Mostrar mensagens com a etiqueta Arte. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Arte. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 11 de março de 2016

A Mulher Invisível

A RTP 2 transmitiu esta semana o documentário «A Longa Batalha das Mulheres Pintoras», sobre quatro séculos de avanços e recuos na luta pelo reconhecimento do direito de as mulheres serem artistas. A quem não viu e ainda puder ver, recomendo vivamente, pois é não somente interessante e informativo: é também esclarecedor e, por vezes, surpreendente.

Este assunto já tinha sido abordado numa conferência de Malcolm Gladwell, cujo vídeo traduzi há meses, mas com duas importantes diferenças: por um lado esse autor focava-se numa só artista, por outro enquadrava-a no âmbito mais vasto da discriminação de uma classe por outra.

O programa transmitido pela RTP 2 trouxe-me à lembrança uma colecção publicada nos últimos anos do século XX e que ilustrava, de forma quase caricatural, o quão enraizada ainda está a discriminação da mulher em geral e da mulher-enquanto-artista em particular.

A colecção — «Grandes Pintores do Século XX» — era composta por 48 volumes dedicados a outros tantos artistas:

  1. Henri Matisse
  2. Salvador Dalí
  3. Wassily Kandinsky
  4. Pablo Picasso
  5. Oskar Kokoschka
  6. Jasper Johns
  7. Joan Miró
  8. Edvard Munch
  9. Max Ernst
  10. Henri de Toulouse-Lautrec
  11. Paul Gauguin
  12. Juan Gris
  13. Giorgio de Chirico
  14. Marcel Duchamp
  15. Fernand Léger
  16. Vincent van Gogh
  17. Paul Cézanne
  18. Marc Chagall
  19. Piet Mondrian
  20. Antoni Tàpies
  21. Kazimir Malevich
  22. Francis Bacon
  23. Antonio López
  24. Pierre Bonnard
  1. Henri Rousseau
  2. František Kupka
  3. Georges Seurat
  4. Odilon Redon
  5. Alex Katz
  6. Ben Nicholson
  7. Amedeo Modigliani
  8. Hans Arp
  9. Ernst Ludwig Kirchner
  10. Paul Signac
  11. Georges Rouault
  12. Wifredo Lam
  13. Giorgio Morandi
  14. Francis Picabia
  15. Andy Warhol
  16. Fernando Botero
  17. Georges Braque
  18. Robert Motherwell
  19. André Derain
  20. Jean Dubuffet
  21. Tom Wesselmann
  22. Paul Klee
  23. René Magritte
  24. Max Beckmann

Isto das listas, já se sabe, é coisa sempre melindrosa: cada um tem a sua, e por vezes nem concordamos a 100% com a nossa própria lista.

Na minha assumida ignorância, detecto nesta colecção muitos nomes que desconfio não serem tão relevantes assim e, simultaneamente, saltam-me à vista muitas ausências surpreendentes: Gustav Klimt, Edward Hopper, Egon Schiele...

(Ressalva: tenho noção de que algumas das ausências se deverão, não à idiossincrasia dos critérios estéticos e artísticos dos organizadores da colecção, mas à mais prosaica questão dos direitos de reprodução das obras, que nem sempre terão sido conseguidos.)

Mas uma ausência é notória, e custa-me a crer que possa ser totalmente explicada pela inflexibilidade dos herdeiros dos artistas. Ou melhor, das artistas, porque a ausência — total! — a que me refiro é a de mulheres-artistas: absolutamente todos os quarenta e oito nomes da colecção são de homens. Todinhos.

Exactamente: nada de Georgia O’Keeffe, nada de Frida Kahlo, nada de Tamara de Lempicka — só para referir três nomes que, na minha cultura artística assumidamente limitada, me ocorrem sem esforço. Será crível que todos os herdeiros destas artistas — e de todas as outras que não me ocorrem mas que mereceriam figurar numa tal colecção — se recusaram a ceder os direitos de reprodução das obras? Dificilmente.

Mas, cereja em cima do bolo da gritante discriminação, os organizadores de uma colecção intitulada «Grandes Pintores do Século XX» acharam espaço para Toulouse-Lautrec, um artista que, tendo morrido a 9 de Setembro de 1901, viveu pouco mais de oito meses no século XX, sendo por isso mais correcto considerá-lo um pintor do século XIX.

Pior: também encontraram espaço para Vincent van Gogh, que morreu em 1890, isto é, mais de dez anos antes de começar o século XX!!!

E escusam de invocar como justificação o facto de que um e outro artista só tiveram o justo reconhecimento no século XX: mesmo a ser verdade (o que é discutível), não só é um argumento dificilmente defensável (a colecção é de autores «do» século XX, não de autores «famosos no» século XX), como, a sê-lo, então reclamo a inclusão dos artistas anónimos das grutas de Altamira e Lascaux no rol de «Grandes Pintores do Século XX»...

sábado, 7 de novembro de 2015

Malcolm Gladwell: «Párias, Símbolos e Pioneiros» (palestra)

Malcolm Gladwell, colaborador permanente da revista The New Yorker, deu em 2013 uma interessantíssima (e longa...) palestra sobre uma das formas mais surpreendentes como as classes dominantes garantem a manutenção da sua condição de privilégio.

Gladwell centrou-se particularmente na discriminação das mulheres — na política, na arte, na vida em sociedade em geral —, discriminação que por vezes se mantém, mesmo quando aparentemente a porta se abriu para elas...
(Outro tema importante é o do anti-semitismo.)

O argumento é ilustrado com dois exemplos paradigmáticos: o da pintora inglesa Elizabeth Thompson (1846–1933) e da ex-primeira-ministra australiana (2010–2013), Julia Gillard.

Esta palestra fascinou-me desde que a vi pela primeira vez. Há 2 meses ganhei coragem (e aprendi o procedimento técnico) para traduzi-la e legendá-la.

Uma outra palestra, do mesmo autor e do mesmo ano, centra-se na história de uma das mais importantes sufragistas americanas, Alva Vanderbilt (também conhecida como Alva Belmont) e das razões que levaram esta insuspeita mulher — milionária e privilegiada — a lutar contra o sistema estabelecido.

Infelizmente, quando comecei o longo processo de tradução e legendagem (levou-me 50 dias...), não sabia que havia quase a estrear um filme sobre o movimento sufragista.
Por isso, escolhi começar pela palestra sobre a pintora. Talvez daqui a 50 dias tenha o outro, sobre a sufragista, pronto...

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

E-musas

Uma vez escrevi em directo no blogue, durante semanas, um conto longo que em boa parte se inspirava na persona de PJ Harvey em alguns vídeos e tinha como banda sonora obsessiva um outro vídeo com uma música igualmente obsessiva de Radiohead — “Street Spirit (Fade Out)”. Lembrei-me disto enquanto imaginava a vida de escritor na Antiguidade Clássica: uma actividade dura, sem o YouTube e sem essa invenção fundamental que é o loop.
A estatuária grega, falando de musas, tinha a vantagem (também táctil) dos volumes, uma tridimensionalidade que o YouTube ainda não tem, mas faltava-lhe o movimento, e seria necessária uma sucessão de estátuas para cobrir toda a expressividade do rosto de PJ: a inocência e a perversidade, a candura e a dureza, a melancolia e a violência. Retratá-la seria trabalho para toda uma guilda medieval. Já manter uma trupe dias a fio a tocar a mesma música sairia caro em broa e vinho, algo que a electrónica nos poupa.
O progresso não é só máquinas a substituir caixas de supermercado e portageiros nas auto-estradas. É dar-nos acesso às musas de uma forma que antes só era possível a gente com dinheiro ou imaginação. 

terça-feira, 10 de junho de 2014

Bombos

[Para os patriotas que se entusiasmaram com o post anterior]

Observando desfiles populares noutras paragens geográficas, somos forçados a concluir com melancolia que, como povo, nem para descer alegre e ritualmente as ruas temos jeito.
As formações “musicais” mais requisitadas para arruadas nesta zona do globo são as de Zés Pereiras, ou equivalentes. O facto de serem constituídas apenas por percussionistas não seria um mal, se colmatassem a falta de instrumentos melódicos e harmónicos com virtuosismo técnico, variedade e complexidade rítmicas, originalidade de composições, brilho coreográfico, ousadia e destreza física ou elegância de trajes.
Mas não. A popularidade destas formações dá-se provavelmente porque, não necessitando de ponta de génio ou talento, são baratas — e sendo baratas são a desculpa adequada para instituições medíocres e desinteressadas de chamar talento ou génio para as suas cerimónias e festividades.
Acresce que para instituições e um povo do calibre dos nossos, o talento, mesmo que só para o fagote ou a gaita-de-foles, é um distintivo de “elite”, essa ameaça à mediania fundacional da pátria.


P.S. Além dos bombos, o único instrumento que a raça genuinamente ama (pela sua democraticidade, ou seja, por qualquer burro poder tocá-lo) é o triângulo (ou ferrinhos), esse objecto que só em mãos brasileiras ganha qualquer relevância musical.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Deixem o pimba em paz? As artes e o público

À saída do espectáculo DEIXEM O PIMBA EM PAZ (uma reinvenção brilhante de Filipe Melo e Nuno Rafael a partir do hegemónico repertório pimba) alguém registou duas reacções dos espectadores: a dos que gostaram porque os novos arranjos eram música genial e a dos que gostaram porque dava para reconhecer as cantigas originais.
Estas reacções do público parecem demonstrar que é possível fazer arte consensual, ou mesmo arte de qualidade para uma imensa maioria. Dar-se-ia assim razão a Filipe La Feria, que terá dito na noite dos Globos de Ouro que «o segredo das casas cheias é o talento».

Mas é precipitada a conclusão sobre a consensualidade — e, claro, está infelizmente errada a afirmação laferiana. Se voltarmos às reacções daquele público, vemos que o que agradou aos mais exigentes (ou menos engajados no género) foi apenas a magnificência dos arranjos, a sua qualidade de coisa nova e boa em si mesma, e o que agradou aos fãs das canções originais foi uma certa resiliência da coisa pimba, o conforto da sua permanência no novo objecto artístico. Não há exactamente nisto um consenso estético.

Posição diferente, e mais perspicaz (ou honesta), da de La Feria tem um espectador do Theatro Circo, que, indignado, se queixava há dias na página de Facebook daquela sala que «tudo o que fuja 1 milímetro ao mainstream (quase) não tem público».

A recepção das artes, para a maioria das pessoas, tem muito menos a ver com méritos artísticos de criadores e intérpretes do que com factores externos, como a psicologia de massas. É muito menos uma questão artística do que sociológica, cultural (no sentido de educação, tradições, costumes, hábitos, rituais, valores, ideologia, preconceitos, imaginário, etc.). O espectador português não vai em massa aos espectáculos por interesses estéticos. Ou, dito de outro modo, a estética das multidões não é artística, mas, digamos, étnica, identitária, gregária. O espectador que integra grandes plateias vai aos espectáculos em busca de entretenimento, e vai também para se inscrever no grupo, se incluir no ritual, se saber parte da encenação social da comunidade, poder dizer também fuitambém estivetambém vi, também sou, faço parte. É o mesmo impulso emulador que leva o turismo de massas ao Algarve, ao Brasil ou ao resort na República Dominicana. Não é necessariamente a qualidade das praias que o leva ali, mas o conforto e a excitação de ir onde todos vão, de pisar onde os outros pisaram, de não ficar para trás, de não ser excluído, de não ser aquele que não foi, não esteve, não viu, não fez parte, aquele que não é. Um local ou um espectáculo são declarados objectos «de excelência» para um colectivo pelo mesmo mecanismo gregário que junta as pessoas em volta da Selecção Nacional em dia de vitória (antigamente era também na nave da igreja em dia de terramoto), ou que as põe a vestir em cada estação roupa igual sem lhe chamar farda ou uniforme.

Malgré La Feria, o talento artístico, portanto, tem pouco a ver com a presença massiva do público nos espectáculos — assim como a ausência do público não é geralmente uma posição estética ou crítica em relação a um espectáculo. No tempo de Shakespeare, ou na Lisboa de Garrett, o público ia em números significativos ao teatro, mas isso não significa que gostasse ou percebesse mais de teatro do que o público de hoje. Significa sobretudo que isso era o que a comunidade fazia com naturalidade naquela altura. Ia-se ao teatro, era o rito social. (E já então as pateadas e as aclamações conseguiam frequentemente não corresponder ao mérito das peças.)

Estas considerações não levam à conclusão de que o público é inepto, mas à de que, aglomerado em multidões, o seu critério se dilui, se transfere da apreciação estética para a aprovação social — e à de que é susceptível de manipulação, mais ou menos consciente ou maquiavélica. Talvez ainda haja encenadores ou produtores que contratam claques para aplaudir as suas peças ou patear as dos adversários, mas o campeonato já não se joga aí. As rivalidades entre criativos são, aliás, deste ponto de vista, ridículas: os criativos (se usarmos o termo também para adjectivar a classe) estão infelizmente todos do mesmo lado: o lado dos sem público (para dramatizarmos um pouco a coisa). Clássicos ou contemporâneos, apologistas do texto ou da performance física, indefectíveis do sentido ou niilistas absolutos, conservadores ou ferozes experimentalistas — não depende dos criativos ter espectadores às centenas ou moscas nas suas salas (continua a dramatização). A afluência em massa de espectadores não se fará pelo brilhantismo do que se apresenta no palco mas pela particularidade de o local, o espectáculo, ou algum seu protagonista terem sido eleitos instrumentos de inscrição social. As pessoas aparecerão numerosamente se sentirem que vão ali, divertir-se, é certo, mas sobretudo receber a bênção da inclusão, ser ungidas de visibilidade e aceitação, aparecerão se ali lhes for dada existência, uma existência de corpo celeste que orbita e depende da sua estrela. Este género de espectador, o género que pode constituir plateias numerosas, aparece num espectáculo um pouco como um concorrente no Big Brother: à espera de ser premiado por existir ou estar. Percebe-se que um e outro mantenham uma boa relação.

Um espectáculo que tenha uma figura do tal mainstream, famosa (famosa por exemplo pela sua proverbial falta de dons) corre muito mais o risco de esgotar do que um que tenha várias pessoas apenas talentosas. Mas isto continua a não ser suficiente para classificar o público de inepto, porque em rigor ele não está neste contexto a exercer função de público, não de público de artes. A sua atenção não está virada para o objecto artístico, mas para o comércio social. O público aparecerá para testemunhar o fenómeno, coleccionar a memória da experiência, sentir que não ficou de fora do rito — não para fruir uma melodia, um texto, uma interpretação.

Não sendo necessariamente inepto, o público que apenas funciona em massa também não é, todavia, curioso. E também isso explica a sua ausência de tantos espectáculos, como referia o espectador lá em cima. Este público não dá o benefício da dúvida a um espectáculo que ainda não tenha sido visto e aprovado por centenas ou não tenha em si os elementos que garantem essa aprovação, os elementos da previsibilidade (ou seja, um cúmulo de repetições e clichés). Este público não vai por sua iniciativa espreitar um jornal, um site, um cartaz ou um palco onde o que esteja em causa seja um espectáculo novo e não um espectáculo aclamado. O que naturalmente traz um problema para autores ou espectáculos ainda não sancionados por uma multidão, mesmo que excelentes.

Não estando disposto «a pagar para ver», a arriscar num espectáculo ou artista desconhecido, não procurando realmente experiências estéticas mas catarse social, e sendo incapaz de gerir o seu próprio cânone sem o submeter à validação geral, este público tende a confundir critérios estéticos com atributos não artísticos. O «renome» de um artista (cuja origem o público não investiga e cujo prazo de validade não verifica) substitui os seus dotes vocais ou coreográficos, a sua inspiração a cada novo trabalho; o género praticado por um par de vedetas é, por sinédoque, uma coisa boa, mesmo que os demais praticantes sejam medíocres; a «visibilidade» mediática é alvará superior ao diploma do conservatório, à opinião da crítica especializada ou ao arbítrio individual, pessoal; uma grande quantidade de visualizações ou testemunhos «promete» que a experiência será positiva e suspende desde logo o juízo próprio, garante por isso a posterior ratificação.

O segredo das casas cheias não é, portanto, o talento, mas o ter-se bafejado o objecto com o hálito saturado das multidões ou com o seu sucedâneo laboriosamente preparado pelos alquimistas de serviço.

E os alquimistas de serviço não são os criativos. Quem hoje manipula o público, para retomar a prática oitocentista referida atrás, não são os directores ou os donos das companhias. A «inscrição social» que alguma arte pode proporcionar e que a faz ser procurada por multidões, na sua freudiana necessidade de unção e integração, não está nas mãos dos criadores artísticos, mas nas dos media, sobretudo nas da TELEVISÃO. O pimba não sairia do relativo anonimato das feiras e romarias de província, como o fandango e a chula, se a televisão e Herman José não se tivessem apaixonado por ele. (Em contrapartida, também Filipe Melo e Nuno Rafael não teriam tido provavelmente vontade de aplicar o seu génio a material tão insípido e monótono se ele se tivesse mantido circunscrito.)

A televisão não é só the drug of the nation — é para as massas o árbitro da elegância. Ninguém pode esperar que o público seja massivo no teatro se o teatro está ausente da televisão.
E a influência da televisão é tanto maior quanto as elites, duma maneira ou doutra, participam dela.

Os GLOBOS DE OURO (como noutra dimensão os Oscares) são reconhecidamente um miserável Panteão das Artes, são uma cerimónia de pechisbeque de onde a crítica, o juízo estético e tantas vezes o mero bom gosto estão ausentes. Contudo, uma boa parte dos que não reconhecem autoridade à cerimónia passa a noite a acompanhá-la, pela TV, pelo Facebook, pelo Twitter, por sms, pelas informações de amigos. Esta elite de excluídos dos Globos (excluídos porque não foram convidados ou auto-excluídos porque os desprezam) fica de fora a gozar ao detalhe o acontecimento ou a odiá-lo como a um amor antigo — e participa assim do mecanismo de entrosamento ou coroamento social que ele constitui, porque a caricatura, o insulto ou o ressabiamento mal disfarçado entram no metabolismo do monstro, fazem-no crescer.

Os Globos de Ouro servem para ungir os premiados não necessariamente pelo seu mérito, mas pela conveniência que o acto acarreta. Conveniência para o canal. Alguns prémios são apenas a confirmação do critério (encontrar o premiado que valide a ideia, o conceito que se quer valorizar). Outros, frequentemente, são atribuições que, numa inversão de funções, procuram garantir notoriedade ao próprio programa e ao canal, procuram inscrevê-los socialmente. O árbitro quer definir o que é elegante — e quer que os elegantes lembrem a todos quem é o arbitro.

É esta espécie de tautologia que está na origem do afunilamento pimba das televisões. (Repare-se que pimba já não é apenas aquele género musical brejeiro e uniforme, é uma forma de estar, um amarfanhamento social que faz, por exemplo, com que se torne difícil distinguir, pelo lado do público, um concerto de Tony Carreira de um de Abrunhosa.) A existência de audiências fragmentadas por gostos, interesses ou divergências estéticas seria perigosa e dispendiosa para os canais televisivos. Perigosa porque estimularia mais o zapping, dispendiosa porque exigiria mais conteúdos, mais formatos, mais inventividade, mais inteligência, mais talento. O pimba não é necessariamente ou apenas uma simpatia natural dos proprietários e directores de canais — é o fruto do seu esforço para impor pelo facilitismo a marca e lucrar mais com menos investimento. O gosto único é, talvez, do ponto de vista das televisões, menos uma ambição ideológica do que um instrumento de economia. Em todo o caso, faz sempre parte de uma estratégia de poder.

E falar de poder remete-nos para o ESTADO. Que papel o Estado há-de reservar para si nesta relação difícil entre público e artes?
Antes de mais, o Estado deveria definir se lhe interessa ter um papel. Atendendo a que já não há mecenas (os mecenas, como se sabe, eram o Estado na Antiguidade Clássica e na Renascença, já que de uma forma ou de outra viviam dos rendimentos que obtinham do povo), atendendo a estas circunstâncias, eu diria que sim, que ao Estado interessa ter um papel, mas eu sou um antiquado, um conservador. Tomemos o estado de direito, por exemplo. O estado de direito é uma coisa dispendiosa, não dá lucro, mas é talvez a maior conquista civilizacional da humanidade. Nenhum governo, por mais bruto que seja, se atreveu (para já) a considerar o estado de direito obsoleto ou a achar que o ministério público e os tribunais deveriam ser privatizados, financiados pelos que os demandam, sem qualquer participação do Estado. Ora, as artes e o direito caminharam, historicamente, ombro com ombro. Dialogam intimamente, do ponto de vista filosófico. A capacidade de abstracção, o sentido crítico, o debate, a independência de raciocínio e de opinião, a criatividade, a imaginação, tudo isto que nos trouxe ao século XXI são características que a humanidade apurou com o tempo e que de algum modo foram também estimuladas, potenciadas, exercitadas pelas artes. Seria um pouco pretensioso (e perigoso) da nossa parte achá-las agora dispensáveis.

O Estado, de forma activa ou por interposta legislação, com maior ou menor convicção, é (tem de ser) o garante último da biodiversidade, da preservação da memória, dos direitos das minorias e da alternativa democrática. Se não tivermos outras ideias para as artes, diria que no mínimo devemos encaixá-las nestes conceitos, tê-las em conta do ponto de vista ecológico (criando «reservas territoriais» onde elas possam medrar), do ponto de vista social (garantindo um rendimento de sobrevivência para intérpretes e espectadores, podendo estes ser providos em géneros pelos primeiros), do ponto de vista histórico-patrimonial (desenvolvendo uma política de «património vivo» para salas de espectáculos e galerias) e do ponto de vista político-filosófico (assegurando a possibilidade de propostas alternativas e o direito democrático à livre escolha, à escolha livre de proselitismos televisivos).

Ironias à parte, que tipo de reflexão deve o Estado fazer sobre as artes e o público? Perante a constatação de que não vão multidões ao teatro, uma reflexão sobre artes não deveria concluir que o teatro deve ter menos apoios (nem aumentar o IVA dos bilhetes). Do mesmo modo que aos governos preocupa a abstenção (pelo menos envergonham-se de confessar que não preocupa), devia preocupá-los a ausência de público no teatro. A qualidade de uma democracia sai talvez prejudicada se as pessoas não votarem, mas a qualidade do voto sai prejudicada se as pessoas não tiverem uma relação íntima com as artes e o pensamento informado e crítico que elas estimulam. Uma reflexão sobre artes, portanto, debruça-se sobre como levar mais público ao teatro.

Um governo não é um canal de televisão. Não pode ter como objectivo uniformizar a sociedade para melhor a governar e para governar mais barato. Governar mais barato pode ser uma triste necessidade, não uma aspiração. Daí que a um governo que queira ser realmente útil não possa deixar de se colocar duas questões: como levar mais público às artes (ou seja, ao pensamento crítico) e como (que é quase o mesmo) contrariar o proselitismo pimba das televisões.
A resposta à segunda questão passaria por açaimar ligeiramente, legislativamente, as TVs, mas isso é certamente pouco democrático e pouco liberal.
A resposta à primeira questão, que a prazo também responderia à segunda, reside em grande parte no ensino, essa instituição que o Estado (para já) ainda controla.

Com a entrada do ministro Crato, um intelectual que quase toda a gente estimava, o ENSINO ficou ainda mais de costas voltadas para as artes. (Foi assim com este governo, transformou desde o início pessoas interessantes em factótuns da política bulldozer.) Mas em rigor não é o actual ministro que deve ser culpado por o ensino não educar as crianças para as artes, para a estética, para a literatura, para o pensamento crítico. O mal é antigo. Na ausência de uma boa política institucional, as escolas foram deixadas à livre iniciativa (o que só por si não é um mal e em muitos casos teve resultados positivos) e essa ausência de enquadramento conduziu geralmente ao voluntarismo. A ênfase passou em poucas décadas de levar acriticamente os miúdos ao teatro, por exemplo, de os deixar enfiados e contrariados durante uma hora numa plateia a ver o que quer que fosse, para a originalidade de os levar directamente para o palco, ainda mais acriticamente e com frequência sem qualquer relação com a sua vocação. Há hoje no país centenas ou milhares de crianças que estiveram mais vezes num palco (calorosamente ovacionadas, e por isso induzidas em erro, pela família e os amigos) do que numa plateia, e em tantas das ocasiões em que estiveram na plateia estiveram a ver e a aplaudir sem critério crianças como elas. O equívoco tem as suas raízes antigas no pensamento muito esquerdista e igualitarista de que todos temos talento, todos temos criatividade, todos temos um poeta ou um bailarino dentro de nós. Depois foi continuado pela bigbrotheriana ideologia, ainda mais «democrática», de que todos temos direito à fama, mesmo que não façamos absolutamente nada para a merecer. A televisão, claro, contribui fortemente para isto, com as suas chuvas de estrelas, os seus inesgotáveis programas de talentos, e, não raro, os seus shows para macaquinhos de imitação.

Como resultado desta soma de equívocos — nem todos conscientes ou mal-intencionados, conceda-se — temos hoje grandes fragmentos geracionais que não sabem distinguir o mérito, o talento, a criatividade, a originalidade. Que não conhecem a história das artes nem têm com elas qualquer relação intelectual ou de afecto. Que «detestam» figadalmente o que não conhecem (e é quase tudo) e idolatram qualquer frivolidade que se pareça longinquamente com o «talento» e o gosto promovido pelas TVs.
Há muitas excepções a este cenário miserável, mas o ensino não devia viver apenas de iniciativas individuais (e difíceis, desprezadas) de professores esclarecidos e esforçados.

As artes no ensino não são importantes porque, na tal perspectiva laferiana, podem assegurar «casas cheias» no futuro (as estatísticas são outro equívoco), não é esse o ponto. A formação artística que o ensino pode e deve proporcionar não deve estar necessariamente focada em criar «públicos» (isso será um resultado natural) nem em criar artistas (a vocação não se incute). Prioritárias a isso tudo são a sensibilidade, o espírito crítico, a capacidade de abstracção, a autonomia de pensamento e o conhecimento, para os quais as artes são um veículo útil.

As artes não se fruem sem uma boa parte de individualidade, de concentração, de existência intelectual própria e capaz de se alhear dentro de si mesma pelo período de um andamento musical, de um monólogo, de uma sequência coreográfica, de um capítulo de um livro. Infelizmente as escolas não favorecem isto (que por natureza não é fácil) e o resultado é termos já hoje uma ou duas gerações que não se imaginam fechadas numa sala por uma hora sem poder conversar e gritar, sem trocar sms, sem fumar um cigarro ou beber um copo. As salas de cinema renderam-se a esta forma de estar e a própria Hollywood produz há muito filmes que não exigem atenção permanente ou perspicácia. Nos teatros, os espectáculos de massas são geralmente as comédias, os musicais ou os concertos, produções, que, se não dão para o cigarrito e a mini, sempre permitem a interacção na plateia e com o telemóvel durante as representações.

Face a tudo o que ficou dito, o maior paradoxo é que talvez nunca como hoje Portugal tenha tido nas artes tanta gente talentosa, criativa, cosmopolita, com bom gosto e formação sólida. Enquanto nação, não estamos à altura dos nossos actores, bailarinos e músicos. 

domingo, 23 de fevereiro de 2014

O último acto

[Depois dos postsDança contemporânea” e “A última dança”, impunha-se publicar aqui este conto.]


Ninguém está à espera que lhe tentem derrubar a casa, sobretudo se for apanhado lá dentro, mas foi isso que lhe aconteceu naquela noite. Mudara-se para a província no início da semana com o objectivo de passar o Verão. Não tinha exactamente um projecto a que se entregar, nada mais do que uma mala cheia de livros e a necessidade absoluta de não ver pessoas, pessoas conhecidas, pelo menos.

Escolheu uma vila pequena sem outros atractivos além de uma paisagem discreta e um festivalzinho de música clássica num fim-de-semana de Agosto (reparar no festival fora uma pequena cedência sua). Alugou por oito semanas o bungalow de madeira com uma lareira e um alpendre virado para um vale profundo. Ficava nos arredores da vila e fora o único a ser erigido de um complexo turístico falhado.

A cabana não estava nas melhores condições, era frágil, mas tinha conforto suficiente, mais do que muitas casas da povoação. Usaria o alpendre tanto quanto possível. Quando não estivesse ali sentada a ler os seus livros, andaria a tentar perder-se pelos montes ou teria ido fazer as refeições à vila, zelando para não criar laços na terra. Por uma vez na vida, estava-se pouco lixando para a educação ou para a cordialidade. Seria a velha antipática e egoísta que tinha direito a ser.

Bem, talvez não tivesse esse direito. Ou outros. Não tinha sido exactamente o melhor dos seres humanos. Mas, que diabo, quem poderia atirar a primeira pedra? Não havia seres humanos bons e ela queria mesmo que se fodessem todos (estava velha, podia, finalmente, usar o verbo foder). Se lhe entregassem as chaves de um arsenal nuclear nos momentos de ira, que agora eram cada vez mais frequentes, ela usá-las-ia.

Tinha sonhos apocalípticos, ultimamente. Via-se a deambular pelo mundo como o último habitante à face da terra. Não como naquelas películas catastróficas, mas optimistas, que deixam no ar uma possibilidade de recomeço depois da purga, que não resistem a revisitar o mito de Adão e Eva. Nada disso. Os sonhos eram seus e ela sobrevivia, mas apenas porque os sonhos, como as frases, precisam de um sujeito.

Não lhe desagradava, de qualquer modo, ser a testemunha do fim, a última pessoa viva. Ou uma das duas últimas pessoas vivas — se algum dia conseguisse enlevar-se em sonhos românticos. Teria piada, sonhar com um homem patético (todos os homens são patéticos) a fazer-lhe a corte depois do holocausto. A ela, à Eva sem útero. E sem ovários.

Acreditaria num Deus que se permitisse a deliciosa ironia de ser ela a última fêmea viva. (Mesmo que não lhe tivessem retirado todo o aparelho reprodutivo, era agora demasiado velha para assegurar a manutenção da espécie.) Dar-se-ia bem com a ideia de que morria nela toda a esperança da humanidade, ainda que reconhecesse ser esta uma ideia vingativa.

Na terceira semana começou a nevar. Estava a tarde a meio e ela apenas se deu ao trabalho de achar ridícula uma coisa daquelas, nevar em pleno Verão, com aquele calor. Era-lhe indiferente. A lareira estava apetrechada, caso a temperatura também baixasse, e havia mais lenha no coberto das traseiras do bungalow. Tinha a sua desculpa, escusava assim de se censurar por ficar em casa em vez de caminhar pelas redondezas (gostava do exercício físico, tivera sempre o culto do corpo, do movimento, mas agora já não divisava interesse nisso).

O crepúsculo foi belo, teve de admitir. Duas forças em oposição: a noite que caía e a neve que teimava em manter os campos e os montes iluminados. Assistiu ao combate de rosto colado na janela e livro esquecido nas mãos. A noite ganhou, naturalmente, mas não foi uma vitória completa. Não havia trevas, apenas uma penumbra que permitia ver muito mais do que os contornos das coisas. Ao redor da cabana estava até bem claro, como uma noite de filme. O branco da neve usava a luz eléctrica e a luz das estrelas para transformar a envolvência num décor algo artificial.

Então eles chegaram. Não se moviam como pessoas normais. Vinham aos esticões e aos tropeções, como robots inadaptados ao terreno. Na aparência eram totalmente humanos, ou quase, mas diferenciavam-se pelos movimentos, pela forma estranha que davam ao corpo, a maneira impossível como mexiam e posicionavam os membros.

«Marionetas animadas», deu consigo a pensar. Alguns pareciam querer aproveitar a neve para deslizar. Outros simplesmente tombavam a cada dois passos, com violência. Levantavam-se de imediato para voltarem a cair no passo seguinte. Depois, já nem se davam ao trabalho de se levantarem, simplesmente saltavam no chão com o corpo na horizontal, como gatos atropelados, acrobaticamente, conseguindo progredir no terreno desta forma.

Não era absurdo ver uma intenção coreográfica naquilo tudo. Pelo menos ela achava que era esse o espírito que animava os visitantes. Talvez porque não estava disposta a ceder ao pânico fácil de se imaginar na presença de uma dúzia de mortos-vivos ou ameaçadores seres mutantes.

No momento seguinte, eles levantaram-se e juntaram-se em círculo, com os braços nos ombros uns dos outros, como uma equipa de râguebi disforme. Segredavam e parecia ouvir-se uma música alusiva à conspiração (de certeza o vento, que entretanto chegara). Ela fechou o livro e apagou a luz. Apetecia-lhe desfrutar aquilo intensamente (e ao mesmo tempo sentiu que era esse o gesto que se esperava dela, como se tudo naquela noite obedecesse a um guião).

Depois, pareceu que uma bomba rebentou no meio do conciliábulo lá fora, cada corpo foi projectado para um lado e os primeiros a conseguirem levantar-se tiveram uma reacção estranha: correram a atirar-se contra a cabana.

De início achou que devia abrir a porta — aquelas pessoas procuravam abrigo, certamente —, mas alguma coisa a fez permanecer à janela, a espreitar. Talvez eles desejassem, na verdade, derrubar-lhe a casa, fazê-la cair sobre si própria, sepultando-a viva. Era uma ideia terrível. Mas ela tinha prazer naquilo, em observar a violência com que os visitantes se atiravam contra a casa, mas também a forma coordenada e bela como o faziam. Eram impactos de uma beleza não convencional, que assentava precisamente na violência mas também na imunidade de que pareciam beneficiar os atacantes. Daquele assalto não resultavam danos físicos para eles. Era possível sentir a força a que era submetida a estrutura de madeira da cabana, mas não havia lesões ou queixumes.

As arremetidas obedeciam a um padrão e ela esteve quase a decifrá-lo, mas acabou por perder o raciocínio. Acontecia-lhe com crescente frequência. Estava velha, não havia nada a fazer.

Um dos visitantes esmagou de súbito o rosto contra a janela, sem a partir, e ela, com um susto, julgou reconhecer aquela cara. Não lhe faltaria mais nada, pensou, tanto trabalho para conseguir um Verão só para si e agora ter conhecidos a tentarem derrubar-lhe a cabana com o próprio corpo. Seria patético, se não fosse trágico.

Estava a tentar concentrar-se nas razões que levariam um grupo de desconhecidos (ela insistia em esperar que o fossem) a encetar um ataque daquele género quando todos lá fora se detiveram, fixando um ponto qualquer para lá do círculo de luz que rodeava o bungalow. Não falavam, mas o seu olhar dizia tudo: o inominável, nada menos do que isso. Ouviam-se passos pesados e uma música tensa.

Após alguns instantes em que apenas soava o uivo do vento, um velho, mais aturdido do que ameaçador, atravessou a neve pisada do quintal. Passou em silêncio pelo grupo petrificado e veio postar-se de joelhos à frente da janela do bungalow. No rosto uma expressão de súplica.

Demorou alguns segundos, mas conseguiu uma identificação. O velho parecia-se assombrosamente com alguém que ela conhecera intimamente. E se ele era quem parecia, esta era uma visita do além: aquele homem já não existia. Tanto quanto conseguia calcular, ele não devia estar ali, não podia estar ali. Teve um suspiro de enfado e deixou-se cair no sofá. Pior do que a visita de conhecidos era a visita de conhecidos mortos.

Passados uns instantes, uma voz sussurrou-lhe na cabeça e ela sobressaltou-se. A voz dizia-lhe: Maria, agora sais da cabana e abraça-lo.

Que demónios significava isto? Que epifania absurda era esta? Quem lhe falava? Que divindade não invocada lhe dava ordens? Tentou abafar aqueles murmúrios tapando os ouvidos com as mãos e nesse momento percebeu que tinha um auricular enfiado numa das orelhas, era dali que vinha voz.

Não pôde pensar mais sobre este estranho facto porque lá fora um dos outros visitantes, aquele que se tinha encostado ao vidro, saiu do seu torpor e começou a mexer-se freneticamente, como se possuído por um demónio ou tomado por um feroz ataque epiléptico. De novo lhe pareceram familiares a pessoa e os movimentos que ela impingia ao corpo.

Era um homem jovem, de traços orientais, e fazia coisas assombrosas com o seu corpo. Parecia ter a capacidade de o transformar, dar-lhe novas e sempre diferentes formas. Esticava-se e parecia uma pessoa alta, de longos membros, ou encolhia-se até ao chão e não era mais do que um pequeno monte de roupa enrugada sem nada dentro; erguia-se de novo como uma pessoa franzina, pouco mais do que um cadáver emagrecido, e no momento seguinte ficava largo de ombros, os músculos recortados e imponentes.

Ela lembrava-se de algo assim. Um solo de dança contemporânea num dos espectáculos da sua antiga companhia. Pensou, com indesejada saudade, que até o rapaz lhe parecia o mesmo, também o seu colega era oriental, sul-coreano. Depois teve um sobressalto: aquele não parecia o Yun Jung — era ele.

«Oh, meu Deus!», disse para si própria. A sua cabeça estava mesmo confusa, já não conseguia distinguir a realidade das fantasias. Envelhecer desta forma era cruel. Olhou à volta e algumas coisas começaram a fazer outro sentido: a cabana era parte de um cenário, as estrelas não passavam de projectores de luz e aqueles lá fora eram o restante elenco da companhia, onde ela, aos oitenta anos, continuava a ter um papel. As suas memórias mais recentes eram apenas o guião da própria peça. Não estava retirada para passar o Verão na província, estava a meio de uma representação. Algures para lá das luzes ficava a plateia e o público assistia impavidamente à sua confusão mental.

Ou seria esta a sua fantasia? Alimentava afinal saudades e banhava tudo à sua volta com as cores do afecto, dava novos rostos às pessoas e às coisas? E se fossem lobos ou algo pior aquilo que rodeava a cabana?

A voz soou de novo na sua cabeça, como um ponto a segredar-lhe as deixas, um expediente a que nos últimos tempos tinha de recorrer para conseguir fazer o seu papel. Não tinha a certeza de ser isto a verdade — o seu espírito estava dividido —, mas desta vez obedeceu, não conseguia já resistir. Saiu da cabana com inquietação e dirigiu-se ao velho de joelhos.

A voz indicou-lhe que devia tomar-lhe o rosto nas mãos e ela fê-lo. Aquele era o seu marido. Fosse qual fosse a realidade, causava-lhe enorme embaraço ele estar ali. Era doloroso enfrentá-lo novamente. No auricular soaram as palavras que ela agora devia dizer. Não se falava muito, na dança contemporânea, não tanto como no teatro, mas a sua era uma companhia que estava para lá dos géneros.

«Maria, agora dizes: ‘Que fazes aqui? Não te disse que nunca te amei? Que só estive contigo aqueles anos todos porque não tive coragem de te abandonar?’»

Esta era a deixa, se isto fosse uma representação. Mas estas eram também as palavras que ela diria se estivesse retirada no meio de uma cabana e o marido morto resolvesse aparecer-lhe. A realidade era uma coisa difusa, sem fronteiras, mutável. Apenas as palavras eram verdadeiras, fosse qual fosse o contexto onde ela as devia pronunciar.

Olhou profundamente para o marido e percebeu a crueldade do que ia fazer — mas foi incapaz de conter as palavras, de deixar por dizer o que estava escrito. No papel do guião ou nas profundezas da sua alma.


[Inspirado pela peça “32 Rue Vandenbranden”, da Peeping Tom).]

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A última dança

O vídeo da companhia Rubberbandance que inspirou o post anterior não é necessariamente o mais representativo. Sê-lo-iam mais estes espectáculos da companhia Peeping Tom: “32 rue Vandenbranden” e “Le Sous Sol”, ou este, da C de la B: “Ashes”, vistos em Guimarães e no Porto. Por outro lado, várias companhias ou coreógrafos portugueses poderiam também elucidar o que disse no post. Neste campo, como de resto nos mais variados géneros musicais e no teatro, o país não padece de talento e profissionalismo como padece por exemplo na política e na gestão. A juntar-se a ex-elementos do Ballet Gulbenkian e da Companhia Nacional de Bailado, há uma nova geração de intérpretes (e coreógrafos) com formação sólida, experiência (tantas vezes internacional) e talento que infelizmente terá agora menos oportunidades de desenvolver o seu trabalho. O Portugal dos últimos anos — «europeu» no sentido civilizado, culto, sofisticado, cosmopolita, democrático e descentralizado que se costuma utilizar para falar da Europa central —, o país onde as pessoas podiam fruir o seu gosto pela dança contemporânea sem precisarem de se deslocar com demasiada frequência a Lisboa, muitas vezes sem precisarem sequer de sair da sua cidade ou da cidade de província que por algum acaso estavam a visitar, está a terminar. A troika, o governo e o statu quo encarregar-se-ão de devolver o país à condição de provinciano e de gosto único.

Dança contemporânea

["Gravity of Center", Rubberbandance: http://vimeo.com/30708149]

Gosto de música, de pintura, de cinema, de dança, de literatura, de teatro, e gosto de tudo isto com um eclectismo bem pronunciado, que em certos momentos — na presença de certa fidalguia artística menos condescendente — se pode tornar embaraçoso. Mas, de todas as artes, a que mais me arrebata é a dança. Não a dança clássica ou de salão (aqui o eclectismo retrai-se). Refiro-me à dança contemporânea.

Não sou um indefectível da arte contemporânea. Nem sequer da arte moderna. Ou modernista. Há movimentos ou tendências do século XX que deixaram sementes e eu dispenso fora do seu contexto histórico e fora da história das ideias, ou das atitudes. Acresce que o verniz de leituras, viagens, idas a museus e teatros não sepultou de todo o rapazola que no fim a província manteve enredado: por vezes dou por mim a olhar para algumas obras como um tradicional boi a olhar para um palácio. (Porém, um boi que não investe.)

Mas sou certamente alguém que se aborrece com águas estagnadas, com o gosto tradicional ou massificado, com a ingenuidade popular, com a pomposidade e a arte mecânica, imitativa, evocativa, desinspirada, insensível, medíocre, atrofiante.
Do ballet clássico, por exemplo, interessa-me apenas a música. Se tenho o azar de entrar numa sala onde se dança uma dessas peças, fecho os olhos e passo um bom bocado — que é ainda melhor se há orquestra ao vivo.
De resto, por alguma razão o ballet clássico se tornou “popular”, enchendo coliseus, e virou fetiche de elementos de todas as classes (alta, média e baixa), que acorrem a ele com entusiasmo e casacos de pele como a um ritual, a uma festividade religiosa, a uma vernissage, na sua ânsia de emular nos hábitos e na pose fútil a elite aristocrata há muito destronada.

A dança contemporânea — expressão aliás vaga, equívoca, designando desde peças efectivamente de dança a performances; de teatro físico ou de objectos a produções multidisciplinares e transdisciplinares; de momentos de expressão corporal a happenings —, a dança contemporânea, dizia, aquela de que eu mais gosto, confunde-se com algum teatro e raramente deixa de lado ou menoriza a música, ou uma criativa sonoplastia. Está consciente da história da dança e das suas múltiplas expressões — clássicas ou primitivas, de salão ou de rua, urbanas ou folclóricas — e não desdenha cumplicidades com a palavra e a atitude teatral. De certo modo, em muitos casos, é aquilo a que eu chamaria a ópera dos dias de hoje: um espectáculo global expressionista, que se absorve mais com os sentidos do que com a razão. Como se lia num título do Público, «uma dança que não é para perceber, é para sentir».

N’Os Idiotas, a minha «novela picaresca» (assim se referiu ao livrinho um ilustre leitor), uma personagem definia a dança contemporânea da seguinte maneira… picaresca: «um reboliço caótico onde, espantosamente, era possível ainda assim perceber disciplina, padrão, coreografia. Aquelas pessoas no palco assemelhavam-se a vítimas de trombose, doentes epilépticos, loucos saídos do hospital psiquiátrico, mas no meio do frenesim, dos transes, das convulsões e das quedas percebia-se que exerciam autoridade sobre os seus membros. Pareciam desajeitadas porque tinham decidido ser desajeitadas. Caíam, mas levantavam-se por si mesmas. Derrubavam objectos no palco porque estava no guião derrubar objectos no palco. Eram, enfim, donas do seu corpo e da sua vontade.» E também fazia um paralelismo com o ballet: «[…] o que distinguia a dança contemporânea da clássica era o que distinguia o caos da ordem. O ballet clássico tentava uma tal harmonia e uma tal perfeição que se tornava artificial e enfadonho. A dança contemporânea parecia mais ligada ao erro e à vida quotidiana dos corpos, mesmo que na maior parte das vezes se tratasse de corpos atormentados», interpretados por gente com um «perfil fibroso e elástico».

No texto do Público referido atrás, um coreógrafo fala da sua arte como uma coisa «abstracta» e «poética» e eu acho que ele tem razão. É de poesia que se trata, quando as peças são boas e nos enfeitiçam. Talvez não as possamos explicar, ou o que delas entendemos nem sequer se aproxime das intenções do coreógrafo/encenador (que quando é avisado não manifesta intenções, não muito específicas, pelo menos; não escreve sinopses detalhadas do indescritível). Perante a dança contemporânea julgo que nos devemos simplesmente sentar, disponíveis para sermos estimulados, desafiados através dos olhos, dos ouvidos e das entranhas; disponíveis para termos a epiderme da alma (passe a imagem pateta) titilada, acariciada, massajada. Em muitos casos, nos melhores, é também a nossa inteligência que, além de respeitada, é sugestionada, a nossa imaginação expandida.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Nico — a revolta (cartaz)

cartaz


O filme Nico — a revolta, realizado por Paulo Araújo, foi seleccionado para o prémio melhor curta-metragem portuguesa do MOTELx – Festival Internacional de Cinema de Terror.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Agora a cultura será efervescente

Diário de Notícias:

Filomena Cautela apresenta magazine cultural na RTP2

Afinal a RTP2 ainda pode acolher um magazine cultural. Esta é uma forma de ver as coisas. A outra é que a administração da RTP decidiu dar forma ao sonho de uma menina.
Filomena Cautela, parece que apresentadora e actriz, tinha o sonho de ser apresentadora de um “programa cultural”. Vai daí, apresentou a ideia à RTP e a estação achou-a tão necessária e inovadora (um programa cultural!, quem imaginaria?) que não viu como podia recusá-la, abraçou-a de imediato.

A ideia parte de boas intenções — mas não consegue parar por aí; como em todos os sonhos adolescentes, entra em delírios. Por exemplo: «Quero fazer com que as pessoas percebam que a cultura não é aborrecida e que o teatro é bom, muda mentalidades, sociedades». Até aqui todos de acordo, certo? (Mais ou menos, pronto.) Só que a frase está incompleta. A apresentadora também acha que o teatro (ou a cultura) «nos pode tirar da crise», mas, lamentavelmente, não explica se é através do clássico deus ex-machina ou de outro artifício cénico. Num segundo exemplo, revela-nos que «o mote do programa é falar de cultura e de arte de uma forma acessível, directa, estimulante». Poderíamos achar isto redutor mas aceitável — se ela não acrescentasse que também quer falar de cultura de uma forma «efervescente».

Ora, uma coisa que é a concretização de um sonho, que acredita no fim da crise pela arte e pretende falar de cultura de uma forma «efervescente» parece um discurso de Miss Portugal, não um programa para levar a sério.
Esta generosidade cheira a legado do ex-ministro Relvas. Mas agora que ele saiu não poderíamos ter de volta a Paula Moura Pinheiro ou outra pessoa que não ache que a cultura tem de ser descomplicada, traduzida para dialecto púbere e apresentada buliçosamente, com câmara irrequieta, como se fosse o Top+?


P.S. Desconfio, mas pode ser apenas mau-feitio, que mostrar que «a cultura não é aborrecida» e falar dela «de uma forma acessível, directa» implicará omitir o “aborrecido” e tudo aquilo que não seja acessível e directo segundo os padrões de um público “efervescente”.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

«Os portugueses não estão preparados para isto»

Na peça “Três dedos abaixo do joelho” os censores de teatro do Estado Novo foram convidados por Tiago Rodrigues a serem co-autores do texto. Na verdade, eles são praticamente os únicos autores, o dramaturgo e encenador limitou-se a copiar e colar inteligentemente frases dos seus relatórios e com isso construir o guião da peça e os diálogos dos actores. Mais de quarenta anos depois, testemunhamos como a liberdade criativa era cerceada e, simultaneamente, como uma elite no poder se achava no direito de interpretar os interesses dos portugueses, ou, pior, como se achava no direito de decidir o que os portugueses conseguiam ou não perceber. A inteligência dos nossos pais e mães, tios e avós, a que se referem vários relatórios, era ofendida com decretos do género: «os portugueses não estão preparados para isto»; «os portugueses quando vão ao teatro querem apenas divertir-se»; «os portugueses não querem estas inquietações, estas perturbações do espírito».

Hoje, quando nos sentamos livremente numa plateia, estaremos a precipitar-nos se sentirmos que isso vinga os nossos antepassados. O facto de ocasionalmente nos permitirmos e nos permitirem entrar numa sala de teatro para sermos inquietados ou perturbados é uma vingança provisória, efémera, sem grande alcance e certamente não garantida.

O país já não dispõe daquelas figuras de lápis azul e mangas-de-alpaca laboriosamente encerradas em gabinetes do Secretariado Nacional de Informação para determinarem ao que o país pode ou não pode assistir. Dispõe de outras: sentadas nas direcções de programação das televisões (pública e privadas) e sentadas na vereação de cultura de uma enorme quantidade de câmaras municipais no país. Não usam o lápis azul porque hoje os amanuenses não escrevem com lápis, nem têm um regime ou uma moral de estado para defender.
Mas têm a mesma ignorância despótica ou a mesma aversão à diversidade e ao livre arbítrio que tinha o Estado Novo. Cidadãos que pensem e escolham livremente são um empecilho na luta pelas audiências e uma dificuldade evitável para uma gestão autárquica que se quer simples como umas férias de Verão.
É verdade que, ao contrário das instituições do Estado Novo, as televisões e as vereações não visam defender um regime nacional ou uma moral pública quando exercem a sua política de estrangulamento ou afunilamento do gosto — mas está na sua natureza defender o statu quo, e, se a moral ganhou em muitos campos uma considerável elasticidade, não foi em geral a suficiente para suportar interesses divergentes.
Um e outro sistema, o das ondas hertzianas e o do feudo provincial, precisam de uniformidade para exerceram a sua influência, as televisões para venderem os seus sabonetes, certo poder autárquico para poder manter-se com os mesmos fracos protagonistas e a mesma atávica incompetência.

Acresce que atávica é também a relação de muitos portugueses com a diversidade e com as coisas que inquietam o espírito. Se não houvesse tiranetes do gosto nas TVs e numa grande quantidade de câmaras, muito povo estaria ele próprio disposto a sair à rua a gritar que «os portugueses quando vão ao teatro querem apenas divertir-se».
Na verdade, fá-lo frequentemente, desdenhando ou considerando uma veleidade insustentável haver concidadãos que queiram ir ao teatro por outras razões.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Ó mãe, o intelectual é mau!

«Há uns ditos intelectuais que acham que só eles é que sabem o que é bom.»
Esta frase de Tony Carreira (mas podia ser de tantos outros, cançonetistas e escritores de sucesso), publicada no sempre prestimoso JN, revela como lá no fundinho a personagem sente mágoa por não ter a admiração dos intelectuais. Um Pavilhão Atlântico cheio de povo ou uma tiragem à Dan Brown podem confortar a alma e alimentar a megalomania, mas não compensam o desprezo dos intelectuais.
É uma conhecida técnica infantil odiar o que não se compreende ou o que não nos satisfaz os caprichos. A criança que se magoa numa esquina, por natureza estática, inerme e sem intenções, reage batendo na esquina e declarando que não gosta da esquina, a esquina é má.
Por vezes, é também um tique de déspota acossado: desejar matar o portador das más notícias, como se isso afastasse as más notícias, as tornasse falsas.

Deve ainda ter-se em conta que o ódio aos intelectuais é a forma que alguns best-sellers encontram para moldar a sua arte ou, mais vulgarmente, para desculpar a sua incapacidade de a tornar melhor.
Ao determinarem que «se inúmeros gostam é bom», estão a autoconvencerem-se que o que fazem é bom. Atribuem à massa que os ama a condição de árbitro da beleza, como Nero fazia a Petrónio enquanto este o bajulava (pronto para o mandar decapitar se fizesse o contrário).
E ao desclassificarem os intelectuais, apondo-lhes aspas ou o prefixo “pseudo” (que usam como insulto), ao dizerem que se os intelectuais não gostam é porque não alcançam a simplicidade da beleza, estão a traçar um caminho que os afasta irremediavelmente da possibilidade de melhorarem o seu próprio trabalho, impõem-se uma bitola superior que juram não ultrapassar.
É verdade que na maioria dos casos não teriam meios para a ultrapassar — e o ódio aos intelectuais é então também a mão com que afagam o rosto, a mão que os conforta na sua impotência. «Ó mãe, o intelectual é mau! Bate no intelectual!»