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domingo, 4 de maio de 2014

Confundir as vidas sentadas

Num certo sketch dos Monty Python, a prioridade é «confundir um gato». O animal sofre de tédio, abulia, quebranto. Expondo-o a alguns momentos circenses, tornou-se possível recuperá-lo. Com humanos, seria maior a dificuldade. «A minha vida sentou-se», escreve Mário de Sá-Carneiro. Para rimar, «fartou-se». Como impedir que as vidas se sentem? Como reerguer vidas sentadas? Como «confundir» os mortais, felinos incluídos? Talvez estes problemas garantam que, pela eternidade fora, as vidas dos deuses se mantenham de pé.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Duas perguntas

A questão encontra-se no poema Domingo de Manuel da Fonseca: «Que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre como se fosse uma festa?...» Acrescente-se-lhe outra, igualmente encomendada à esfera dos enigmas, colhida em Stevenson, n’A Ilha do Tesouro: «Se jamais se viu um espírito com sombra, como haverá um que faça eco?» Mora aqui a resposta à sinuosa angústia anterior: «Aos domingos, se te faltar inclinação gregária, torna-te espírito: não deixes eco nem emanes sombra.»

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Ciclo existencial

Vem n’A Náusea e gera tédio: «Todo o existente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por acaso.» Poderia dizer-se o contrário e nem assim se perderia eficácia: «Todo o existente nasce com motivo, prolonga-se por vigor e morre por decreto.» À nudez do absurdo persistente opor-se-ia a capa do destino irrevogável. Embora fecundo e enfático, o axioma de Sartre presta homenagem ao desencanto: nasceu sem ilusões, prolonga-se por teimosia e morrerá por excesso de evidência.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Meta-aborrecimento

Ouço-o de uma septuagenária que nunca leu filósofos existencialistas nem poetas desesperados: «A certa altura, a gente até se aborrece de cá andar.» As derradeiras palavras de Winston Churchill terão exprimido idêntico teor: «Estou aborrecido com tudo.» Talvez o aborrecimento em causa, equivalendo ao tédio, represente um desconforto de natureza universal. Há vantagens em habituar-se a ele desde cedo. Poderá assim o indivíduo, mais tarde, aborrecer-se do próprio aborrecimento. Um exercício do género deve ser francamente redentor.

sábado, 15 de junho de 2013

Abulia

A sua divisa favorita colhera-a em Melville: «Preferiria não fazer.» Ao conjunto dos seus movimentos não chamava «preguiça», antes «abulia existencial». A quem lhe perguntava pelo «sentido da vida» respondia: «Se se pode conceber algum, “dormir, talvez sonhar”.» Apoiava-se igualmente em Nietzsche: «Saber dormir não é um caso insignificante: é preciso ter estado acordado um dia inteiro para o conseguir.» Apreciava citar. Por vezes, dizia: «As citações são almofadas sensatas onde encontram repouso as nossas cabeças loucas.»

quarta-feira, 24 de abril de 2013

No café: o “Big Brother”

Numa das mesas, alimenta a conversa o “Big Brother Vip”. Alude-se a expulsões, citam-se nomes, avaliam-se temperamentos. Vozes críticas foram incapazes de afastar estes programas televisivos de esgoto. A sátira tornou-se ineficaz, dando lugar à indulgente ironia ou à pacificada indiferença. Mas o exercício de ouvir alguém a examinar conteúdos do “Big Brother” com a seriedade de quem discute o liberalismo económico ou a dialéctica trinitária é convite certeiro para o tédio, passaporte seguro para a náusea.

domingo, 7 de abril de 2013

Ócio anímico

Demorando-se no «ócio integral», arrisca-se a alma a ganhar os dois atributos com que Pessanha descrevia a sua: «lânguida e inerme». Há vantagens: uma alma assim, sentindo-se mais vazio que vaso, nunca se parte, ao invés da de Campos, «como um vaso vazio», jamais tomba «pela escada excessivamente abaixo». Fica imóvel a mirar qualquer trecho de paisagem, ou tão-só as lombadas solenes nas estantes, entre o silêncio e o sono, rendida a uma suave imitação do desencanto.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Desapontamento

Quando criança, ouvi várias vezes um sacerdote dizer, em subversivas homilias, que só os poetas haveriam de «salvar o mundo». Na altura, eu achava a ideia irrepreensível. Hoje, porém, árido e prosaico, julgo que o que necessita de ser salvo, neste contexto, é a expressão «salvar o mundo»: falta-lhe a redentora nitidez. Como se tal não bastasse, inúmeros são os poemas que me reconduzem ao tédio e devolvem ao bocejo. O padre, esse, já morreu. Foi assassinado.

terça-feira, 12 de março de 2013

Privilégios

Atingir uma verdade pela qual se justifique viver continuamente entusiasmado, imune ao tédio e a outras perversões, é um privilégio concedido a poucos. Verosímil se afigura que tais seres, no pico do seu existencial arrebatamento, desfrutem de instantes de felicidade tão altos e preciosos que sintam ganas de abraçar, uma a uma, as suas próprias células. Dir-se-á que, tarde ou cedo, ilusórios se hão-de revelar os frutos. Mas a essa nefasta conclusão só chega o amargurado pensamento.

domingo, 10 de março de 2013

Tédio e pecado

O tédio não faz parte da tábua dos pecados mortais. É fácil, todavia, associá-lo à soberba — visto ele reflectir um certo desencanto perante as maravilhas da Criação — e à preguiça — da qual não raras vezes se origina. Mas, por outro lado, a sensação de tédio deve aproximar-se daquilo que o eventual ser divino experimenta face ao carácter repetitivo das coisas e ao esgotamento do possível. E assim se expurga um núcleo de pecado, com tal afinidade redentora.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Pausa reflexiva

No centro comercial, as escadas rolantes devem constituir o lugar móvel das pausas filosóficas. Talvez perguntem os que sobem: «De onde vimos?» Talvez, os que descem: «Para onde vamos?» Talvez, ao passarem uns pelos outros, se interroguem: «Quem somos?» Ainda que não formuladas mentalmente, as questões parecem implícitas atrás desses rostos, cuja melancolia é de alto preço. Mas esta acabará por se esbater quando os olhos pousarem, ao fim da escada, na montra que anuncia preços baixos.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

«O sono das maçãs»


Se alguém quiser, como García Lorca, «dormir o sono das maçãs» (1), de que modo exprimirá o resultado? O problema não diz só respeito à natureza dos qualia, ou qualidades sentidas das experiências, mas também ao reconhecimento de que se passou por tal sono. Trata-se de, permanecendo humano, entrar no fruto em causa, imergir na sua inconsciência — e sabê-lo, depois, ao despertar. «Dormir o sono das maçãs» seria aceder, por inteiro e sem distância, ao lugar do inefável.


(1) Federico García Lorca (s/d), Divã do Tamarit, Lisboa, Vega, p. 47.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Canto da sala

René Magritte, A Sala de Escuta, 1958.

Eleger um dos cantos da sala — não só para observar, senão também para reduzir o incómodo do olhar do outro — representa uma escolha de convivência baseada num pressuposto de cariz matemático: incluindo chão e tecto, quatro faces do cubo garantem mais resguardo social que apenas duas. Os obstáculos à opção residem na eventualidade de haver muitos interessados ou de as paredes do aposento serem feitas de vidro transparente. Mas é importante não temer essas excepções quase irreais.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Ora aí está, mais um blogue...

Ora aí está... Mais um blogue... Ainda por cima, super divertido!

EDITORIAL: A montanha pariu um rato, talvez

Andámos meses para marcar um jantar e nunca o conseguimos. Quer dizer, temo-nos encontrado aqui e ali, alguns de nós até assiduamente. Três trabalham juntos. Mas marcar um jantar em que todos pudessem ou quisessem estar foi uma impossibilidade. Jantámos quatro dos seis arregimentados. Não foi mau. Quase 70%. Houve quórum. Maioria qualificada. Quase mudámos a Constituição.
Meses antes, numa conversa de bêbados, dois de nós desataram a chorar ao balcão que era uma tristeza que não se tivesse feito mais nada depois «daquilo». Havia uma crise e falências e encerramentos e um recuo como nunca víramos. Agora é que «a coisa» fazia sentido. «A coisa» ou um sucedâneo que não envergonhasse. De resto, era notável como nos últimos tempos se vinha invocando o nome da «coisa», velhos seguidores nostálgicos que se davam a conhecer e gente nova que a descobria com espanto. Naquela noite, os dois despediram-se com abraços apertados, ranho no nariz e promessas firmes de pensar em alguma… coisa. (Não havia muita imaginação disponível nem para substantivos.) Depois foi cada um para sua casa, tentando não cambalear demasiado, e nas semanas seguintes espalharam a Boa Nova.
Houve então conversas ocasionais, alargadas e entrecruzadas (e muito espaçadas), onde os argumentos contra eram sempre mais fortes e sensatos. Mas nem assim a ideia se desvaneceu, como mandava a inteligência. Quando um desistia, outro insistia, num dilatado processo de contrabalanço que poderia muito bem ser representando por aquela cena famosa da ginástica sueca no Pátio das Cantigas com Vasco Santana e Ribeirinho. Cómico e ridículo dessa maneira.
Uma das últimas tentativas de esconjuro foi escrita como uma súplica no blogue Os Canhões de Navarone — e teve o efeito contrário. Aumentou a pressão para jantar.
O repasto teve então lugar e o mais relevante da noite foi ter-se descoberto que alguém agora conduzia um Qashqai. À mesa, além do proprietário do SUV, havia um recém-licenciado em Línguas-Literaturas-&-Mais-Qualquer-Coisa, um engenheiro com delírios de designer gráfico e um antigo baixista de arraiais populares. Fez-se um jogo que consistia em escolher os cinco nomes menos maus de uma lista de trigésimas escolhas. A aposta era elevada. Foi então que a montanha pariu um rato. Tanta evocação, tanta assertividade e tanto vinho para isto a que o leitor agora chegou: à sobremesa estava decidido que em sucessão da coisa Periférica, como sói acontecer com as vedetas rock, se faria um reunion blog e algum alarido à volta dele. Um tédio, portanto. (O nome pode não ser brilhante mas é eloquente.)

Iniciação ao tédio é então um blogue que, não correndo mal, reunirá as composições individuais dos antigos membros dos Duran... da Periférica espalhadas pelo Facebook, pelos blogues Divina Comédia, Grafismo Sem Rede e Os Canhões de Navarone, ou pelo espaço aéreo nacional. Correndo bem, Iniciação ao Tédio fará isso e porá no activo os mais adormecidos dos bandmates. No mínimo, o leitor poupará alguns cliques se quiser seguir regularmente os blogues mencionados. (Um contributo nosso para a prevenção de tendinites no indicador, esse flagelo moderno.) No máximo, assistirá ao prelúdio de algo que lançará sombras sobre a Granta que o Carlos Vaz Marques prepara sem contar connosco. Não nos falta ambição, como se vê, apenas noção do ridículo e força para sair do sofá. De onde, de resto, se vê distintamente a cidade e os portuguesitos a correr de um lado para o outro na sua azáfama, como ilustra a imagem do cabeçalho. Será particularmente para eles e sobre eles este blogue vermelhusco. Desfruta, nobre povo.

P.S. Convém frisar que, como o nome indica, se trata apenas de uma iniciação ao tédio. Para tédio mais desenvolvido, há que procurar outras moradas.