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domingo, 9 de fevereiro de 2014

Relógio existencial

Recém-inventado, o Tikker é um relógio que mostra ao utilizador quanto tempo lhe resta no mundo, após análise das respostas a um questionário sobre o seu estilo de vida. No entanto — pasme-se! —, o aparelho não é completamente rigoroso. Talvez falhe por segundos, o que faz uma enorme diferença. A intenção, todavia, consiste em suscitar o reconhecimento da preciosidade dos instantes. De qualquer modo, também seria conveniente informar o utilizador acerca do tempo de vida do próprio relógio.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Primazia cronológica

Um não foi autorizado. Perguntara: «Posso fumar enquanto rezo?» Outro recebeu licença. Questionara: «Posso rezar enquanto fumo?» Diferencia os dois casos uma distinta precedência cronológica das acções — ou das intenções subjacentes. Conta-o Fernando Blázquez: achando no portal onde costumava ir «desbeber», além da cruz (desenhada na véspera), o axioma «Onde se põem cruzes, não se mija», o poeta Quevedo acrescentou: «Onde se mija, não se põem cruzes.» Frequentava o espaço há mais tempo. E voltou a urinar.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Truques

Santo Agostinho sublinhou-o: saberia responder à pergunta «o que é o tempo?», se ninguém lha fizesse; não saberia, se lha fizesse alguém. Baudelaire sugeriu-o: o mais belo truque do Diabo é o de nos convencer da sua inexistência. O tempo, divino paradoxo, afigura-se o oposto do Demo: o seu mais belo truque é o de nos convencer da sua existência. Alguns santos ficam obviamente perplexos: a astúcia do tempo supera o ardil de Satã. Sempre assim foi.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

É o costume

Segundo David Hume, é ilegítimo supor entre a chamada «causa» e o designado «efeito» qualquer «conexão necessária». Há apenas fenómenos que sucedem outros. O costume de os ver associados leva-nos a inferir que, interiormente, eles se «conectam». Pura falácia. Talvez seja o mesmo hábito que nos impele a dividir o tempo em passado — a causa que foi embora —, futuro — o efeito que nunca está — e presente — a ligação obstinada dessas duas ausências. Enfim, os aborrecimentos do costume.

domingo, 29 de setembro de 2013

O eleitor de arquétipos

Amigo de dois políticos que eram adversários e se iam submeter ao escrutínio popular, a ambos prometeu, secretamente, o voto. Não lhes mentiu. Sendo platónico, acreditava na existência de Formas matemáticas eternas. No boletim, colocou metade da cruz num quadrado e a metade complementar no outro, esperando a união das duas no Quadrado absoluto, em pleno mundo inteligível. Talvez o desejo se tenha cumprido: nenhum dos dois candidatos venceu. Havia um terceiro — que atraía gente menos idealista.

sábado, 28 de setembro de 2013

Dia de reflexão

Diz-se que num acto de reflexão o pensamento se dobra sobre si mesmo. Hoje, consta, é «dia de reflexão». Talvez a manhã se dobre sobre a tarde e vice-versa. Talvez a atmosfera se encha de questões filosóficas: «Quem somos?», «Donde vimos?», «Para onde vamos?» — e outras de análogo teor antropológico. Talvez os cidadãos menos introspectivos sejam por elas arrastados para exercícios que os colocam entre a vertigem e o abismo. Mas amanhã já terão esquecido o susto.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Fusão

Anos de meditação tornaram-no capaz de se fundir na Unidade, como açúcar mascavado em chá de alecrim. Se pressentia aborrecimentos ou pequenas catástrofes, pumba, fundia-se na Unidade. Mas uma percentagem de si permanecia imune à fusão: o indicador direito. Este mantinha-o ligado à pluralidade, apontando-lhe os caminhos de ida e volta. Certo dia, ficando o nariz a substituí-lo, também tal dedo foi conhecer a Unidade. Regressou transbordante de ideais: passou a apontar caminhos a toda a gente.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Acerca da matéria

Escreve António Gedeão que «o Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma». Garante Ernest Rutherford que «o átomo é sobretudo espaço vazio». Deste modo, a matéria revela-se uma profunda escassez. Deveria, pois, ser fácil alcançar o nirvana — e outros vácuos igualmente gratificantes. Deveria também constituir autêntico milagre o facto de sabermos onde estão os objectos. Todavia, pelo contrário, a chamada «realidade empírica» mostra-se frequentemente excessiva. Ou então ela é um excessivo milagre que nos passa, afinal, despercebido.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Espelhos

Um poeta da Geração d’Orpheu entrou numa casa de banho pública, onde existia um espelho capaz de fixar imagens e palavras. Retirou do bolso um espelho mais pequeno e fez aquele jogo de reflexos que anula simetrias. Proferiu, em simultâneo, um verso: «Eu não sou eu nem sou o outro.» O espelho maior assimilou tudo. Desde então, se alguém, mirando-se a ele, perguntasse «Quem sou eu?», obtinha esta resposta: «És dois espelhos — ou “qualquer coisa de intermédio”.»

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O terceiro animal

Isaiah Berlin destacou o aforismo de Arquíloco: «A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante.» A frase parece inventada pelos ouriços — para poder ser citada pelas raposas. Acrescente-se um terceiro animal: o caracol. Este molusco sabe poucas coisas, mas duas muito importantes. Sabe que é um dos bichos mais lentos: todos o constatam. Sabe também que é um dos bichos mais rápidos: já chegou ao destino e ainda mal saiu de casa.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O Ser

Segundo Parménides, o Ser — que não se reduz a entidades vivas, ideias gastas ou pipocas estaladiças, antes engloba a totalidade do que existe — encontra-se imóvel. Movimento e pluralidade constituem ilusões dos sentidos. Movo-me de carro enquanto reflicto sobre tais ilusões. Concluo que nunca o Imóvel — que é igualmente o Uno — conseguiria gerá-las se não se movesse também. Paro entretanto: um indivíduo parece querer atravessar a passadeira. Parece, mas nem sequer se move. Eis o Ser de Parménides.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Setas

Tanto o computador nos habitua a uma setinha azul, curva de aspecto, capaz de «anular a introdução», que instintivamente a procuramos para «anular» também o que de asneira «introduzimos» no quotidiano exterior ao Word. Em vão, no entanto, se demandará aí tal dispositivo de reversibilidade. A linha do tempo desconhece as setas curvas e azuis que neutralizam o sentido indesejado. Ela assemelha-se mais, enquanto flecha inexorável, às setas brancas sobre fundo azul — que indicam o sentido obrigatório.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Os lugares de Setembro

«Em Setembro, onde estarei?» Tal pergunta, nesta altura, colocam-na milhares de professores (entre eles me incluo). «Numa qualquer escola do rectângulo — se nalguma», eis a genérica resposta. «Um dia de cada vez!», recomendam os sábios. Afinal, o Ministério da Educação apenas almeja fomentar nos docentes a vivência absoluta do eterno hoje — e o espírito indomável de aventura. Pessoalmente, dispenso a gentileza. Volto à questão: «Em Setembro, onde estarei?» «“Setembro”, agora, é com inicial minúscula», corrigem-me os entendidos.

domingo, 28 de julho de 2013

Sobre o «agora»

Nem sempre os especialistas no tema — como Eckhart Tolle — distinguem com rigor o «agora» enquanto ponto em que eternamente se está do «agora» enquanto ponto em que é desejável que se esteja. No primeiro caso, o conceito é de origem factual; no segundo, é de natureza valorativa. Pretende-se, claro, que «ser» e «dever ser» coincidam. Mas há quem acredite «viver no eterno agora onde tudo está bem» e sinta repugnância ao notar que pisou bosta de vaca.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Memória superlativa

Chamava-se Salomon Shereshevsky. Alexander Luria conta-nos que ele dispunha de uma memória capaz de, numa espécie de fusão sinestésica, fixar todos os pormenores da sua vida. Apesar desta aptidão assombrosa, ou melhor, por causa dela, Shereshevsky tinha, por vezes, dificuldade em recordar caras e em identificar vozes conhecidas. «Elas mudam muito», afirmava. Levada ao extremo, a memória não se limita a fazer durar o que sabemos fugaz: descobre a subtil fugacidade do que se nos afigura duradouro.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Temporalidades

Adoptara duas breves máximas — para tornar as suas inquietações mínimas. A primeira — «Não sou o que fui» — permitia-lhe atenuar a acidez do remorso. A segunda — «Só existo aqui e agora» — garantia-lhe um razoável domínio sobre medos e ilusões. Disciplinado por tais axiomas, demorava-se em pormenores que outros achariam irrisórios, colhendo dessa prática desassombrados êxtases. Quem lhe notava aquele entusiasmo, sinal de que vencera o passado e se instalara apenas no presente, costumava dizer: «Este indivíduo tem futuro.»

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Regresso ao passado

As palavras «Se eu tivesse a tua idade e soubesse o que hoje sei...» parecem constituir dois heptassílabos de uma quadra que teima em ficar a meio. É compreensível: as reticências aí implícitas não funcionam, em geral, como indício dos esplendores da virtude. O consequente abstracto desse antecedente concreto até poderá ser: «Tomaria a liberdade de dispensar mais a “lei”.» Convém, no entanto, admitir esta hipótese: o regresso ao passado, ainda que lúcido, nunca nos tornaria imprevisíveis.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

O infinito e um instante

Dividindo por zero a unidade, Bhaskara obtinha o imperceptível infinito. Também lograra calcular o instante em que os deuses consentiriam as núpcias da filha, destinada ao celibato segundo previsões astrológicas. À queda da última gota do vaso superior da clepsidra deveria suceder o «sim» de Lilavati. Mas uma pérola desprendera-se-lhe do colar, indo impedir a passagem da água derradeira. O desejado instante copiara o infinito: surgira sem o dizer, durara sem se mostrar, partira sem ser notado.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Acta existencial

Numa hora morta, reuniram-se os eus de uma pessoa viva, a fim de darem cumprimento à seguinte ordem de trabalhos: averiguar se existe um eu permanente. Evocaram-se filósofos, citaram-se poetas, recordaram-se místicos. Concluiu-se que «só ao tempo cabe decidir». Mas ele não foi convocado. Nada mais havendo a tratar, deu-se por encerrada a reunião, da qual se lavrou a presente acta, que, lida e aprovada, vai ser assinada por mim — e pelo último a deixar a sala.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Da curteza dos dias

Pesquisas esotéricas asseguram que, em virtude do «aumento da frequência vibratória do planeta», os dias — note-se que os relógios se vão adaptando à novidade — são cada vez mais curtos, e facilmente o percebemos. Mas, se «vibra» a Terra, tudo na Terra «vibra»: clepsidras, gestos, suspiros, tarefas, sonhos, embirrações, não havendo um termo comparativo susceptível de nos permitir dar conta da mudança. A situação permanecerá obscura se admitirmos que, para lá do orbe, o ardor «vibratório» é semelhante.