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domingo, 28 de dezembro de 2014

Selfie ou as faculdades paliativas da nostalgia

Descem a vereda do parque em passo lento de sábado à tarde. Vistos de costas, não se percebe se são namorados, se irmãos ou mãe e filho (ela parece mais velha), mas essa dúvida é ainda mais espúria quando os vemos posar para a fotografia: o que importa se o que encenam para a câmara é amor romântico ou ternura familiar? No simulacro dos sentimentos é indiferente o tipo de parentesco.
Encostam muito a cara, o braço dele sobre os ombros dela, ela como tenaz a cingir-lhe os rins. Podem estar só a espremer-se para caberem no enquadramento (acontece até a estranhos em bodas, ombrear promiscuamente a mando do fotógrafo), e a expressão feliz que de súbito lhes ilumina o rosto pode ser a apenas a resposta instintiva, culturalmente determinada, a um imaginado «olh’ó passarinho». Regressarem com igual rapidez às caras sisudas anteriores parece corroborar esta ideia de que presenciamos uma farsa inocente, ritual.

Mas nada impede a especulação literária. A vida não impede geralmente a especulação literária. Fotografias sorridentes são instrumento que as pessoas usam para acreditarem, a coberto dos anos ou da distância, que em certo dia ou local foram felizes. A foto como alibi para a auto-estima ou o optimismo. Talvez alguém naquele casal conhecesse já as faculdades paliativas da nostalgia.

(Folhear um álbum é seguir uma prescrição antiga de alienação e tirar fotografias com este móbil poderia ser judicialmente censurado como plantar cannabis. Mesmo que apenas para consumo próprio.)

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Catalogue des prix d’amour

[O senhor flagrado não é Paul Nougé, apesar do ar satisfeito]

Mosquitos em Bruxelas parecia-me um contra senso, imaginando-os bichos eminentemente meridionais ou amigos de ambientes de gente pobre. Mas quando me começaram a cair no copo lembrei-me que sou pobre e meridional. Não, não foi isso. Quando passei a usar a vetusta base de copos como tampa contra os dípteros kamikazes, tomei consciência do sítio onde estava: La Fleur en Papier Doré (Het Goudblommeke in Papier para os amigos flamengos), um café que respeita o seu ilustre passado mantendo, quase sem a espanar, a decoração original. A Flor em Papel Dourado é um estaminet fundado em 1366, mas não creio que houvesse nenhum mosquito dessa colheita. Os que partilharam comigo o cabernet e mais tarde nadaram nos meus sucos gástricos deveriam ser do tempo da última remodelação do botequim, acontecida, diria, na transição de oitocentos para novecentos. Gosto de sítios assim, com verdadeira história. E se tomasse notas no meu moleskine (ou, menos romanticamente, usasse a câmara do telemóvel), poderia hoje reproduzir na íntegra, poupando o trabalho de inventar tema e coerência para um post, a piéce de résistance das antiquarias que enfeitam, emolduradas, amareladas e empoeiradas, as paredes da casa. Refiro-me ao tarifário de um prostíbulo, de 1915.
Não me parece que o nome do café derive deste dístico utilitário, mas podia: o “Catalogue des prix d’amour de Mademoiselle Marcelle Lapompe”1 é um belo documento histórico em papel dourado pelo tempo. E a flor… vocês sabem.
A informação disponível no café refere que Magritte e os surrealistas belgas passavam ali os dias, e acredito que eles tenham reparado, como eu, que chez Marcelle Lapompe2 havia descontos se o cliente não precisasse de luz (já a vela custava 15 cêntimos). Talvez, pensando bem, o tarifário tenha sido esquecido ali por um dos surrealistas, depois de o ter consultado disfarçadamente no meio de um exemplar que fingia ler de L’Amour Fou, do condiscípulo francês. Ou, quem sabe, o papelito comprometedor caiu do bolso de um Paul Nougé vindo de se ter feito “glouglouter le poireau”3, depois de “faire sucer une pastille de menthe a l’opératrice”. Tudo é possível (refiro-me à cronologia): o tarifário diz que “anula todos os precedentes”, mas pode ter vigorado nas décadas seguintes (é consultar a inflação da época).
A tabela de Mademoiselle Lapompe — que eu mesmo que tivesse tomado notas na verdade não citaria, por pudor — é simultaneamente um documento de grande objectividade e um catálogo de metáforas e eufemismos de 1915 para essa outra metáfora e esse eufemismo intemporal que é o “amor”.

Pode ser encontrado na Internet. O "Catalogue". E o amor, parece.

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1 Ok, fui pesquisar na Internet, comprovando de passagem a minha teoria de que hoje não é preciso levar máquina fotográfica para as viagens, alguém já tirou as fotografias de que precisamos.
2 Na Rue du Chant-Noir, número, adivinharam, 69.
3 Pardon my french.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

de[s]amor: countdown para o Dia de São Valentim (3)

Neste tempo, em que a aproximação do Dia de São Valentim nos submerge numa maré “fofinha” de ursos de peluche, corações gigantes de veludo e postais (reais ou virtuais) com mensagens lamechas, urge variar um pouco.

Ora, o que há de menos romântico (no sentido vernacular) e “fofinho” do que a Economia? Exactamente: nada.

Assim, o antídoto certo contra tanta lamechice insincera (amores eternos e infinitos, etc.), de pechisbeque, é a requintada linha, que agora lanço, de cartões postais produzidos com o profissionalismo dos analistas de uma prestigiada agência de rating. (Não estando dinheiro envolvido, a dita agência de rating abriu una excepção e disse apenas a verdade, em vez de tentar criar uma.)

Ainda te amo... mas as perspectivas não são animadoras.

domingo, 10 de novembro de 2013

Impossibilidade

Num lote de livros que adquiri — na altura não o explorei de forma exaustiva —, descubro um volume escrito pela catalã Cecilia A. Mantua, editado entre nós pela Figueirinhas. Metade deste exemplar encontra-se por abrir, reclamando espátula, faca ou xis-acto; a outra metade aparece irremediavelmente desfeita, com centenas de papelinhos amontoados, fruto do labor de ratos minuciosos. Em síntese: uma parte está fechada, outra parte está perdida. Só falta mesmo referir o título: O Nosso Amor é Impossível.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

«Toda a gente tem direito a ter um desgosto de amor»

Levantam-se da mesa, deixam os homens na sala e vão para a varanda fumar, com os copos pousados num móvel contíguo. Já não se viam há algum tempo, possivelmente desde as últimas férias de Verão, talvez desde as anteriores. Duas delas falam da terceira como se ela não estivesse presente, mas não a estão a excluir da conversa. Estão a explicar-lhe, quase de forma encenada, o que pensaram e disseram entre elas sobre a amiga quando a viram, cada uma em sua ocasião. Que não podia ser, não cresciam assim. Era coisa que se tinha ou não se tinha, e ela antes não tinha. Não como agora. A primeira conta que, logo que viu a Clara (chamemos-lhe assim), lhe atirou de imediato aos mãos ao peito. Não esteve cá com coisas. Era como São Tomé, precisava de ver com os dedos para crer. Clara tinha defendido, com o seu narizito indignado, que eram naturais, mas ela não acreditava. E o tacto não lhe mentia. Clara anui, entrando na conversa: sim, as coisas tinham-se passado daquele modo. Ela tinha querido brincar durante um bocado, embora soubesse que as amigas acabariam por perceber. Mas não lhe ficavam bem?
Tinha sido depois de se separar do Júlio. Ele não se fora embora por causa das mamas dela, mas Clara precisava de se concentrar em alguma coisa para esquecer o desgosto. E se o pensou melhor o fez. Já tinha lido muito sobre aquilo, como todas, os métodos, os riscos, quem pôs e quem não pôs.
Seguem-se alguns minutos em que as três esgrimem a sua bibliografia, em diferentes tons de rosa mas no mesmo papel couché ou acetinado, sobre o assunto.
Depois desse interlúdio estético-medicinal, Clara retoma a questão anterior. O desgosto amoroso não era assim tão mau, talvez ela tivesse avançado para a cirurgia de qualquer modo. O desgosto, aliás, era parte da vida das pessoas, «toda a gente tem direito a ter um desgosto de amor».

Ter-se-ia ela enganado? Teria querido dizer que toda a gente, num momento ou noutro da sua vida, tinha, naturalmente, um desgosto de amor? Ou estaria a socorrer-se de um discurso reivindicativo, o povo pela voz dela a reclamar direitos iguais aos dos ricos, mesmo que esses ricos sejam os das novelas ou os dos romances de Margarida Rebelo Pinto? Umas mamas de silicone e um desgosto de amor podem ser anseios legítimos e equiparáveis da classe operária?

Depois voltam à questão mamária, com gargalhadinhas e apalpões (agora em directo), e o escriba, de educação antiga, tenta ainda com mais denodo (mas não com melhores resultados) concentrar-se na leitura.

domingo, 25 de agosto de 2013

Baile copular

A churrasqueira no Verão põe uma esplanada e música em colunas. A música que as colunas debitam é muito obviamente destinada a atrair ouvidos emigrantes, convidando-os a gastar parte das suas economias do ano nuns grelhados à maneira. No entanto, de forma menos óbvia, a música que se ouve não está acertada com o repertório pimba actual, há uma décalage, ou talvez uma nostalgia de quem foi emigrante no seu tempo. A estética dominante é a de Linda de Suza, o nacional cançonetismo da diáspora dos setenta, uma ou outra música tradicional. A emoção em vez do trocadilho e da alusão sexual obsessiva. E isso é quase comovente, quase desclassificamos como foleira a música que da esplanada abaixo da janela vem trazer ao nosso próprio jantar pequeno-burguês memórias de romarias e bailaricos, de quando disfarçávamos de subversão a afinal indisfarçável adesão ao ímpeto bailador, o de colar ao nosso um ritmado corpo feminino, na evocação ou antecâmara dos prazeres sensuais que é na realidade o baile*.

* E, no sentido desta exegese, o slow era a antecâmara do sexo tântrico.