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terça-feira, 5 de janeiro de 2016

A timidez e o ‘piropo’

Numa conversa alheia a que assisto no Facebook como numa esplanada de café, com a mesma indiscrição semi-involuntária, alguém, uma mulher, diz de si mesma:
«Eu sou um típico caso de pessoa tímida, não gosto muito que olhem para mim, mas sei que isso é um defeito (…)»
Esta confissão e autocrítica associam-se a um conjunto de argumentos contra a penalização das propostas importunas de teor sexual (por preguiça designadas como ‘piropos’), um processo que a mesma mulher, jovem e com formação, considera promovido por «feminazis» (fêmeas ao que parece com vontade de controlar os homens).
É sintomático que alguém venha criticar este aditamento legislativo ao artigo 170.º do Código Penal considerando um defeito a sua própria timidez (ou seja, o seu mal-estar com a importunação). É sintomático porque, apesar do tom de bravata no resto do discurso, denuncia uma cultura de submissão, afinal o terreno fértil onde o comportamento intrusivo tradicional, sem respeito pela individualidade e pela sensibilidade do outro, se permite dominar, com direitos de cidade superiores, por supostamente a extroversão, incluindo este tipo de extroversão opressor, ser a condição ‘normal’, a condição das pessoas sem defeitos.

Não, cara facebookiana desconhecida, a sua timidez não é um defeito, é uma característica, aliás comum, que cabe a todas as outras pessoas respeitar. Defeito é a incontinência do ‘piropo’ importuno. Defeituoso é o caracter de todos aqueles que acham legítimo importunar outras pessoas com seja que tipo de pensamento ou desejo lhe vai na cabeça ou nas partes.

Teria sido necessário legislar sobre isto? Eventualmente não. Se os tímidos não achassem defeituosa a sua timidez e os importunadores tivessem suficiente educação e carácter para controlar a sua líbido excessiva. Mas se as vítimas nunca tivessem de recalcar a sua condição e os opressores jamais oprimissem, todo o Estado de Direito, com todos os seus códigos, toda a sua artilharia legislativa, seria pouco mais do que uma redundância, não?

Existem várias formas de uma sociedade prevenir comportamentos perturbadores da integridade alheia sem necessidade de recorrer ao braço pesado da Lei. A censura familiar e social pode ser uma delas. Quando esta falha, talvez devêssemos apreciar haver no país capacidade legislativa independente da vox populi. Se a vox populi prefere defender o direito de alguém a ser grunho (ou pior do que isso) contra a liberdade do outro, talvez aqueles que elegemos, numa democracia representativa, tenham o dever de se elevar acima da miséria moral e aprovar leis que defendam os tímidos do despotismo da ‘normalidade’.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Lição n.º 1

Muitas pessoas (e tantas delas são gente da informática ou das novas tecnologias) pensam que regras e convenções da escrita são uma espécie de capricho de gente conservadora, quando não uma demonstração de intolerância ou fascismo em relação a quem tem uma atitude mais «descontraída» com a língua e a escrita. Suponho que essas pessoas lêem pouco, ou apenas lêem o que escrevem. Ou ignoram regras e convenções quando escrevem porque na verdade se estão nas tintas para quem as vai ler.
O problema é quando algumas destas pessoas escrevem textos que, por uma razão ou outra, nos vemos forçados a ler. A sua forma «descontraída» de escrever geralmente significa que nós não vamos ter uma leitura descontraída, mas trabalhosa, aborrecida, tentando decifrar a sintaxe para conseguir chegar à semântica. Irrita-me quando antes de perceber a ideia ou argumento tenho de parar para perceber a frase. E irrito-me mais quando, depois de finalmente perceber a frase, descubro que não há uma ideia ou argumento (o que também é frequente).
Os praticantes desta «escrita descontraída», mesmo que pensem o contrário, são meros principiantes das letras e da comunicação. Não se relacionam suficientemente com a língua e a linguagem para perceber duas coisas:
1) Que as frases que escrevemos saíram da nossa cabeça e, por isso, somos capazes de entender facilmente um texto nosso, mesmo que ele esteja descuidado, mal pontuado, sem acentos e que ao escrevê-lo lhe tenhamos comido uma parte das palavras. Quem alguma vez se deu ao trabalho de rever a sério o que escreve sabe que é assim.
2) Aquilo a que noutros escritores chamamos de «escrita simples» é geralmente uma escrita bastante trabalhada — e que não ignora regras e convenções. Este tipo de «escritores simples» trabalha arduamente os textos para que a comunicação resulte límpida, transparente, sem dar trabalho desnecessário ao leitor (a não ser o que resulta da compreensão das ideias expressas).
Meus amigos: aspas, acentuação, vírgulas, pontos, travessões, itálicos (em estrangeirismos e títulos, por exemplo), concordância em género e número, correcta conjugação e aplicação de verbos, escolha rigorosa de adjectivos, etc. não são coisas antiquadas, desnecessárias, descartáveis. Não são, sequer, caprichos estilísticos de escritor. São a essência formal da comunicação escrita. Se não têm nada a dizer, não escrevam. Se acham que têm alguma coisa a dizer, lembrem-se que estão a escrever para seres que não convivem intimamente com os macaquinhos que vocês têm no sótão.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Deixem o pimba em paz? As artes e o público

À saída do espectáculo DEIXEM O PIMBA EM PAZ (uma reinvenção brilhante de Filipe Melo e Nuno Rafael a partir do hegemónico repertório pimba) alguém registou duas reacções dos espectadores: a dos que gostaram porque os novos arranjos eram música genial e a dos que gostaram porque dava para reconhecer as cantigas originais.
Estas reacções do público parecem demonstrar que é possível fazer arte consensual, ou mesmo arte de qualidade para uma imensa maioria. Dar-se-ia assim razão a Filipe La Feria, que terá dito na noite dos Globos de Ouro que «o segredo das casas cheias é o talento».

Mas é precipitada a conclusão sobre a consensualidade — e, claro, está infelizmente errada a afirmação laferiana. Se voltarmos às reacções daquele público, vemos que o que agradou aos mais exigentes (ou menos engajados no género) foi apenas a magnificência dos arranjos, a sua qualidade de coisa nova e boa em si mesma, e o que agradou aos fãs das canções originais foi uma certa resiliência da coisa pimba, o conforto da sua permanência no novo objecto artístico. Não há exactamente nisto um consenso estético.

Posição diferente, e mais perspicaz (ou honesta), da de La Feria tem um espectador do Theatro Circo, que, indignado, se queixava há dias na página de Facebook daquela sala que «tudo o que fuja 1 milímetro ao mainstream (quase) não tem público».

A recepção das artes, para a maioria das pessoas, tem muito menos a ver com méritos artísticos de criadores e intérpretes do que com factores externos, como a psicologia de massas. É muito menos uma questão artística do que sociológica, cultural (no sentido de educação, tradições, costumes, hábitos, rituais, valores, ideologia, preconceitos, imaginário, etc.). O espectador português não vai em massa aos espectáculos por interesses estéticos. Ou, dito de outro modo, a estética das multidões não é artística, mas, digamos, étnica, identitária, gregária. O espectador que integra grandes plateias vai aos espectáculos em busca de entretenimento, e vai também para se inscrever no grupo, se incluir no ritual, se saber parte da encenação social da comunidade, poder dizer também fuitambém estivetambém vi, também sou, faço parte. É o mesmo impulso emulador que leva o turismo de massas ao Algarve, ao Brasil ou ao resort na República Dominicana. Não é necessariamente a qualidade das praias que o leva ali, mas o conforto e a excitação de ir onde todos vão, de pisar onde os outros pisaram, de não ficar para trás, de não ser excluído, de não ser aquele que não foi, não esteve, não viu, não fez parte, aquele que não é. Um local ou um espectáculo são declarados objectos «de excelência» para um colectivo pelo mesmo mecanismo gregário que junta as pessoas em volta da Selecção Nacional em dia de vitória (antigamente era também na nave da igreja em dia de terramoto), ou que as põe a vestir em cada estação roupa igual sem lhe chamar farda ou uniforme.

Malgré La Feria, o talento artístico, portanto, tem pouco a ver com a presença massiva do público nos espectáculos — assim como a ausência do público não é geralmente uma posição estética ou crítica em relação a um espectáculo. No tempo de Shakespeare, ou na Lisboa de Garrett, o público ia em números significativos ao teatro, mas isso não significa que gostasse ou percebesse mais de teatro do que o público de hoje. Significa sobretudo que isso era o que a comunidade fazia com naturalidade naquela altura. Ia-se ao teatro, era o rito social. (E já então as pateadas e as aclamações conseguiam frequentemente não corresponder ao mérito das peças.)

Estas considerações não levam à conclusão de que o público é inepto, mas à de que, aglomerado em multidões, o seu critério se dilui, se transfere da apreciação estética para a aprovação social — e à de que é susceptível de manipulação, mais ou menos consciente ou maquiavélica. Talvez ainda haja encenadores ou produtores que contratam claques para aplaudir as suas peças ou patear as dos adversários, mas o campeonato já não se joga aí. As rivalidades entre criativos são, aliás, deste ponto de vista, ridículas: os criativos (se usarmos o termo também para adjectivar a classe) estão infelizmente todos do mesmo lado: o lado dos sem público (para dramatizarmos um pouco a coisa). Clássicos ou contemporâneos, apologistas do texto ou da performance física, indefectíveis do sentido ou niilistas absolutos, conservadores ou ferozes experimentalistas — não depende dos criativos ter espectadores às centenas ou moscas nas suas salas (continua a dramatização). A afluência em massa de espectadores não se fará pelo brilhantismo do que se apresenta no palco mas pela particularidade de o local, o espectáculo, ou algum seu protagonista terem sido eleitos instrumentos de inscrição social. As pessoas aparecerão numerosamente se sentirem que vão ali, divertir-se, é certo, mas sobretudo receber a bênção da inclusão, ser ungidas de visibilidade e aceitação, aparecerão se ali lhes for dada existência, uma existência de corpo celeste que orbita e depende da sua estrela. Este género de espectador, o género que pode constituir plateias numerosas, aparece num espectáculo um pouco como um concorrente no Big Brother: à espera de ser premiado por existir ou estar. Percebe-se que um e outro mantenham uma boa relação.

Um espectáculo que tenha uma figura do tal mainstream, famosa (famosa por exemplo pela sua proverbial falta de dons) corre muito mais o risco de esgotar do que um que tenha várias pessoas apenas talentosas. Mas isto continua a não ser suficiente para classificar o público de inepto, porque em rigor ele não está neste contexto a exercer função de público, não de público de artes. A sua atenção não está virada para o objecto artístico, mas para o comércio social. O público aparecerá para testemunhar o fenómeno, coleccionar a memória da experiência, sentir que não ficou de fora do rito — não para fruir uma melodia, um texto, uma interpretação.

Não sendo necessariamente inepto, o público que apenas funciona em massa também não é, todavia, curioso. E também isso explica a sua ausência de tantos espectáculos, como referia o espectador lá em cima. Este público não dá o benefício da dúvida a um espectáculo que ainda não tenha sido visto e aprovado por centenas ou não tenha em si os elementos que garantem essa aprovação, os elementos da previsibilidade (ou seja, um cúmulo de repetições e clichés). Este público não vai por sua iniciativa espreitar um jornal, um site, um cartaz ou um palco onde o que esteja em causa seja um espectáculo novo e não um espectáculo aclamado. O que naturalmente traz um problema para autores ou espectáculos ainda não sancionados por uma multidão, mesmo que excelentes.

Não estando disposto «a pagar para ver», a arriscar num espectáculo ou artista desconhecido, não procurando realmente experiências estéticas mas catarse social, e sendo incapaz de gerir o seu próprio cânone sem o submeter à validação geral, este público tende a confundir critérios estéticos com atributos não artísticos. O «renome» de um artista (cuja origem o público não investiga e cujo prazo de validade não verifica) substitui os seus dotes vocais ou coreográficos, a sua inspiração a cada novo trabalho; o género praticado por um par de vedetas é, por sinédoque, uma coisa boa, mesmo que os demais praticantes sejam medíocres; a «visibilidade» mediática é alvará superior ao diploma do conservatório, à opinião da crítica especializada ou ao arbítrio individual, pessoal; uma grande quantidade de visualizações ou testemunhos «promete» que a experiência será positiva e suspende desde logo o juízo próprio, garante por isso a posterior ratificação.

O segredo das casas cheias não é, portanto, o talento, mas o ter-se bafejado o objecto com o hálito saturado das multidões ou com o seu sucedâneo laboriosamente preparado pelos alquimistas de serviço.

E os alquimistas de serviço não são os criativos. Quem hoje manipula o público, para retomar a prática oitocentista referida atrás, não são os directores ou os donos das companhias. A «inscrição social» que alguma arte pode proporcionar e que a faz ser procurada por multidões, na sua freudiana necessidade de unção e integração, não está nas mãos dos criadores artísticos, mas nas dos media, sobretudo nas da TELEVISÃO. O pimba não sairia do relativo anonimato das feiras e romarias de província, como o fandango e a chula, se a televisão e Herman José não se tivessem apaixonado por ele. (Em contrapartida, também Filipe Melo e Nuno Rafael não teriam tido provavelmente vontade de aplicar o seu génio a material tão insípido e monótono se ele se tivesse mantido circunscrito.)

A televisão não é só the drug of the nation — é para as massas o árbitro da elegância. Ninguém pode esperar que o público seja massivo no teatro se o teatro está ausente da televisão.
E a influência da televisão é tanto maior quanto as elites, duma maneira ou doutra, participam dela.

Os GLOBOS DE OURO (como noutra dimensão os Oscares) são reconhecidamente um miserável Panteão das Artes, são uma cerimónia de pechisbeque de onde a crítica, o juízo estético e tantas vezes o mero bom gosto estão ausentes. Contudo, uma boa parte dos que não reconhecem autoridade à cerimónia passa a noite a acompanhá-la, pela TV, pelo Facebook, pelo Twitter, por sms, pelas informações de amigos. Esta elite de excluídos dos Globos (excluídos porque não foram convidados ou auto-excluídos porque os desprezam) fica de fora a gozar ao detalhe o acontecimento ou a odiá-lo como a um amor antigo — e participa assim do mecanismo de entrosamento ou coroamento social que ele constitui, porque a caricatura, o insulto ou o ressabiamento mal disfarçado entram no metabolismo do monstro, fazem-no crescer.

Os Globos de Ouro servem para ungir os premiados não necessariamente pelo seu mérito, mas pela conveniência que o acto acarreta. Conveniência para o canal. Alguns prémios são apenas a confirmação do critério (encontrar o premiado que valide a ideia, o conceito que se quer valorizar). Outros, frequentemente, são atribuições que, numa inversão de funções, procuram garantir notoriedade ao próprio programa e ao canal, procuram inscrevê-los socialmente. O árbitro quer definir o que é elegante — e quer que os elegantes lembrem a todos quem é o arbitro.

É esta espécie de tautologia que está na origem do afunilamento pimba das televisões. (Repare-se que pimba já não é apenas aquele género musical brejeiro e uniforme, é uma forma de estar, um amarfanhamento social que faz, por exemplo, com que se torne difícil distinguir, pelo lado do público, um concerto de Tony Carreira de um de Abrunhosa.) A existência de audiências fragmentadas por gostos, interesses ou divergências estéticas seria perigosa e dispendiosa para os canais televisivos. Perigosa porque estimularia mais o zapping, dispendiosa porque exigiria mais conteúdos, mais formatos, mais inventividade, mais inteligência, mais talento. O pimba não é necessariamente ou apenas uma simpatia natural dos proprietários e directores de canais — é o fruto do seu esforço para impor pelo facilitismo a marca e lucrar mais com menos investimento. O gosto único é, talvez, do ponto de vista das televisões, menos uma ambição ideológica do que um instrumento de economia. Em todo o caso, faz sempre parte de uma estratégia de poder.

E falar de poder remete-nos para o ESTADO. Que papel o Estado há-de reservar para si nesta relação difícil entre público e artes?
Antes de mais, o Estado deveria definir se lhe interessa ter um papel. Atendendo a que já não há mecenas (os mecenas, como se sabe, eram o Estado na Antiguidade Clássica e na Renascença, já que de uma forma ou de outra viviam dos rendimentos que obtinham do povo), atendendo a estas circunstâncias, eu diria que sim, que ao Estado interessa ter um papel, mas eu sou um antiquado, um conservador. Tomemos o estado de direito, por exemplo. O estado de direito é uma coisa dispendiosa, não dá lucro, mas é talvez a maior conquista civilizacional da humanidade. Nenhum governo, por mais bruto que seja, se atreveu (para já) a considerar o estado de direito obsoleto ou a achar que o ministério público e os tribunais deveriam ser privatizados, financiados pelos que os demandam, sem qualquer participação do Estado. Ora, as artes e o direito caminharam, historicamente, ombro com ombro. Dialogam intimamente, do ponto de vista filosófico. A capacidade de abstracção, o sentido crítico, o debate, a independência de raciocínio e de opinião, a criatividade, a imaginação, tudo isto que nos trouxe ao século XXI são características que a humanidade apurou com o tempo e que de algum modo foram também estimuladas, potenciadas, exercitadas pelas artes. Seria um pouco pretensioso (e perigoso) da nossa parte achá-las agora dispensáveis.

O Estado, de forma activa ou por interposta legislação, com maior ou menor convicção, é (tem de ser) o garante último da biodiversidade, da preservação da memória, dos direitos das minorias e da alternativa democrática. Se não tivermos outras ideias para as artes, diria que no mínimo devemos encaixá-las nestes conceitos, tê-las em conta do ponto de vista ecológico (criando «reservas territoriais» onde elas possam medrar), do ponto de vista social (garantindo um rendimento de sobrevivência para intérpretes e espectadores, podendo estes ser providos em géneros pelos primeiros), do ponto de vista histórico-patrimonial (desenvolvendo uma política de «património vivo» para salas de espectáculos e galerias) e do ponto de vista político-filosófico (assegurando a possibilidade de propostas alternativas e o direito democrático à livre escolha, à escolha livre de proselitismos televisivos).

Ironias à parte, que tipo de reflexão deve o Estado fazer sobre as artes e o público? Perante a constatação de que não vão multidões ao teatro, uma reflexão sobre artes não deveria concluir que o teatro deve ter menos apoios (nem aumentar o IVA dos bilhetes). Do mesmo modo que aos governos preocupa a abstenção (pelo menos envergonham-se de confessar que não preocupa), devia preocupá-los a ausência de público no teatro. A qualidade de uma democracia sai talvez prejudicada se as pessoas não votarem, mas a qualidade do voto sai prejudicada se as pessoas não tiverem uma relação íntima com as artes e o pensamento informado e crítico que elas estimulam. Uma reflexão sobre artes, portanto, debruça-se sobre como levar mais público ao teatro.

Um governo não é um canal de televisão. Não pode ter como objectivo uniformizar a sociedade para melhor a governar e para governar mais barato. Governar mais barato pode ser uma triste necessidade, não uma aspiração. Daí que a um governo que queira ser realmente útil não possa deixar de se colocar duas questões: como levar mais público às artes (ou seja, ao pensamento crítico) e como (que é quase o mesmo) contrariar o proselitismo pimba das televisões.
A resposta à segunda questão passaria por açaimar ligeiramente, legislativamente, as TVs, mas isso é certamente pouco democrático e pouco liberal.
A resposta à primeira questão, que a prazo também responderia à segunda, reside em grande parte no ensino, essa instituição que o Estado (para já) ainda controla.

Com a entrada do ministro Crato, um intelectual que quase toda a gente estimava, o ENSINO ficou ainda mais de costas voltadas para as artes. (Foi assim com este governo, transformou desde o início pessoas interessantes em factótuns da política bulldozer.) Mas em rigor não é o actual ministro que deve ser culpado por o ensino não educar as crianças para as artes, para a estética, para a literatura, para o pensamento crítico. O mal é antigo. Na ausência de uma boa política institucional, as escolas foram deixadas à livre iniciativa (o que só por si não é um mal e em muitos casos teve resultados positivos) e essa ausência de enquadramento conduziu geralmente ao voluntarismo. A ênfase passou em poucas décadas de levar acriticamente os miúdos ao teatro, por exemplo, de os deixar enfiados e contrariados durante uma hora numa plateia a ver o que quer que fosse, para a originalidade de os levar directamente para o palco, ainda mais acriticamente e com frequência sem qualquer relação com a sua vocação. Há hoje no país centenas ou milhares de crianças que estiveram mais vezes num palco (calorosamente ovacionadas, e por isso induzidas em erro, pela família e os amigos) do que numa plateia, e em tantas das ocasiões em que estiveram na plateia estiveram a ver e a aplaudir sem critério crianças como elas. O equívoco tem as suas raízes antigas no pensamento muito esquerdista e igualitarista de que todos temos talento, todos temos criatividade, todos temos um poeta ou um bailarino dentro de nós. Depois foi continuado pela bigbrotheriana ideologia, ainda mais «democrática», de que todos temos direito à fama, mesmo que não façamos absolutamente nada para a merecer. A televisão, claro, contribui fortemente para isto, com as suas chuvas de estrelas, os seus inesgotáveis programas de talentos, e, não raro, os seus shows para macaquinhos de imitação.

Como resultado desta soma de equívocos — nem todos conscientes ou mal-intencionados, conceda-se — temos hoje grandes fragmentos geracionais que não sabem distinguir o mérito, o talento, a criatividade, a originalidade. Que não conhecem a história das artes nem têm com elas qualquer relação intelectual ou de afecto. Que «detestam» figadalmente o que não conhecem (e é quase tudo) e idolatram qualquer frivolidade que se pareça longinquamente com o «talento» e o gosto promovido pelas TVs.
Há muitas excepções a este cenário miserável, mas o ensino não devia viver apenas de iniciativas individuais (e difíceis, desprezadas) de professores esclarecidos e esforçados.

As artes no ensino não são importantes porque, na tal perspectiva laferiana, podem assegurar «casas cheias» no futuro (as estatísticas são outro equívoco), não é esse o ponto. A formação artística que o ensino pode e deve proporcionar não deve estar necessariamente focada em criar «públicos» (isso será um resultado natural) nem em criar artistas (a vocação não se incute). Prioritárias a isso tudo são a sensibilidade, o espírito crítico, a capacidade de abstracção, a autonomia de pensamento e o conhecimento, para os quais as artes são um veículo útil.

As artes não se fruem sem uma boa parte de individualidade, de concentração, de existência intelectual própria e capaz de se alhear dentro de si mesma pelo período de um andamento musical, de um monólogo, de uma sequência coreográfica, de um capítulo de um livro. Infelizmente as escolas não favorecem isto (que por natureza não é fácil) e o resultado é termos já hoje uma ou duas gerações que não se imaginam fechadas numa sala por uma hora sem poder conversar e gritar, sem trocar sms, sem fumar um cigarro ou beber um copo. As salas de cinema renderam-se a esta forma de estar e a própria Hollywood produz há muito filmes que não exigem atenção permanente ou perspicácia. Nos teatros, os espectáculos de massas são geralmente as comédias, os musicais ou os concertos, produções, que, se não dão para o cigarrito e a mini, sempre permitem a interacção na plateia e com o telemóvel durante as representações.

Face a tudo o que ficou dito, o maior paradoxo é que talvez nunca como hoje Portugal tenha tido nas artes tanta gente talentosa, criativa, cosmopolita, com bom gosto e formação sólida. Enquanto nação, não estamos à altura dos nossos actores, bailarinos e músicos. 

terça-feira, 6 de maio de 2014

Educação, esse luxo supérfluo

Uma notícia no Público de hoje faz saber (para os que andam distraídos) que «Austeridade nas escolas teve o triplo da dose prevista» no memorando de entendimento com a Troika. A mensagem política é clara: «A Educação é supérflua, é um luxo».

(Se em tudo se cortou mais do que nos era pedido, mas mesmo assim só se alcançaram os objectivos do défice porque, de desaire em desaire, esses objectivos foram sendo relaxados, surpreende que ninguém com responsabilidade discuta com seriedade o que correu mal. Ou talvez não surpreenda, se quem tem responsabilidade não tem seriedade.)

O artigo no Público é bastante esclarecedor, nomeadamente quanto ao aumento brutal da burocracia (contrariando a anunciada autonomia), mas tem uma frase que, talvez tirada do seu contexto original, é enganadora. A certa altura, um director escolar queixa-se da degradação das condições de trabalho, dizendo: «Neste momento, os professores só têm tempo para dar aulas, não têm tempo para mais nada». Com tal desabafo, o entrevistado queria certamente dizer que o aumento da carga de trabalho estava a privar os docentes de tempo para terem vida própria e familiar, mas a frase, assim, é ambígua, pois dá a ideia errada de que aos professores só é pedido que dêem as aulas. Ora, pelo menos nas escolas de que tenho conhecimento, passa-se precisamente o contrário: o aumento brutal da burocracia, de que se queixam os directores, transbordou completamente pela hieraquia abaixo. Os professores passam cada vez mais tempo a fazer “tretas” burocráticas que lhes tiram tempo e ânimo para o que realmente interessa: ensinar. Tais mudanças em nada beneficiaram os alunos.

Fui das pessoas que saudaram a chegada de Crato ao Ministério, por conhecer as críticas (justas) que fazia à Educação. Hoje considero-o um traidor, um mercenário. O economista (que ele também é, de formação de base) venceu sobre o pedagogo.

O sistema é gerido politicamente de forma terrorista.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

O retrato do escritor

Já escrevi sobre isto algumas vezes: é um erro que manuais escolares, jornais, revistas literárias, contracapas e badanas ou separadores televisivos (estes já só em dias de centenário) passem o tempo a mostrar imagens dos escritores clássicos enquanto velhos. A escrita literária não dispensa, geralmente, maturidade e sapiência, mas não é uma actividade reservada a anciãos, como a iconografia editorial sugere. Pedagogicamente, esta tradição ou inércia tem sido catastrófica. A juventude está por vezes disponível para a literatura, mas é sempre avessa a projectar-se a si própria na terceira idade. E o que a imagética institucional tem feito é dar à juventude a desculpa de que ela precisa para remeter os clássicos para a cave bafienta da paleontologia (sem que Hollywood tenha feito com os escribas jurássicos o mesmo marketing que fez com os dinossauros).
Somado o fosso geracional ao fosso histórico — tão fundamente cavados pela passagem do tempo, a invenção da cor, a evolução do trajar e do pentear, e pelas escolhas preguiçosas dos responsáveis gráficos —, é uma verdadeira surpresa que hoje alguém com menos de trinta anos se interesse por literatura com mais de vinte anos (quando já tão dificilmente se interessa por literatura tout court).
É certo que em alguns dos casos mais antigos não há retratos disponíveis do escritor enquanto jovem. Sobram uma estatuária amputada, umas gravuras que parecem de santinhos da igreja, de duvidosa correspondência ao modelo biológico. Mas, havendo pudor de fazer passar esta iconografia por um processo inverso ao da Maddie (um rejuvenescimento especulativo computadorizado), restavam duas soluções: assegurar-se que de autores mais recentes se publicavam sobretudo as fotos menos envelhecidas, para contrabalançar, ou optar-se por biografias em vez de imagens, biografias que insistissem particularmente no facto de os autores terem sido jovens e humanos como todas as outras pessoas.
Porque a verdade é que a maioria dos escritores e pensadores não teve de esperar pelos sessenta ou setenta anos para escrever as suas melhores obras — e é isso que a juventude em formação precisaria imediatamente de saber, se não por imagens, por palavras. Que, tirando José Rodrigues dos Santos, a literatura é coisa de gente interessante ou normal, viva ela em que século viva.
Para ser verdadeiramente pedagógico, um livro ou manual escolar deveria apresentar a imagem do escritor à época que escreveu o texto. Junto com o cadastro policial e político, testes de alcoolémia, testemunhos de rivais, resultados de análises às DST e cartas de ex-amantes ressentidos/as.

domingo, 13 de abril de 2014

Ai que saudades da «cultura de excelência» do pré-25 de Abril!

Leio no Público que Durão Barroso veio lembrar-nos da «cultura de excelência» promovida nas escolas antes do 25 de Abril.

Senhor Dr. Durão Barroso, não era cultura de «excelência» — era a cultura de «Sua Excelência», era a cultura da exclusão.
A escola pública no Estado Novo não procurava detectar o talento onde quer que ele existisse, levando-o à excelência. A escola pública do Estado Novo procurava perpetuar o statu quo: garantir que os pobres se mantinham calados e sossegados — e pobres, como Deus quis.

A educação, para lá dos quatro anos da Primária (que a falta de fiscalização não garantia, sequer), estava fundamentalmente reservada às classes média e superiores — e nesses tempos a imensa maioria da população não alcançava, nem de longe, o nível da classe média.
Não é que a lei proibisse ipsis verbis o acesso das classes populares a educação suplementar, mas a prática do regime garantia que assim fosse, para todos os efeitos. As poucas famílias de classe mais baixa que conseguiam providenciar uma educação liceal a um dos seus filhos faziam-no com grande esforço, à custa de muito sacrifício: em geral, apenas o filho mais novo, na melhor das hipóteses, teria a oportunidade de prosseguir os estudos, pois era preciso que todos os irmãos e irmãs mais velhos trabalhassem (como moços de recados e marçanos, como criadas de servir e ajudantes de costureira) para que houvesse dinheiro à justa para suportar as despesas dessa escola promotora de «cultura de excelência».

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O meu pai foi um excelente aluno. Poucos meses depois de iniciar a 1.ª Classe, o professor percebeu que ele não só sabia toda a matéria desse ano (já dera duas voltas ao livro), como sabia de facto mais do que os alunos da 2.ª Classe. Homem sábio, passou-o logo para essa turma mais avançada, razão pela qual o meu pai concluiu a Primária em apenas três anos.
Como na altura a escola pública, como é sabido, promovia uma «cultura de excelência», a sua condição social ditaria que não prosseguisse os estudos. O meu avô precisava de um par de braços extra a trabalhar na sua pequena carpintaria e no meio hectare de terreno arrendado que ajudava no sustento das seis bocas da família.

Mais tarde, já com 18 ou 19 anos, o meu pai resolveu tentar fazer, como autoproposto, os exames do 2.º ano do curso do Liceu. Preparou-se autonomamente o melhor que pôde, chegando a pagar, com dinheiro penosamente ganho, umas explicações particulares de Francês.
Quando se tentou inscrever nas provas, foi informado que não bastava pagar a já de si pesada taxa de inscrição: precisava de um termo de responsabilidade.

— Termo de responsabilidade? — perguntou o meu pai.
— Alguém que se responsabilize por si, que afiance que está preparado para realizar os exames. Quem o assina tem de ser um familiar seu com escolaridade superior à sua, ou um licenciado.
— Mas responsabilizar-se por quê? Sou eu que vou pagar a inscrição. Se reprovar no exame, quem é que prejudico para além de mim? Para quê um «responsável»?

Era a «cultura da excelência» a funcionar. O meu pai podia discordar o quanto quisesse, as regras eram como eram. (Ai as saudades...)
Na família, mesmo alargada, não havia ninguém com escolaridade superior à dele. Quanto a um licenciado, não sei se o meu pai não encontrou um que se «responsabilizasse» por ele, ou se recusou a humilhação de procurar um. O resultado foi que não pôde realizar os exames, ficando-se pela escolaridade primária. Tudo em nome da «cultura de excelência», pois claro.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Segredos

Era a primeira aula. Decorria a exibição de um documentário sobre «linguagem corporal» quando dois alunos, com inefável reciprocidade, se envolveram aos socos e aos pontapés. Presumindo não estar perante um circunstancial afago, achei melhor intervir. O apaziguamento não foi tarefa macia. Eis, portanto, um começo auspicioso. Bem sei que a linguagem corporal, à semelhança do Cosmos, encerra segredos susceptíveis de deixar perplexa a criatura humana. Mas sempre dispensei que eles se revelassem de forma tão exuberante.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Lapso duplo

Constato: as respostas dos dois testes equivalem-se na perfeição. Pormenor relevante: nenhum dos alunos se lembrou de colocar o nome no espaço reservado para o efeito. Lapso que Freud explicaria sem rodeios: na inconsciente profundeza, qualquer um deles recusou assumir a autoria daquilo que sabia não ser da sua lavra. Deve, pois, ter existido uma cábula comum, ou certo influxo verbal divino, partilhado com rigor, ou uma intervenção do Inefável, que estende o esquecimento sobre os nomes.

sábado, 12 de outubro de 2013

Exercícios

O aluno mantém as costas direitas, a cabeça um pouco descaída para a frente, as pálpebras semicerradas, os olhos fixos num ponto que talvez seja o umbigo do mundo, o centro da galáxia, o âmago da Divindade. Parece mostrar competências avançadas de meditação. Na verdade, executa apenas uma técnica banal de copianço. Alojou a cábula no telemóvel, pousado algures, extensão pós-moderna do corpo e da memória. Surpreendo sete deles entregues a este exercício acanalhado. Até mete dó.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Informações iniciais

Aporta um professor a nova escola. Informam-no de que vai receber uma turma complicada, mas que se trata de um desafio. Preferindo que o deixem em paz, desconhecedor ainda das práticas pedagógicas que fazem ver em cada aluno um diamante a facetar, o docente responde que dispensa semelhantes desafios. Não lhe fica bem. Confrontado com a realidade, descobre que «turma complicada» exprimia um eufemismo e que o tal «desafio» dizia respeito à sua capacidade de sobrevivência psíquica.

sábado, 21 de setembro de 2013

Improvisar, para quê?

Em vésperas da abertura do ano lectivo, o primeiro-ministro asseverou que desta vez não haveria lugar a «improvisos»:

TVI24: «Passos Coelho destaca abertura do ano escolar sem improvisos»

Por uma vez, Pedro Passos Coelho falou a verdade. Em anos anteriores, a improvisação era frequentemente a regra.

Não agora: nada de improvisos. Desta vez, com este Governo, o lema para a Educação é «Que se foda!»:

Público: «CNIPE denuncia casos de crianças com multideficiências impedidas de ir à escola»

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Pelo fim do Ensino Superior público

Agora é oficial e indesmentível: o Governo quer acabar com o ensino superior público.

Não bastavam os constantes cortes nas transferências orçamentais do Estado (que começaram mais de uma década antes de a austeridade chegar ao resto do país), agora a Direcção Geral do Orçamento impôs um tecto máximo às receitas próprias que as universidades e politécnicos podem gerar, além de cativar (isto é, ficar com) parte dessas receitas, obtidas, por exemplo, pela prestação de serviços de consultoria, investigação e desenvolvimento a empresas.

O Governo diminui cada vez mais o dinheiro que entrega ao ensino superior — mas agora passou a uma nova dimensão de ataque: impede também que as instituições arranjem dinheiro por si próprias.

Se a diminuição da dotação orçamental serve o objectivo do défice, a limitação à iniciativa autónoma de financiamento serve que interesses?

Os lugares de Setembro

«Em Setembro, onde estarei?» Tal pergunta, nesta altura, colocam-na milhares de professores (entre eles me incluo). «Numa qualquer escola do rectângulo — se nalguma», eis a genérica resposta. «Um dia de cada vez!», recomendam os sábios. Afinal, o Ministério da Educação apenas almeja fomentar nos docentes a vivência absoluta do eterno hoje — e o espírito indomável de aventura. Pessoalmente, dispenso a gentileza. Volto à questão: «Em Setembro, onde estarei?» «“Setembro”, agora, é com inicial minúscula», corrigem-me os entendidos.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Desmontando alguns mitos da Educação em Portugal

O Público apresenta hoje um estudo da OCDE sobre a Educação. É uma leitura muito interessante e demolidora de certo mitos que se criaram sobre o sector em Portugal.

O jornal apresenta a sua própria infografia de resumo dos principais números, mas infelizmente a disposição dos gráficos facilita mais a comparação entre os diferentes níveis de ensino (pré-escolar, 1.º–2.º ciclos, 3.º ciclo, secundário, superior) do que entre Portugal e os outros países. Por essa razão, apresento os meus próprios gráficos, feitos com base nos mesmos dados.

Em cada gráfico, “PT” (azul) indica a coluna correspondente a Portugal, “OCDE” (vermelho) refere-se à média dos 34 países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (incluindo Portugal) e “UE21” (verde) refere-se à média dos 21 países da União Europeia que são também membros da OCDE (isto é, todos os membros da UE, excepto Bulgária, Chipre, Letónia, Lituânia, Malta e Roménia). Os dados são em geral relativos ao ano lectivo de 2010/2011, estabelecendo-se por vezes comparação com o ano 2000.


Mito #1: O custo por aluno em Portugal é muito elevado

Os dados da OCDE não confirmam esta ideia, bem pelo contrário. Em todos os níveis de ensino — pré-escolar, 1.º/2.º ciclos, 3.º ciclo/secundário e superior — o dinheiro gasto por aluno no ano de 2010 foi inferior (por vezes, substancialmente inferior) ao gasto na média dos países da OCDE ou da UE21.

Em termos meramente financeiros, o sistema educativo português é, por isso, mais eficiente do que o da média desses países: é 1,5% a 28,5% mais “poupadinho”.

Custo por aluno/ano


Mito #2: Portugal gasta uma percentagem demasiado elevada da sua riqueza na Educação

Se os números da OCDE até confirmariam isto no virar do milénio (com Portugal a gastar ligeiramente mais do que os seus congéneres), actualmente já não é verdade. Em termos percentuais (relativamente ao PIB), Portugal gastou em 2010 um pouco menos do que a média dos países da UE21 e substancialmente menos do que a média da OCDE: em termos comparativos, gastámos 3,5% a 15% menos do que os parceiros com os quais nos comparamos. (A poupança nacional aumentou certamente ainda mais com os cortes salariais na Função Pública.)

Despesa com instituições de ensino (em percentagem do PIB)


Mito #3: Os professores portugueses trabalham pouco

O trabalho de um professor não é fácil de aferir, uma vez que não se limita ao tempo efectivamente gasto a leccionar. Mas, uma vez que é este número (horas de aulas por semana, por ex.) que é habitualmente apresentado como prova da suposta ligeireza da profissão docente, comparemos esses números (em termos de totais anuais).

Segundo o estudo da OCDE, com excepção do ensino pré-escolar, os professores portugueses passam mais tempo a leccionar do que o seu colega médio da OCDE ou da UE21. E se a vantagem dos professores do ensino pré-escolar portugueses é ligeira (1,5% a 3% menos tempo passado com os alunos), a desvantagem dos professores nacionais dos restantes níveis de ensino é bem mais substancial: passam 10% a 20% mais tempo a leccionar do que os seus colegas nos outros países.

Número de horas de aulas dadas por professor/ano

O estudo também revela que, pelo contrário, o horário total dos professores portugueses (contando horas lectivas e não lectivas: 1508 h/ano) é bastante inferior ao da média da OCDE (1670) e da UE21 (1600). Isto significa que o tempo contabilizado em actividades não lectivas — como preparação de aulas, correcção de trabalhos e testes, reuniões e investigação — é inferior em Portugal.

Neste capítulo (e com excepção das reuniões), há que ter em conta que a contabilização é bastante difícil de fazer, pois corresponde a trabalho em grande medida feito em casa, individualmente. Não contabilização não significa inexistência — tal como contabilização não significa efectiva existência. Os números variarão grandemente de docente para docente e de área disciplinar para área disciplinar, mas arrisco-me a dizer que os professores portugueses são dos que mais tempo gastam a desempenhar tarefas da treta (por culpa do Ministério da Educação, não sua).


Mito #4: Os professores portugueses ganham demasiado bem

Neste capítulo, os dados da OCDE são mistos: os professores nacionais do 1.º e 2.º ciclos de ensino ganhavam* em geral mais (2% a 3,5%) do que os seus colegas lá fora, mas os nossos professores do ensino secundário ganhavam* menos (uma desvantagem de 5,5% a 8%). Uma conclusão imediata olhando os gráficos é que cá os professores de ambos os níveis de ensino ganham pela mesma tabela salarial, o que não se passa na generalidade da OCDE e UE21.

Os valores salariais apresentados no estudo da OCDE levantam-me sérias reservas. A média em causa refere-se a um professor com 15 anos de experiência. Sinceramente, o valor apresentado no caso português parece-me exagerado. Tanto quanto sei (mas posso estar errado), o número de professores com Mestrado (pré-Bolonha) é muito baixo em Portugal, havendo uma ligeira progressão na carreira associada a este nível de formação. Em dois casos que conheço bem de docentes com grau de mestre (os únicos, ou quase, nessa situação nas respectivas escolas), com 18–20 anos de experiência profissional, o nível salarial é algo inferior à suposta média nacional (onde se incluem a multidão de colegas menos graduados e com menos tempo de serviço).

Salário médio de um professore com 15 anos de experiência(2011)

A ideia da classe docente como classe favorecida tem, no entanto, algum suporte num dado: em média, os professores portugueses ganham mais 17% do que outro profissional nacional igualmente licenciado, enquanto que na média da OCDE e da UE21 os professores ganham menos 11%. Ou seja, efectivamente a profissão docente é (comparativamente) mais bem remunerada em Portugal do que lá fora. Mas combinando este dado com o que foi dito quanto ao custo anual por aluno e ao número de horas efectivamente gastas a leccionar (o cerne da profissão docente), a conclusão a que podemos chegar é que, ao contrário do que se passa noutros sectores da economia nacional, os “custos de produção” do sector educativo (em termos gerais e em termos de custo/hora útil) são mais baixos em Portugal do que lá fora.

Os professores portugueses não são demasiado bem remunerados — os demais licenciados do nosso país é que são ainda mais mal pagos do que pensam.


* De notar ainda que os valores apresentados dizem respeito aos salários no ano lectivo de 2010/2011, isto é, anteriores aos cortes salariais na Função Pública que ocorreram em 2011.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Em dia de greve

Chego à escola cedo. Segundo o calendário, deverão realizar-se os exames de Português e de Latim. Entre alguns livros, transporto dois com as Fábulas de Fedro. Um em latim. Outro em português. Não receberei provas. Não assinarei documentos. Aos poucos, vai-se adivinhando uma adesão esmagadora. Das cinco salas previstas abrirá uma. As razões da greve são conhecidas. A ideologia cansa. A imoralidade incomoda. A prepotência enjoa. Afortunadamente ainda existem as fábulas. Importa lê-las bem num tempo assim.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Os problemas da Educação em Portugal também têm raízes nestes pais...

Público online:

Pais exigem anulação de exames se algum aluno não puder fazer provas

O presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais, Jorge Ascenção, defendeu nesta quinta-feira, em declarações ao PÚBLICO, que caso uma parte dos alunos não faça o exame nacional de Português na próxima segunda-feira, devido à greve dos professores, as provas daqueles que as fizerem deverão ser anuladas.
“Não sei qual será a solução que o Governo vai adoptar, mas esta é a única que garante a equidade”, sustentou.
[...]
Na sua opinião, o adiamento da prova para apenas parte dos alunos ou a abertura da possibilidade de a fazerem na segunda fase não são soluções. “O facto de se tratar de uma prova diferente realizada num dia diferente coloca em causa a equidade, num momento decisivo para o futuro dos alunos”, considera Jorge Ascenção.

A falta de discernimento de um parceiro privilegiado do processo educativo explica alguns dos problemas da Educação em Portugal.

Se o facto de alguns alunos realizarem o exame de determinada disciplina em data diferente (com enunciado diferente, pois claro) põe em causa a «equidade» da avaliação, então, para ser coerente, a Confederação Nacional das Associações de Pais deveria opor-se terminantemente, fossem quais fossem as circunstâncias, à existência de uma segunda fase de exames.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Gestão orçamental na casa de um socialista encartado

O cenário descrito por Inês Teotónio Pereira só prova que a senhora não sabe educar os seus filhos, ao contrário do que tenta convencer-nos no início do texto.
(A autora do artigo do jornal i parece acreditar que educar filhos consiste em repetir-lhes ad nauseam um ideário político-social. Falando com a experiência, não de pai, mas de filho, trago-lhe uma má notícia: não é por aí. Educa-se pelo exemplo, não pela doutrinação.)
E está visto que, tal como a honestidade e a boa administração da coisa pública, também a educação dos filhos não segue as linhas de fractura ideológicas.

O meu pai, que era socialista encartado, sempre nos deixou bem claro que havia deveres. O dinheiro — o pouco dinheiro — que íamos tendo no bolso, não era atribuído em jeito de mesada ou semanada, conceito que nos parecia ficcional (de resto, só o conhecíamos dos livros dos Cinco ou dos Sete...).
Não, o pouco dinheiro que tínhamos, recebíamo-lo no fim de cada período escolar, segundo uma tabela pré-estabelecida, por cada 3, 4 e 5 (estava fora de questão haver um 2: se houvesse, não havia dinheiro nenhum). E tinha que durar o trimestre inteiro, até que as notas nos dessem (se fossem boas) direito a mais algum. Era, por isso, preciso saber administrar um orçamento — um parco orçamento. E nós sabíamos.
(OK, em abono da verdade havia fontes de rendimento adicional, de periodicidade não trimestral: a casa, o jardim e o não tão pequeno quintal das traseiras tinham muito trabalho para ser feito o ano todo. Entre limpar o pó e aspirar o chão, rapar as ervas dos malfadados caminhos de terra batida entre os canteiros, fazer a vindima, apanhar maçãs, peras e marmelos, regar a horta, semear e apanhar batatas, entre outras tarefas, havia diversas formas de enriquecimento lícito.)

Esta minha dependência do que o meu pai me dava (uma espécie de transferência do Orçamento de Estado para as autarquias, simplesmente a “autarquia” que eu era tinha de demonstrar os seus méritos) durou uns 7 anos. Se não me engano, foi no 8.º ano de escolaridade que consegui uma bolsa: como era bastante mais do que o meu pai antes me dava, podemos dizer que foram os meus Fundos Comunitários. Mas não eram a fundo perdido, ou melhor, os fundos só continuavam a chegar se a cada trimestre eu fizesse prova de resultados merecedores. (Por isso, aquilo por que o Gaspar está a passar, com avaliações periódicas da Troika, conheci eu em 1986 — a diferença é que eu não fazia asneira entre cada avaliação, de forma que a “troika” que decidia se a minha bolsa continuava a ser-me paga não teve de relaxar uma e outra vez os critérios que eu era obrigado a cumprir...)
Mantive esta bolsa até ao fim do Ensino Secundário e ainda (crescida no seu valor) durante os cinco anos da minha licenciatura (agora prestando provas a cada semestre). Foi a minha única fonte de rendimento até ter o meu primeiro salário, aos 23 anos.

Ah! Resta dizer que a dita bolsa (que a minha irmã também recebeu) não foi atribuída pelo Serviço de Acção Social Escolar ou outro qualquer organismo do Ministério da Educação ou do Estado.
(Se a situação financeira da minha família foi certamente um factor tido em conta — era um só salário de quadro médio a entrar numa casa com três filhos em idade escolar —, a instituição pagadora deixava claro que o critério principal era o do mérito escolar, periodicamente medido pelas classificações alcançadas no decurso de 10 longos anos.)
Como se chamava a instituição que me atribuiu a bolsa?
É com vergonha que admito chamar-se Fundação Calouste Gulbenkian — essa instituição desconhecida que, segundo a avaliação do ministério de Vítor Gaspar, é menos «pertinente/relevante» do que a notável Fundação Social Democrática da Madeira...

sábado, 27 de abril de 2013

Vigiar exames

O Ministério da Educação confia nos professores, desconfiando dos alunos: nas salas de exame, os primeiros vigiam os segundos. Mas há limites: os vigilantes devem ser escolhidos de entre os que não leccionam a disciplina sobre que incide a prova. Além da suspeição, adivinha-se aqui um grave pressuposto, certamente acompanhado por um desejo infame: o pressuposto de que os professores são ignorantes em matérias de disciplinas alheias e o desejo de que nunca deixem de o ser.