridade a censurar-lhe o comportamento (por mais genuinamente divertido que você estivesse) e a sacar do bloco de multas para lhe pedir contas. Tratando-se de grupos de praxe, as instituições do Estado quando muito abanam a cabeça com aquela indulgência que se oferece às crianças e aos malucos da terra.

Tempos houve em que as cidades médias viam no estudante universitário a galinha-dos-ovos-de-ouro e temiam incomodar a debicante espécie com os seus escrúpulos e as suas preocupações cívicas (se as tinham). Galinhas desta estirpe, achava a mentalidade mercantil dos burgos, deviam ser deixadas a cacarejar estridentemente antes de cada postura. A caca de galinha com que revestiam abundantemente as calçadas da urbe não devia ser censurada, pois saía do mesmo sítio de onde saíam os áureos ovos. A escatologia era assim preocupação dominante nestas pequenas ou médias comunidades, quer na sua acepção científica (relacionando a merda estudantil com a saúde económica do condado), quer na sua dimensão filosófica (o fim dos universitários era o fim do mundo).

Claro que da ignara e vil burguesia mercantil e das instituições dos burgos, constituídas tantas vezes por meros perus emproados ou galináceos da mesma cepa estudantil, não se esperariam conhecimentos zootécnicos. Era natural que desconhecessem serem inúteis as asas das aves poedeiras e, por isso, desadequado o temor melodramático quanto à fuga das galinhas. Seria talvez uma iconoclastia humilhante e traumática alguém informar as comunidades que os Gallus gallus aureos, vulgo estudantes universitários, arrendariam igualmente casas, se alimentariam quotidianamente e quotidianamente apanhariam pifos mesmo que algumas regras da civitas lhes fossem impostas.

Deve ter sido por isso, para não ferir o frágil amor-próprio e os doces sentimentos das forças vivas das terras universitárias, que a academia se demitiu de lançar luz sobre o assunto. (Talvez também para não melindrar o orgulho arrivista e vindicativo dos progenitores no entremez académico das suas crias.) Ou isso ou as reitorias, em vez de faróis, confundem os seus gabinetes insonorizados e de vistas bucólicas com torres de marfim.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Tradição instantânea

O presidente da CIP defendeu hoje a obrigatoriedade do pagamento do subsídio de férias de 2014 em duodécimos no sector privado. No rol de argumentos, António Saraiva inclui o facto de o pagamento em duodécimos ser «uma prática que já vem de 2013».*

Ó xôr presidente, por quem é! Para preservar uma antiga, mui nobre e sempre leal tradição, conte aqui com o apoio do je!


* (sublinhado meu)

Um espectro na madrugada

O entrelaçado de negrume suja a madrugada. Mas o céu atenua a injúria: verte sobre árvores e veredas um luar doseado por nuvens movediças. A suspeita advém então ao caminhante. Pode suceder que a mancha indecisa que através do chão o acompanha seja tudo, afinal, menos a sua sombra: ela resulta de um jogo de luz emprestada e confunde-se com restos de treva. Quem inaugura o dia como um espectro há-de ver só fantasmas sob o sol.

«Cortar nas “gorduras” do Estado» (versão anotada)

Após acurada reflexão, tornou-se evidente que a versão original tinha de ser corrigida:

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Excepções

Segundo Gottlob Frege, uma «afirmação de existência» reduz-se à «negação do número zero». Nesse caso, o número zero fica desprovido de existência. Se há, todavia, excepções a atazanar a regra, outras há susceptíveis de pacificar o autor. Entre as memórias que expõe, ela insere esta sentença disjuntiva: «Ou hei-de estar calada ou a contar misérias.» Dizendo-o, nem cumpre requisitos de mudez nem narra exemplos óbvios de infortúnio. Eis, portanto, uma regra libertadora — excepção involuntária de si mesma.

Crueldade instrumental

Eis como numa frase (longa, é certo) se condena a crítica à irrelevância (implícita, mesmo que não conscientemente, fazendo o elogio do marketing):

«(…) embora eu não creia que os leitores deixem de ler os apontados como sobrevalorizados se já gostarem deles nem comecem a ler os subvalorizados só por alguém dizer que lhes deviam prestar mais atenção (…)»*

* Maria do Rosário Pedreira, editora, referindo-se ao célebre dossier do Actual sobre autores sobrevalorizados e subvalorizados.

Ideologia e competências autárquicas

Já se sabe que para os contribuidores do Blasfémias o Estado devia desaparecer, e nesse sentido é esclarecedora a visão caricatural das competências autárquicas que Rui A. (nome artístico ou timidez juvenil?) apresenta neste post:

«Em vez de tapar os buracos das ruas, licenciar novos prédios*, dar um destino decente ao Bolhão e resolver os problemas do trânsito, o programa da coligação municipal Rui Moreira/PS tem por objectivos “as prioridades que foram amplamente sufragadas pelos portuenses: Coesão Social, Economia e Cultura”. “Coesão Social, Economia e Cultura”? E nas mãos do PS? Tremam, portuenses!»

É generoso da parte do blogger blasfemo confiar os buracos e o trânsito às câmaras (quando lá no íntimo acredita que a iniciativa privada é melhor a repor paralelepípedos e a programar semáforos), mas conceder que sejam necessárias licenças de construção é uma absoluta extravagância da sua parte. E a livre iniciativa? O empreendedorismo sem burocracias? Mais um pouco e Rui A. ainda acha que os mercados devem ser regulados.


* Já agora, num país onde se construiu demais e onde as empresas de construção estão falidas, «licenciar novos prédios» parece estupidez ou utopia — raio de lapso num blogue tão seguro da sua clarividência.

Embirrando com a leitura

Na forma como cita parece revelar-se algo do carácter (ou da formação) de um autor. Leio um ensaio onde as fontes francesas são citadas em francês e as italianas, russas, alemãs e mesmo as anglo-saxónicas são-no em português (quando não também em francês).
Talvez o autor tenha optado por citar as suas fontes na língua em que as leu, é um critério. E, nesse caso, estamos perante um afrancesado, por formação e/ou por afinidade cultural.
Com a minha mania de imaginar biografias, decidi tratar-se de um pavão vaidoso do seu francesismo, do seu domínio da língua de Sartre. Como não tem idade para ser um ex-expatriado ou para se ter formado no tempo em que quase toda a gente em Portugal era culturalmente afrancesada, decido também que viveu em França, nasceu ali, talvez filho de emigrantes orgulhosos da sua (dele) carreira académica.
Assim tomado por esta animosidade ficcionalmente refocalizada, decido que os livros citados no ensaio têm edições portuguesas, que o autor não aplica às fontes francesas o critério que geralmente aplica às russas e às alemãs (citando-as em português) por presunção, gosto ostentatório. E encontro então explicação para a forma arrevesada como escreve o seu ensaio, num português engalanado e hirto: é prosa de calça vincada e gola alta, ou enrolada num cachecol parisiense. Não exactamente elegante — apenas afectada.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Truques

Santo Agostinho sublinhou-o: saberia responder à pergunta «o que é o tempo?», se ninguém lha fizesse; não saberia, se lha fizesse alguém. Baudelaire sugeriu-o: o mais belo truque do Diabo é o de nos convencer da sua inexistência. O tempo, divino paradoxo, afigura-se o oposto do Demo: o seu mais belo truque é o de nos convencer da sua existência. Alguns santos ficam obviamente perplexos: a astúcia do tempo supera o ardil de Satã. Sempre assim foi.

domingo, 20 de outubro de 2013

Pormenores

Conclui um membro de certa tribo que «2 + 2 = 5»: dá dois nós numa corda, dois noutra e junta-as mediante um quinto nó. O sinal «+» foi também adicionado. Bernard Shaw subverteu assim a regra de ouro: «Não faças aos outros o que gostarias que eles te fizessem: eles podem ter um gosto diferente.» Seria injusto ignorar os caprichos alheios. Nem a matemática falha nem a ética baralha — se todos os pormenores entrarem nas contas.

“Serviço Nacional de Saúde — drama estático”
(peça em um acto médico)

17h25: Saio da sala de triagem. Bracelete verde; sou capaz de ter de jantar um pouco mais tarde...
22h30 (após 5 horas e 5 minutos de espera): Sou finalmente chamado para a consulta.
22h58: Sala de tratamentos.
23h15: Raio X.
23h37: Segunda consulta.
23h49 (após 6 horas e 24 minutos): Saio finalmente do hospital.

Paguei um pouco mais de 20€ — fica a dúvida se a título de Taxa Moderadora, se de Imposto Municipal sobre Imóveis...

sábado, 19 de outubro de 2013

«Meditatio mortis»

Recomendarão os sábios que se medite na transitoriedade da existência, focando o pensamento em sepulturas anónimas, lápides quebradas, memórias desfeitas, galáxias implodidas. Isso, todavia, cansa: vai-se demasiado longe e o horizonte repete-se. Há um processo mais eficaz e que envolve menos gasto energético. Bastará permanecer quieto como a urze e matutar: «Eu sou este exacto instante. Acabou.» Claro: ainda resta o instante seguinte. Mas esse é unicamente a sombra do anterior: nunca se espera dele grande coisa.

“Plano Estratégico Nacional para o Turismo”
(contributo pessoal para a sua revisão)

O “Plano Estratégico Nacional para o Turismo 2013–2015” foi aprovado há meio ano, mas tomo a liberdade de propor aqui uma revisão, para o tornar mais adaptado à situação em que vivemos.

Tesos como estamos, sugiro a aposta no sector do Turismo Sexual.

(Zezé Camarinha a Secretário de Estado: há membros do Governo escolhidos com base em critérios mais dúbios...)

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O som e o agoiro

Foco a atenção no grasnar madrugador de um corvo e não detecto aí razões que justifiquem para esse animal o estatuto de «ave agoirenta». Ouço o «Ah!» com que se expressa admiração, o «A» com que desponta o alfabeto e o «Há» com que se afirma a existência. Os sinais da morte exterminadora parecem ausentes deste auroral crocitar. A menos que nos estejamos a referir à «morte» num sentido esotérico ou iniciático. «Não é assim, corvo?» «Ah!»

«Cortar nas “gorduras” do Estado»

Como seria se a Ministra das Finanças se dedicasse à medicina estética e abrisse uma clínica de emagrecimento... (homem com as duas pernas e um braço amputados)

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Fingimentos

Procurou conhecer e experimentar por dentro todos os movimentos esotéricos e religiosos. Mas o seu grande projecto era o de alcançar um perfeito estado de desencanto e de cepticismo. Tal desiderato lançava-lhe sobre as vivências espirituais doses de fingimento de que nunca viria a libertar-se. Antevendo o fim, apressou-se a abandonar dogmas, crenças, técnicas, rituais. A tarefa revelou-se impraticável. Conseguiu apenas supor-se desencantado e céptico. Também a sua morte, por afinidade, não passou de um completo fingimento.

Os Idiotas, livro do dia (ontem) na TSF

ouvir podcast

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Acordo à esquerda

Decidi recentemente cultivar — doidice ocasional — a técnica de redigir com a mão esquerda. Embora ainda distante, em esmero e eficácia, da destra, ela já seria capaz, neste momento, de escrever uma carta de amor suficientemente ridícula. Entretanto (torna-se difícil saber de onde e como surgem ideias tais), mantendo a direita fiel à norma antiga, tenciono reservar para a esquerda o privilégio da adopção do novo Acordo Ortográfico. Sendo neófita em matéria linguística, ela suportará melhor o disparate.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Más notícias

'Uma coisa supostamente divertida que nunca mais vou fazer', de David Foster Wallace

A Piada Infinita foi de tal maneira uma leitura fascinante e lúdica que depois desse livro mal tenho conseguido pegar noutros. Acumulo uns seis ou sete na mesa-de-cabeceira, eu que não costumo ali ter mais do que dois: o que leio a cada momento e um qualquer outro que, por piedade a fingir desleixo, fica ali esquecido durante meses numa desistência camuflada de adiamento.

É injusto para os autores terem o azar de surgir na minha lista depois de Foster Wallace.

Meio enganado por uma qualquer referência que li, avancei a certa altura para Cinerama Peruana, convencido que havia ali ecos de A Piada Infinita. Como se usar notas de rodapé fosse suficiente para aproximar os dois livros. Não são próximos. Talvez haja ecos de Bolaño no livro de Rodrigo Magalhães, mas não vi nada de Wallace. E, lamento dizê-lo, a despeito do talento do autor, aborreci-me. Certamente pela enorme sombra que lhe fez a leitura anterior. Mas também um pouco pelo género: aquelas espécie de fábulas eminentemente literárias e literariamente tautológicas não me apaixonam, mesmo quando são assinadas por Borges. Foi para arquivo, a um terço do fim. Decidi ser condescendente comigo mesmo, poupar-me o esforço.

Hoje fui buscar Uma coisa supostamente divertida que nunca mais vou fazer — o que me parece más notícias para os restantes autores da pilha.

T-shirt meta-humorística

A propósito do último post do Zé...

Tenho lá em casa uma t-shirt com muitíssimo mais piado do que esta aqui.

A metapiada

Diz: «Não fumo nem bebo, mas gosto de contar piadas.» Comento: «Acabou de contar uma.» Admitindo, porém, ter havido ironia na primeira parte, ele contou, em rigor, duas: uma piada e uma metapiada — alusão a piadas que «mete piada». O humor desencadeado pela mera piada exige subir um único degrau. O suscitado pela metapiada exige subir dois, devendo, em teoria, demorar o dobro do tempo a manifestar-se — excepto se, na prática, mantivermos um pé em cada degrau.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

As vias da paciência

Vivia impaciente. Mas, descobrira-o, a impaciência era uma característica alterável, embora teimosa, dos pensamentos que a governavam. Procurou curar-se mediante uma caminhada diária, à mesma hora, seguindo um percurso fixo. Notou então que os conteúdos mentais, apesar de rebeldes, aderiam a pontos específicos do itinerário. Volvido um tempo razoável, decidiu efectuar o trajecto com o espírito vazio e receptivo. Nessa altura, apercebeu-se do regresso dos pensamentos exteriorizados. Vinham tranquilos e obedientes. Tinham-se habituado a esperar por ela.

domingo, 13 de outubro de 2013

Insuportáveis extremos

Os Monty Python criaram um sketch sobre uma anedota letal: ninguém poderia ouvi-la e, entendendo-a, continuar vivo. A causa da morte seria, portanto, o superlativo humor, com as reacções orgânicas inerentes. Segundo a tradição bíblica, ninguém pode ver Deus e continuar vivo, embora parece ter havido excepções. Aqui, talvez a causa da morte seja a infinita seriedade. Sem o equilíbrio dos dois extremos de seriedade e humor, não restariam pois condições para a existência de vida sublunar.

sábado, 12 de outubro de 2013

Lobbies e Doping na genitália alheia

O José Mário Silva diz na sua página de Facebook que «a edição desta semana do 'Actual' é capaz de dar polémica», e acrescenta um link para um post do blogue Bibliotecário de Babel que, dá para perceber, lista os temas da secção de livros do dito suplemento. O problema é que chegamos ao blogue e deparamo-nos com um artigo sobre Viagra.
Num primeiro momento concluímos que é spam ou vírus. Regressamos por isso ao Facebook e espreitamos os inúmeros comentários (de críticos e outros literatos) que entretanto foram surgindo.

Dada a temática e o teor da discussão gerada, ocorrem dois pensamentos:

  1. o blogue de José Mário Silva foi atacado por um hacker que não tem conseguido entrar no lobby do Expresso.
  2. o blogue de José Mário Silva foi atacado por um hacker com sentido de humor: quando se trata de medir pilinhas, a questão do doping na genitália alheia não demora a chegar.

(Ok, mais tarde compro o jornal para não falar de cor.)

Exercícios

O aluno mantém as costas direitas, a cabeça um pouco descaída para a frente, as pálpebras semicerradas, os olhos fixos num ponto que talvez seja o umbigo do mundo, o centro da galáxia, o âmago da Divindade. Parece mostrar competências avançadas de meditação. Na verdade, executa apenas uma técnica banal de copianço. Alojou a cábula no telemóvel, pousado algures, extensão pós-moderna do corpo e da memória. Surpreendo sete deles entregues a este exercício acanalhado. Até mete dó.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Crítica da razão obscura

Árida em estilo, fecunda em ideias, a Crítica da Razão Pura suscitou, recentemente, um episódio insólito: na Rússia, dois indivíduos envolveram-se numa troca de murros, tendo inclusive um baleado o outro — felizmente sem trágico desfecho —, enquanto argumentavam sobre a famigerada obra. Kant escreveu aí: «Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas.» Talvez o incidente resultasse de uma situação filosófica anómala: aquela em que a cegueira sobe ao pensamento e o vazio desce à intuição.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

«Porque é ainda ministro?»

O Blasfémias (de onde saiu, não esqueçamos, Carlos Abreu Amorim, essa figura) mais cedo ou mais tarde (geralmente bem mais tarde) lá se junta ao português de inteligência média no que toca a considerar insustentável a presença de certos ministros neste Governo. Foi assim com Relvas, é assim com Machete. Um destes dias até Helena Matos o virá balbuciar.

Desregrado cepticismo

Os especialistas diferenciam «saber-que» de «saber-fazer» e de «conhecimento por contacto». Embora pedagógica, a distinção é artificial. Efectivamente, todo o conhecimento pressupõe algum «contacto» do sujeito com o objecto. Mas também esta última distinção se revela postiça: não há sujeito puro nem objecto claro, antes uma continuidade inefável, sem rupturas intrínsecas nem «contactos» eventuais. O que acaba de se expor traduz um conhecimento? Sim: um conhecimento ilusório de um objecto irreal — por parte de um sujeito inexistente.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Entusiamo

O corrector ortográfico do meu Word não está acertado pelo Acordo Ortográfico — está acertado pelo Mia Couto. Quero escrever «entusiasmo» e sai-me «entusiamo», com uma estratégica elisão do segundo «s». Aos outros desacertos o corrector reage sublinhando-os a vermelho. Este deixa-o laconicamente sem marca, esperando que eu dê pelo caso e sobre ele pondere etimologicamente.
«Entusiamo» será assim a fusão de dois termos: «entusiasmo» e «amo». «Amo com entusiasmo», quer certamente o corrector que eu conclua, com romântico exacerbamento.

Ou talvez devamos atribuir raciocínios mais libidinosos ao meu corrector ortográfico e considerar aquele amor meramente carnal, o entusiasmo do domínio da intumescência, acentuado na segunda sílaba.

Tontarias

Como posso aspirar a tornar-me um escritor respeitável se ultimamente etiqueto a maioria dos meus posts como «tontarias»?

Moldando o entusiasmo

Senti um entusiasmo inadequado e embaraçoso ao ler que Pedro Mexia escolheria Javier Marías como um dos seus dois favoritos para o Nobel deste ano. O entusiasmo foi inadequado porque o senti de um modo pessoal, como se fosse eu o nomeado. E foi embaraçoso porque pueril, ou melhor, servilmente penhorado. Não que sonhe ombrear com Mexia em cultura e sabedoria literárias, mas escusava de ter acessos de entusiasmo tão obnóxios, tão avassalados por uma lisonja dirigida a um objecto de estima mútua.

Compreendo porém o meu próprio entusiasmo. Não tendo lido muitos títulos de Marías, entre as leituras que fiz estão os três volumes de O Teu Rosto Amanhã, uma obra que só por si vale um Nobel. E a minha satisfação com essa magna leitura tem equivalência em grau à perplexidade de ver os anos passar sem que a tradução portuguesa seja retomada (a Dom Quixote editou o primeiro volume em 2005 e ficou-se por ali).
A relativa ignorância a que obra de Marías é votada em Portugal concede-lhe aos meus olhos (ou aos olhos do meu entusiasmo) uma certa aura de autor de culto. A simpatia pela obra e a sensação de injustiça traduzem-se numa identificação com as suas tribulações e os seus sucessos. Admiração semelhante de outros é sentimento de união, irmana.

Por isso, se o meu entusiasmo não fosse tão voluntarista, perante a referência de Mexia a Marías ter-se-ia manifestado mais dignamente na forma de mero regozijo pelo reconhecimento de um igual. Se as minhas emoções se dessem ao trabalho de se intelectualizarem um pouco, a nomeação de Javier Marías por Mexia seria recebida, adequadamente, com um entusiasmo de classe, de membro de um clube restrito, exclusivo, reagindo ao nome do escritor como ao santo-e-senha do clube. Talvez permitindo-se (o entusiasmo) um sorriso irónico e levar dois dedos ritualizados ao Borsalino.

Mas temo que se derem o Nobel a Javier Marías, Pedro, o meu entusiasmo celebre plebeiamente dedicando aos editores portugueses um daqueles gestos revanchistas de jogador de futebol.

O lugar da sorte

Entra no café. Vende cautelas. Entoa um pregão rápido, minimalista. Transporta uma bolsa a tiracolo e enverga um colete de duas cores: azul-escuro em baixo, amarelo evidente em cima. Nas costas, destacada do fundo amarelo, pode ler-se a expressão «casa da sorte». No entanto, a palavra «sorte» não se revela de forma ostensiva: adivinhamo-la ou deduzimo-la. A tira da bolsa passa ali, ocultando-lhe ora umas, ora outras letras. A contingência do mundo revê-se na ironia dos detalhes.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Informações iniciais

Aporta um professor a nova escola. Informam-no de que vai receber uma turma complicada, mas que se trata de um desafio. Preferindo que o deixem em paz, desconhecedor ainda das práticas pedagógicas que fazem ver em cada aluno um diamante a facetar, o docente responde que dispensa semelhantes desafios. Não lhe fica bem. Confrontado com a realidade, descobre que «turma complicada» exprimia um eufemismo e que o tal «desafio» dizia respeito à sua capacidade de sobrevivência psíquica.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

José Rodrigues dos Santos ou Educação para a modéstia

Educado para a modéstia (a soberba descobri-a por mim mesmo mais tarde, junto com a ironia), fascina-me a forma despudorada como José Rodrigues dos Santos fala dos seus próprios livros. No meu quadro educacional, e se descontarmos as conversas de balneário, a hipérbole reservava-se para os feitos dos outros, se tínhamos a generosidade de os admirar; os nossos tratávamo-los com reserva, rubor e olhos baixos. Por isso, quando leio entrevistas do autor de A Mão do Diabo — presumindo sempre que são registadas fora dos locais onde tradicionalmente os rapazes cotejam as suas galgas —, uma parte antiquada de mim pensa que ele está a falar de livros escritos por outros. Depois lembro-me de certas teorias da conspiração, que metem cálculos de tempo e ghost writers, e por instantes dou-lhes crédito: se calhar está. E assim se compreenderia a enfatuação.

Mas se considerarmos que o entusiasmo de Rodrigues do Santos não resulta de ele se distrair e involuntariamente revelar o seu apreço pelo trabalho dos colaboradores (o que até seria bonito); se considerarmos que ele escreve os seus próprios livros, todos eles, temos então de perceber se a sua arrogância tem a legitimidade da de um Mourinho, por exemplo.
No caso do futebol, estamos dispostos a engolir a bazófia de Mourinho se depois ele ganhar os jogos e conquistar os títulos. Podemos achá-lo um parvalhão emproado, mas é um parvalhão emproado que no fim leva a taça e milhões de euros.
Deste ponto de vista, e embora custe equiparar a literatura a um campeonato de gajos depilados em calças curtas, Rodrigues do Santos está também autorizado a ser um parvalhão emproado — afinal, a sua equipa ganha fortunas e tem já uma série de internacionalizações. E se não conquista as taças literárias é porque elas, anacronicamente, ainda são atribuídas por críticos e júris, não pelo terceiro anel da Luz. (Eis algo que urge alterar.)
Claro que se pode dizer que José não tem um jogo bonito, o seu futebol é tosco, ganha muitos jogos recorrendo à mão de Deus, para baixo todos os santos ajudam, etc., mas no fim do mês lá está ele nos tops e as suas filas para autógrafos, di-lo ele mesmo, dobram esquinas.

Os historiadores do futebol podem argumentar que houve noutras épocas treinadores melhores do que Mourinho e talvez a contabilidade de títulos ainda nem lhe seja inequivocamente favorável, não sei, mas isso importa pouco aos adeptos actuais se ele continuar a vencer. O mesmo se passa com os rodriguinhos de dos Santos: críticos e historiadores (como Rui Bebiano, neste post) podem defender, com razões de sobra, que a entrevista do escritor ao I no sábado foi um «vendaval de futilidade, desconhecimento e espírito mercantil», mas a sua massa associativa (e mesmo hooligans de outros ramos) continuará a dedicar-lhe olas e cânticos épicos.

Para além disso, na mesma entrevista de sábado e antes que a História se pusesse com coisas, Rodrigues dos Santos tratou de a arrumar num só parágrafo. Falando de Equador como espécie de profeta que anunciou os seus livros messiânicos, o jornalista disse: «Demonstrou várias coisas. Que os portugueses tinham disposição para ler um autor português, o que até aí era como o cinema português, de que se fugia. (…) Porque não entendiam, o que era escrito, é a terrível verdade. Os nossos autores eram ilegíveis.»
Diria que nem Mourinho seria farofeiro o suficiente para defender que antes dele não havia futebol, mas talvez Rodrigues dos Santos tenha evocado na sua mente o panteão das letras portuguesas e concluído melancolicamente que não tinha de facto razões para humildade.

Espantou-me, por isso, que noutra passagem da entrevista ele concedesse, acerca de diferentes atitudes literárias, que «umas são tão válidas como as outras». Havia, afinal, uma reserva de modéstia no bravo best-seller. Ou então ocorreu-lhe que também ele poderia um dia querer levar «duas páginas a descrever um armário», como o sádico James Joyce em Ulysses, e mais valia sancionar preventivamente o recurso. Just for the record.

Ou será que temia incomodar uma importante facção dos seus leitores censurando o «exercício de masoquismo» que disse ser ler o calhamaço de Joyce?

Além disso, depois de Dan Brown, o seu catavento literário pode muito bem estar a sintonizar-se nas cinquenta sombras sadomasoquistas de E. L. James. Rodrigues dos Santos tendo prazer a infligir sofrimento literário? Não é impossível.

A encomenda

«Caso não seja entregue, agradecemos a devolução, indicando a razão com um X.» Imagino o que aconteceria se o destinatário da encomenda fosse a Divindade e os filósofos se tornassem os responsáveis por desenhar a «cruz da não entrega». Aristóteles colocá-la-ia em «Ausente»; Epicuro, em «Recusado»; Kant, em «Desconhecido»; Hume, em «Encerrado»; Feuerbach, em «Mudou-se»; Nietzsche, em «Falecido»; Wittgenstein, em «Endereço insuficiente»; Sartre, em «Não reclamado». Já os panteístas, como Espinosa, ficariam legitimamente de posse da encomenda.

domingo, 6 de outubro de 2013

Incómodos

Tornou-se axioma: «Pensar incomoda como andar à chuva.» Tal regra de Caeiro admite, ainda assim, inúmeras excepções: os conceitos variam em peso e agressividade; as pingas, em volume e frequência. Mas é possível neutralizar ambos os incómodos elegendo intervalos: os que distanciam as gotas e os que separam conteúdos mentais. Dos dois exercícios, todavia, só o segundo parece exequível. Trata-se aliás de excelente opção para quem anda à chuva — e quer evitar o incómodo de pensar nisso.

sábado, 5 de outubro de 2013

Machetada

Provavelmente — e decerto com particular incidência nas últimas legislaturas —, sempre houve gente nos governos com alguma incapacidade para defender os seus currículos. Quer porque eles (os currículos) eram má ficção, quer porque eram facilmente confundidos com cadastros. Mas no governo de Passos Coelho isso parece uma especialidade, uma cláusula. Um tipo põe-se a pensar que, se os lugares de ministro e secretário de estado (ou assessor) fossem a concurso, Coelho mandaria lavrar anúncio no Diário da República com a alínea: «Dá-se preferência a quem tenha rabos-de-palha; da sua elisão trata-se a seguir, com corrector Bic ou Pelikan, depende de quem patrocinar.»

Os currículos de Gaspar e Santos Pereira, bons rapazes e sem mácula no carácter, pertenciam ao lote da ficção, poderiam ter sido escritos por José Rodrigues dos Santos num dia inspirado. O de Relvas também, mas acumulava vilanias. Agora, a ministra das Finanças e o dos Negócios Estrangeiros são o topo hierárquico de uma lista de governantes cujos currículos os habilitam com distinção ao governo passista mas logo depois têm de passar pela lavandaria para serem apresentáveis ao resto do país.

Desde Junho de 2011 há um campeonato para ver quem mente-mais-e-pior e, em simultâneo, tem o raio-de-uma-lata. Os melhores nestas duas disciplinas mantêm-se no governo ad nauseam, até aparecerem cartazes no tour de França e na Estação Espacial Internacional. Só saem quando a sua reputação não se distingue da lama onde nadam.

Maria Luís Albuquerque e Rui Machete estão bem colocados, são esperanças particulares de Passos (o próprio, como se sabe, um peso-pesado da peta, patranha, baldroca, da pantomima e do entremez). E todos somos testemunhas de como eles se têm esforçado, com enorme lata, no campeonato de mentir muito e mal. Maria Luís tem a desvantagem de ser até há pouco tempo uma desconhecida. O seu currículo, de menor extensão, é mais facilmente arruinável. Já Rui Machete, com aquela longa e velha fama de senador e general na reserva do partido, tem tudo para ganhar a taça. Depois das estratégicas elipses curriculares e das extravagâncias da sua memória, este episódio com a Rádio Nacional de Angola mostra como ele está disposto a tudo.


«Machete: s. m. sabre de artilheiro com dois gumes, faca de mato; viola pequena, cavaquinho

Nada de novo

Aparentemente, Descartes caiu num círculo: por um lado, tinha a ideia clara e distinta de Deus, com que provou a sua existência; por outro, necessitava que Deus existisse para garantir a verdade da ideia clara e distinta que tinha dele. O problema reside no facto de, neste caso, os pensamentos deslizarem sobre palavras como dedos sobre o ecrã de um tablet: afastam-se e aproximam-se, ampliam e reduzem, arrastam e esperam, mas nada de novo acrescentam ao texto.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Rui Ângelo Araújo e Os Idiotas na revista LER de Outubro

recorte de imprensa

O IDIOTA C'EST MOI

Lúcio: Sabes que és um pseudónimo, certo?
Rui:
L: Que me usurpaste a autoria do livrito?
R: Pensei que estavas sequestrado numa cave alentejana. Li isso no teu Facebook. Alimentado a açorda e sopa de tomate…
L: É feio aproveitar o trabalho dos outros para armar em escritor.
R: Lá estás tu com essa fantasia. Ouve, eu criei-te, és uma personagem d’Os Idiotas. Dei-te foi demasiada liberdade. Parecias um tipo divertido (ainda que tontíssimo), não imaginei que fosses tão longe…
L: Estás com cara de padre, nesse sofá maricas.
R: Isso, desperdiça caracteres.
L: Querias que falasse do livro?
R: Não nos convidaram para assomos edipianos de personagens mal resolvidas...
L: Podia ser um bom livro, podia. Se não tivesses metido o bedelho. Supõe-se que os pseudónimos se fiquem pela capa, não que se intrometam no texto. Pseudónimo não é heterónimo. Todos perceberão que o livro devia simplesmente deixar ouvir a minha voz.
R: Ainda se nota com abundância que és um desbocado, um espírito doente.
L: Obrigado, muito gentil.
R: Um tipo decadente num país em declínio.
L: Wishfull thinking…
R: Triste protagonista de comédia humana que nem sequer assume a oportunidade que os amigos lhe dão de ter uma contribuição cívica.
L: Quem mais poderia pensar em cidadania senão imbecis daqueles?
R: A passear os traumas e a bebedeira da Roménia ao Vietname…
L: Lisonja.
R: A arrastar a asa para a Helen. És mesmo…
L: O idiota és tu!


Os Idiotas (O Lado Esquerdo Editora) é o título do novo romance de Rui Ângelo Araújo, autor do blogue «Os Canhões de Navarone» e antigo director da revista Periférica.

Nascidos entre velharias

Entro numa loja de velharias e noto que há cinco gatos recém-nascidos, de pêlo escuro, a vaguear por ali. Não tardam a aproximar-se. Talvez me conheçam de vidas anteriores, passadas algures na Pérsia ou no Egipto. Um deles tenta acomodar-se sobre um dos meus sapatos, como se o mundo não lhe inspirasse qualquer mistério ou inquietação. Estes animais viram a luz entre múltiplos objectos que insistem em lembrar o fim. Não admira, portanto, que ignorem certos princípios.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Tem cumprido o seu?

Dever cívico/cínico

A outra lógica

Ele supunha ser a vida a conclusão de um argumento cujas premissas se desconhecem. Ela julgava-a um conjunto de premissas que não levam a qualquer conclusão. Através de inflamada lógica, juntou-os o destino. Mas cada um só via no outro o que ele próprio achava da vida. Volvido quase um ano, disse o homem: «É preferível concluirmos.» Ela retorquiu: «Claro. Também não me faltam premissas.» Fora aquele o único argumento válido após uma série intensa de falácias.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Entrevista na revista online IP4

Rui Ângelo Araújo, meu “parceiro de coligação”, em entrevista à revista online IP4:

“Os Idiotas” de Rui Ângelo Araújo são, afinal, afectuosos

É o costume

Segundo David Hume, é ilegítimo supor entre a chamada «causa» e o designado «efeito» qualquer «conexão necessária». Há apenas fenómenos que sucedem outros. O costume de os ver associados leva-nos a inferir que, interiormente, eles se «conectam». Pura falácia. Talvez seja o mesmo hábito que nos impele a dividir o tempo em passado — a causa que foi embora —, futuro — o efeito que nunca está — e presente — a ligação obstinada dessas duas ausências. Enfim, os aborrecimentos do costume.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Lições da Índia

Recebo por e-mail um anónimo texto circulante. Lê-se aí que, na Índia, ensinam «quatro leis da espiritualidade»: «A pessoa que vem é a pessoa certa.» «Aconteceu a única coisa que poderia ter acontecido.» «Toda a vez que iniciares algo é o momento certo.» «Quando algo termina, termina.» E há um voto: «Sejamos fortes nesta caminhada rumo ao progresso espiritual.» Pergunto: ante pessoas oportuníssimas, rigorosas inevitabilidades, começos perfeitos e desenlaces categóricos, como é que o espírito afinal progride?