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domingo, 3 de novembro de 2013

Dispersão

Passou (creio) por uma depressão. Tentou suicidar-se. Mas o termo que usa para designar a antiga doença não parece o clinicamente correcto. Em lugar de «depressão», fala em «dispersão». Com razoável desconforto, evoco imediatamente, sem os verbalizar, alguns versos de Sá-Carneiro: «Perdi-me dentro de mim...» Digo-lhe que é a outra a palavra certa. Da próxima vez, porém, repetirá a «dispersão». Insistirei. Sem sucesso. Há palavras, mesmo equívocas, que se tornam coisas — quando as coisas se tornam labirinto.

domingo, 20 de outubro de 2013

“Serviço Nacional de Saúde — drama estático”
(peça em um acto médico)

17h25: Saio da sala de triagem. Bracelete verde; sou capaz de ter de jantar um pouco mais tarde...
22h30 (após 5 horas e 5 minutos de espera): Sou finalmente chamado para a consulta.
22h58: Sala de tratamentos.
23h15: Raio X.
23h37: Segunda consulta.
23h49 (após 6 horas e 24 minutos): Saio finalmente do hospital.

Paguei um pouco mais de 20€ — fica a dúvida se a título de Taxa Moderadora, se de Imposto Municipal sobre Imóveis...

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Para uma história dos penteados

Uma das coisas mais difíceis de abandonar no final da adolescência é o penteado. Demoram-se anos, laboriosos anos, a atingir aquele insatisfatório resultado complexo e quando finalmente nos resignamos a ele chega a tropa ou a idade adulta, com as suas convenções, embaraços e barbeiros. Alguns adultos em particular, tendo atingido o estrelato nos anos setenta, quando eram meros pós-adolescentes, sentiram-se dispensados de fazer a transição capilar. Um pouco por coerência com a postura irreverente da época, um pouco por receio de ficarem irreconhecíveis perante os fãs se uma tesoura lhes passeasse sibilando pela cabeça.
Na verdade, o estatuto de rocker dos setenta, invocado igualmente por tanto roadie e fã ignoto, apenas serviu como desculpa para não enfrentar no espelho a angústia e as indagações hamletianas suscitadas por um crânio nu. É certo que os fãs reconhecem uma cabeleira de 1975 quando vêem uma, mas acontece frequente e jocosamente perguntarem: «quem diabo é aquele gajo barrigudo debaixo da trufa do Robert Plant?» Donde os hoje engravatados descendentes do flower power poderiam aprofundar a exegese e inferir que a força de Sansão não vinha dos seus longos cabelos.
Por mim, nada tenho contra quem decide ser contabilista, agente funerário ou pai de família das raízes do cabelo para baixo e manter-se dali para cima nostálgico de certos riffs de guitarra e torsos nus (tenho até ternura). A minha preocupação é estética. É que muitos destes homens esquecem-se também da calvície e a certa altura já nem a barriga nem os três raros embora longos cabelos que lhes restam evocam algo mais do que uma personagem mal desenhada de Tim Burton.
Por falar nisso, temos de conceder que é ainda mais embaraçoso ser-se um gajo barrigudo debaixo de um penteado dos anos oitenta. Bem, sempre foi embaraçoso estar-se debaixo de um penteado dos anos oitenta, mas é um pouco sádico que continuem a esconder isso do Robert Smith.
Já os Duran Duran seguiram o caminho sensato que a maioria de nós seguiu logo nos noventa: aparar as pontas de modo que ainda sobrasse uma ideia do que tinha sido o nosso penteado e, para combater o sentimento de perda, coleccionar espanadores exóticos e coloridos.

domingo, 16 de junho de 2013

Ideais

Para a OMS, é um «estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade». Face à categórica abrangência, irmã gémea da perfeição, dada ao conceito de «saúde», compreende-se a humana impossibilidade de alcançar as prerrogativas aí expressas. Contingências óbvias e a certeza da morte bastariam, mesmo se ténues, para neutralizar semelhante ideal. Talvez os deuses o cumpram. Talvez o realize algum dos bichos. Talvez bichos e deuses nos entendam.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Lado exclusivo

Conta-o Oliver Sacks: vítima de trombose, certa mulher perdera a noção de «esquerda» — relativamente ao mundo e ao seu corpo. Ao procurar um objecto situado à esquerda, virava-se para a direita, completando o círculo. Se tal limitação ocorresse no «espaço» do intelecto, talvez o resultado fosse um pensamento que, rodando unidireccionalmente sobre si mesmo, se tornaria refém das suas próprias ideias ou que, seguindo em linha recta e nunca retrocedendo, se veria impossibilitado de ter ideias próprias.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Os filósofos e os hospitais

Os hospitais não são os lugares favoritos dos filósofos que elaboram sistemas capazes de transformar a realidade num hino à geometria: quando vistos de perto, a doença e o sofrimento abrem fissuras irreparáveis no desenho abstracto do mundo. Os filósofos não sistemáticos, embora sensíveis, como Miguel de Unamuno, ao «homem de carne e osso», também costumam afastar os hospitais do seu leque de preferências. Porquê? Todos o sabemos. Só a filosofia teima em não encontrar cabal resposta.