domingo, 23 de fevereiro de 2014

O último acto

[Depois dos postsDança contemporânea” e “A última dança”, impunha-se publicar aqui este conto.]


Ninguém está à espera que lhe tentem derrubar a casa, sobretudo se for apanhado lá dentro, mas foi isso que lhe aconteceu naquela noite. Mudara-se para a província no início da semana com o objectivo de passar o Verão. Não tinha exactamente um projecto a que se entregar, nada mais do que uma mala cheia de livros e a necessidade absoluta de não ver pessoas, pessoas conhecidas, pelo menos.

Escolheu uma vila pequena sem outros atractivos além de uma paisagem discreta e um festivalzinho de música clássica num fim-de-semana de Agosto (reparar no festival fora uma pequena cedência sua). Alugou por oito semanas o bungalow de madeira com uma lareira e um alpendre virado para um vale profundo. Ficava nos arredores da vila e fora o único a ser erigido de um complexo turístico falhado.

A cabana não estava nas melhores condições, era frágil, mas tinha conforto suficiente, mais do que muitas casas da povoação. Usaria o alpendre tanto quanto possível. Quando não estivesse ali sentada a ler os seus livros, andaria a tentar perder-se pelos montes ou teria ido fazer as refeições à vila, zelando para não criar laços na terra. Por uma vez na vida, estava-se pouco lixando para a educação ou para a cordialidade. Seria a velha antipática e egoísta que tinha direito a ser.

Bem, talvez não tivesse esse direito. Ou outros. Não tinha sido exactamente o melhor dos seres humanos. Mas, que diabo, quem poderia atirar a primeira pedra? Não havia seres humanos bons e ela queria mesmo que se fodessem todos (estava velha, podia, finalmente, usar o verbo foder). Se lhe entregassem as chaves de um arsenal nuclear nos momentos de ira, que agora eram cada vez mais frequentes, ela usá-las-ia.

Tinha sonhos apocalípticos, ultimamente. Via-se a deambular pelo mundo como o último habitante à face da terra. Não como naquelas películas catastróficas, mas optimistas, que deixam no ar uma possibilidade de recomeço depois da purga, que não resistem a revisitar o mito de Adão e Eva. Nada disso. Os sonhos eram seus e ela sobrevivia, mas apenas porque os sonhos, como as frases, precisam de um sujeito.

Não lhe desagradava, de qualquer modo, ser a testemunha do fim, a última pessoa viva. Ou uma das duas últimas pessoas vivas — se algum dia conseguisse enlevar-se em sonhos românticos. Teria piada, sonhar com um homem patético (todos os homens são patéticos) a fazer-lhe a corte depois do holocausto. A ela, à Eva sem útero. E sem ovários.

Acreditaria num Deus que se permitisse a deliciosa ironia de ser ela a última fêmea viva. (Mesmo que não lhe tivessem retirado todo o aparelho reprodutivo, era agora demasiado velha para assegurar a manutenção da espécie.) Dar-se-ia bem com a ideia de que morria nela toda a esperança da humanidade, ainda que reconhecesse ser esta uma ideia vingativa.

Na terceira semana começou a nevar. Estava a tarde a meio e ela apenas se deu ao trabalho de achar ridícula uma coisa daquelas, nevar em pleno Verão, com aquele calor. Era-lhe indiferente. A lareira estava apetrechada, caso a temperatura também baixasse, e havia mais lenha no coberto das traseiras do bungalow. Tinha a sua desculpa, escusava assim de se censurar por ficar em casa em vez de caminhar pelas redondezas (gostava do exercício físico, tivera sempre o culto do corpo, do movimento, mas agora já não divisava interesse nisso).

O crepúsculo foi belo, teve de admitir. Duas forças em oposição: a noite que caía e a neve que teimava em manter os campos e os montes iluminados. Assistiu ao combate de rosto colado na janela e livro esquecido nas mãos. A noite ganhou, naturalmente, mas não foi uma vitória completa. Não havia trevas, apenas uma penumbra que permitia ver muito mais do que os contornos das coisas. Ao redor da cabana estava até bem claro, como uma noite de filme. O branco da neve usava a luz eléctrica e a luz das estrelas para transformar a envolvência num décor algo artificial.

Então eles chegaram. Não se moviam como pessoas normais. Vinham aos esticões e aos tropeções, como robots inadaptados ao terreno. Na aparência eram totalmente humanos, ou quase, mas diferenciavam-se pelos movimentos, pela forma estranha que davam ao corpo, a maneira impossível como mexiam e posicionavam os membros.

«Marionetas animadas», deu consigo a pensar. Alguns pareciam querer aproveitar a neve para deslizar. Outros simplesmente tombavam a cada dois passos, com violência. Levantavam-se de imediato para voltarem a cair no passo seguinte. Depois, já nem se davam ao trabalho de se levantarem, simplesmente saltavam no chão com o corpo na horizontal, como gatos atropelados, acrobaticamente, conseguindo progredir no terreno desta forma.

Não era absurdo ver uma intenção coreográfica naquilo tudo. Pelo menos ela achava que era esse o espírito que animava os visitantes. Talvez porque não estava disposta a ceder ao pânico fácil de se imaginar na presença de uma dúzia de mortos-vivos ou ameaçadores seres mutantes.

No momento seguinte, eles levantaram-se e juntaram-se em círculo, com os braços nos ombros uns dos outros, como uma equipa de râguebi disforme. Segredavam e parecia ouvir-se uma música alusiva à conspiração (de certeza o vento, que entretanto chegara). Ela fechou o livro e apagou a luz. Apetecia-lhe desfrutar aquilo intensamente (e ao mesmo tempo sentiu que era esse o gesto que se esperava dela, como se tudo naquela noite obedecesse a um guião).

Depois, pareceu que uma bomba rebentou no meio do conciliábulo lá fora, cada corpo foi projectado para um lado e os primeiros a conseguirem levantar-se tiveram uma reacção estranha: correram a atirar-se contra a cabana.

De início achou que devia abrir a porta — aquelas pessoas procuravam abrigo, certamente —, mas alguma coisa a fez permanecer à janela, a espreitar. Talvez eles desejassem, na verdade, derrubar-lhe a casa, fazê-la cair sobre si própria, sepultando-a viva. Era uma ideia terrível. Mas ela tinha prazer naquilo, em observar a violência com que os visitantes se atiravam contra a casa, mas também a forma coordenada e bela como o faziam. Eram impactos de uma beleza não convencional, que assentava precisamente na violência mas também na imunidade de que pareciam beneficiar os atacantes. Daquele assalto não resultavam danos físicos para eles. Era possível sentir a força a que era submetida a estrutura de madeira da cabana, mas não havia lesões ou queixumes.

As arremetidas obedeciam a um padrão e ela esteve quase a decifrá-lo, mas acabou por perder o raciocínio. Acontecia-lhe com crescente frequência. Estava velha, não havia nada a fazer.

Um dos visitantes esmagou de súbito o rosto contra a janela, sem a partir, e ela, com um susto, julgou reconhecer aquela cara. Não lhe faltaria mais nada, pensou, tanto trabalho para conseguir um Verão só para si e agora ter conhecidos a tentarem derrubar-lhe a cabana com o próprio corpo. Seria patético, se não fosse trágico.

Estava a tentar concentrar-se nas razões que levariam um grupo de desconhecidos (ela insistia em esperar que o fossem) a encetar um ataque daquele género quando todos lá fora se detiveram, fixando um ponto qualquer para lá do círculo de luz que rodeava o bungalow. Não falavam, mas o seu olhar dizia tudo: o inominável, nada menos do que isso. Ouviam-se passos pesados e uma música tensa.

Após alguns instantes em que apenas soava o uivo do vento, um velho, mais aturdido do que ameaçador, atravessou a neve pisada do quintal. Passou em silêncio pelo grupo petrificado e veio postar-se de joelhos à frente da janela do bungalow. No rosto uma expressão de súplica.

Demorou alguns segundos, mas conseguiu uma identificação. O velho parecia-se assombrosamente com alguém que ela conhecera intimamente. E se ele era quem parecia, esta era uma visita do além: aquele homem já não existia. Tanto quanto conseguia calcular, ele não devia estar ali, não podia estar ali. Teve um suspiro de enfado e deixou-se cair no sofá. Pior do que a visita de conhecidos era a visita de conhecidos mortos.

Passados uns instantes, uma voz sussurrou-lhe na cabeça e ela sobressaltou-se. A voz dizia-lhe: Maria, agora sais da cabana e abraça-lo.

Que demónios significava isto? Que epifania absurda era esta? Quem lhe falava? Que divindade não invocada lhe dava ordens? Tentou abafar aqueles murmúrios tapando os ouvidos com as mãos e nesse momento percebeu que tinha um auricular enfiado numa das orelhas, era dali que vinha voz.

Não pôde pensar mais sobre este estranho facto porque lá fora um dos outros visitantes, aquele que se tinha encostado ao vidro, saiu do seu torpor e começou a mexer-se freneticamente, como se possuído por um demónio ou tomado por um feroz ataque epiléptico. De novo lhe pareceram familiares a pessoa e os movimentos que ela impingia ao corpo.

Era um homem jovem, de traços orientais, e fazia coisas assombrosas com o seu corpo. Parecia ter a capacidade de o transformar, dar-lhe novas e sempre diferentes formas. Esticava-se e parecia uma pessoa alta, de longos membros, ou encolhia-se até ao chão e não era mais do que um pequeno monte de roupa enrugada sem nada dentro; erguia-se de novo como uma pessoa franzina, pouco mais do que um cadáver emagrecido, e no momento seguinte ficava largo de ombros, os músculos recortados e imponentes.

Ela lembrava-se de algo assim. Um solo de dança contemporânea num dos espectáculos da sua antiga companhia. Pensou, com indesejada saudade, que até o rapaz lhe parecia o mesmo, também o seu colega era oriental, sul-coreano. Depois teve um sobressalto: aquele não parecia o Yun Jung — era ele.

«Oh, meu Deus!», disse para si própria. A sua cabeça estava mesmo confusa, já não conseguia distinguir a realidade das fantasias. Envelhecer desta forma era cruel. Olhou à volta e algumas coisas começaram a fazer outro sentido: a cabana era parte de um cenário, as estrelas não passavam de projectores de luz e aqueles lá fora eram o restante elenco da companhia, onde ela, aos oitenta anos, continuava a ter um papel. As suas memórias mais recentes eram apenas o guião da própria peça. Não estava retirada para passar o Verão na província, estava a meio de uma representação. Algures para lá das luzes ficava a plateia e o público assistia impavidamente à sua confusão mental.

Ou seria esta a sua fantasia? Alimentava afinal saudades e banhava tudo à sua volta com as cores do afecto, dava novos rostos às pessoas e às coisas? E se fossem lobos ou algo pior aquilo que rodeava a cabana?

A voz soou de novo na sua cabeça, como um ponto a segredar-lhe as deixas, um expediente a que nos últimos tempos tinha de recorrer para conseguir fazer o seu papel. Não tinha a certeza de ser isto a verdade — o seu espírito estava dividido —, mas desta vez obedeceu, não conseguia já resistir. Saiu da cabana com inquietação e dirigiu-se ao velho de joelhos.

A voz indicou-lhe que devia tomar-lhe o rosto nas mãos e ela fê-lo. Aquele era o seu marido. Fosse qual fosse a realidade, causava-lhe enorme embaraço ele estar ali. Era doloroso enfrentá-lo novamente. No auricular soaram as palavras que ela agora devia dizer. Não se falava muito, na dança contemporânea, não tanto como no teatro, mas a sua era uma companhia que estava para lá dos géneros.

«Maria, agora dizes: ‘Que fazes aqui? Não te disse que nunca te amei? Que só estive contigo aqueles anos todos porque não tive coragem de te abandonar?’»

Esta era a deixa, se isto fosse uma representação. Mas estas eram também as palavras que ela diria se estivesse retirada no meio de uma cabana e o marido morto resolvesse aparecer-lhe. A realidade era uma coisa difusa, sem fronteiras, mutável. Apenas as palavras eram verdadeiras, fosse qual fosse o contexto onde ela as devia pronunciar.

Olhou profundamente para o marido e percebeu a crueldade do que ia fazer — mas foi incapaz de conter as palavras, de deixar por dizer o que estava escrito. No papel do guião ou nas profundezas da sua alma.


[Inspirado pela peça “32 Rue Vandenbranden”, da Peeping Tom).]

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A última dança

O vídeo da companhia Rubberbandance que inspirou o post anterior não é necessariamente o mais representativo. Sê-lo-iam mais estes espectáculos da companhia Peeping Tom: “32 rue Vandenbranden” e “Le Sous Sol”, ou este, da C de la B: “Ashes”, vistos em Guimarães e no Porto. Por outro lado, várias companhias ou coreógrafos portugueses poderiam também elucidar o que disse no post. Neste campo, como de resto nos mais variados géneros musicais e no teatro, o país não padece de talento e profissionalismo como padece por exemplo na política e na gestão. A juntar-se a ex-elementos do Ballet Gulbenkian e da Companhia Nacional de Bailado, há uma nova geração de intérpretes (e coreógrafos) com formação sólida, experiência (tantas vezes internacional) e talento que infelizmente terá agora menos oportunidades de desenvolver o seu trabalho. O Portugal dos últimos anos — «europeu» no sentido civilizado, culto, sofisticado, cosmopolita, democrático e descentralizado que se costuma utilizar para falar da Europa central —, o país onde as pessoas podiam fruir o seu gosto pela dança contemporânea sem precisarem de se deslocar com demasiada frequência a Lisboa, muitas vezes sem precisarem sequer de sair da sua cidade ou da cidade de província que por algum acaso estavam a visitar, está a terminar. A troika, o governo e o statu quo encarregar-se-ão de devolver o país à condição de provinciano e de gosto único.

Dança contemporânea

["Gravity of Center", Rubberbandance: http://vimeo.com/30708149]

Gosto de música, de pintura, de cinema, de dança, de literatura, de teatro, e gosto de tudo isto com um eclectismo bem pronunciado, que em certos momentos — na presença de certa fidalguia artística menos condescendente — se pode tornar embaraçoso. Mas, de todas as artes, a que mais me arrebata é a dança. Não a dança clássica ou de salão (aqui o eclectismo retrai-se). Refiro-me à dança contemporânea.

Não sou um indefectível da arte contemporânea. Nem sequer da arte moderna. Ou modernista. Há movimentos ou tendências do século XX que deixaram sementes e eu dispenso fora do seu contexto histórico e fora da história das ideias, ou das atitudes. Acresce que o verniz de leituras, viagens, idas a museus e teatros não sepultou de todo o rapazola que no fim a província manteve enredado: por vezes dou por mim a olhar para algumas obras como um tradicional boi a olhar para um palácio. (Porém, um boi que não investe.)

Mas sou certamente alguém que se aborrece com águas estagnadas, com o gosto tradicional ou massificado, com a ingenuidade popular, com a pomposidade e a arte mecânica, imitativa, evocativa, desinspirada, insensível, medíocre, atrofiante.
Do ballet clássico, por exemplo, interessa-me apenas a música. Se tenho o azar de entrar numa sala onde se dança uma dessas peças, fecho os olhos e passo um bom bocado — que é ainda melhor se há orquestra ao vivo.
De resto, por alguma razão o ballet clássico se tornou “popular”, enchendo coliseus, e virou fetiche de elementos de todas as classes (alta, média e baixa), que acorrem a ele com entusiasmo e casacos de pele como a um ritual, a uma festividade religiosa, a uma vernissage, na sua ânsia de emular nos hábitos e na pose fútil a elite aristocrata há muito destronada.

A dança contemporânea — expressão aliás vaga, equívoca, designando desde peças efectivamente de dança a performances; de teatro físico ou de objectos a produções multidisciplinares e transdisciplinares; de momentos de expressão corporal a happenings —, a dança contemporânea, dizia, aquela de que eu mais gosto, confunde-se com algum teatro e raramente deixa de lado ou menoriza a música, ou uma criativa sonoplastia. Está consciente da história da dança e das suas múltiplas expressões — clássicas ou primitivas, de salão ou de rua, urbanas ou folclóricas — e não desdenha cumplicidades com a palavra e a atitude teatral. De certo modo, em muitos casos, é aquilo a que eu chamaria a ópera dos dias de hoje: um espectáculo global expressionista, que se absorve mais com os sentidos do que com a razão. Como se lia num título do Público, «uma dança que não é para perceber, é para sentir».

N’Os Idiotas, a minha «novela picaresca» (assim se referiu ao livrinho um ilustre leitor), uma personagem definia a dança contemporânea da seguinte maneira… picaresca: «um reboliço caótico onde, espantosamente, era possível ainda assim perceber disciplina, padrão, coreografia. Aquelas pessoas no palco assemelhavam-se a vítimas de trombose, doentes epilépticos, loucos saídos do hospital psiquiátrico, mas no meio do frenesim, dos transes, das convulsões e das quedas percebia-se que exerciam autoridade sobre os seus membros. Pareciam desajeitadas porque tinham decidido ser desajeitadas. Caíam, mas levantavam-se por si mesmas. Derrubavam objectos no palco porque estava no guião derrubar objectos no palco. Eram, enfim, donas do seu corpo e da sua vontade.» E também fazia um paralelismo com o ballet: «[…] o que distinguia a dança contemporânea da clássica era o que distinguia o caos da ordem. O ballet clássico tentava uma tal harmonia e uma tal perfeição que se tornava artificial e enfadonho. A dança contemporânea parecia mais ligada ao erro e à vida quotidiana dos corpos, mesmo que na maior parte das vezes se tratasse de corpos atormentados», interpretados por gente com um «perfil fibroso e elástico».

No texto do Público referido atrás, um coreógrafo fala da sua arte como uma coisa «abstracta» e «poética» e eu acho que ele tem razão. É de poesia que se trata, quando as peças são boas e nos enfeitiçam. Talvez não as possamos explicar, ou o que delas entendemos nem sequer se aproxime das intenções do coreógrafo/encenador (que quando é avisado não manifesta intenções, não muito específicas, pelo menos; não escreve sinopses detalhadas do indescritível). Perante a dança contemporânea julgo que nos devemos simplesmente sentar, disponíveis para sermos estimulados, desafiados através dos olhos, dos ouvidos e das entranhas; disponíveis para termos a epiderme da alma (passe a imagem pateta) titilada, acariciada, massajada. Em muitos casos, nos melhores, é também a nossa inteligência que, além de respeitada, é sugestionada, a nossa imaginação expandida.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Vizinhas novas no prédio

Perante uma berraria prolongada de três moças universitárias em frente ao prédio (na verdade, uma só magricela, bebida e histérica, tenta à força de decibéis obsessiva e compulsivamente pôr «de quatro» uma caloira mais cheinha e musculada, inamovível e paciente como um santo de altar), perante aquela berraria, alguma vizinhança assoma à varanda. No bairro, o alvoroço estudantil é rotina que entorpece: só é hábito chamar a polícia quando a coisa redunda em pancadaria a que não se vê fim breve. Talvez por haver gente nova no prédio, de uma das varandas ouvem-se uns «shiu!» e uns «então?!». O trio praxista, pouco habituado a que a vizinhança dê sinais de vida, olha em redor, estupefacto. Para minha surpresa, enfia a viola na bolsa coquete e retira, ordeiramente, como adolescentes a caminho da catequese (um dos bares das imediações).

Estou eu a fruir o momento quando as moças da varanda (também são moças, certamente novas no bairro) resolvem cantar vitória e lançam lá para baixo: «Andor! Tá andar, caralho!»

Ora, desfez-se o feitiço. As teenagers temporariamente bem-comportadas apontam como podem os queixos à varanda, reconhecem como iguais as oponentes e soltam as peixeiras que há dentro delas (o sotaque é do Porto, mas duvido que algum dia tenham vendido peixe no Bolhão, pelo que retiro a ofensa àquelas profissionais). «Como?!», retorquem apontando a pélvis como forcados amadores. «Vamos a calar!» ordenam as de cima, por alguma disfunção cognitiva ou erupção de jactância tendo ignorado que caladas tinham ficado as outras ao primeiro «shiu». «Estás-me a mandar calar?» «Estou, pois!» «Anda cá em baixo então, caralho!»

Pronto, suspiro, eis como se desbarata uma vitória. Agora a berraria passa a ter dois focos e não tarda há paralelepípedos arremessados às vidraças e sempre será precisa a polícia.

Mas a noite reserva mais surpresas. As de cima retiram-se da varanda e, ao contrário do que se suspeitaria, aparecem passado pouco tempo no passeio. A coisa pode redundar em maior alvoroço do que o que havia, mas há que louvar às moças da varanda a coerência. E a coragem: a caloira musculosa pôs-se entretanto do lado das dótoras, talvez em defesa do direito a ser humilhada.

Da minha própria varanda — comummente tomada neste blogue por bancada de circo ou balaustrada de zoológico, com certa pretensão literária —, solto outro suspiro. Novamente desajustado: as cinco moças ficam a trocar argumentos, mas, ou as de cima têm um forte carisma, ou a magricela danificou as cordas vocais na meia hora anterior: a altercação parece quase cordata. Podemos facilmente imaginá-las daqui a pouco a trocar números de telefone ou endereços de e-mail.

Quando me retiro para a sala, tenho a certeza de que as da varanda vão subir a buscar os casacos para se juntarem numa ida aos bares com as de baixo. E talvez depois venham as cinco ali para o passeio muito amistosamente debater aos berros quaisquer insignificantes diferenças de opinião, como sói fazer-se por aqui na hora em que os bares fecham. Um céptico não acredita em milagres que sempre durem.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Pedras Salgadas: futuro e memória


Hipódromo das Romanas, Pedras Salgadas


As ecohouses de Pedras Salgadas têm recolhido elogios e prémios. Merecidamente. São de facto bonitas, inteligentemente desenhadas e integradas no arvoredo do centenário parque. Convidam irresistivelmente a habitá-las por um ou muitos fins-de-semana mesmo quem como eu praticamente nasceu e foi criado naquele território romântico. Mas não sei se tem sido referido um aspecto essencial: parte do sucesso das casas deve-se… ao arvoredo do parque.

As ecohouses precisam de um cenário. Tanto para os que se encantam apenas com as fotografias (e são a maioria) como para os que de facto as visitam ou alugam. Quem já pôde confirmar com os olhos que as casas são algo mais do que um belo projecto, com animações 3D muito pitorescas e realistas, terá por certo intuído que o cenário já era bonito antes de as casas existirem. Na verdade, o sucesso das ecohouses das Pedras Salgadas iniciou-se há mais de um século, quando o parque começou a ser plantado. Não abundam no país territórios como aquele e deveriam ser ferozmente protegidos.

Uma parte das pessoas que ama as Pedras Salgadas, por baptismo ou adopção, indignou-se com o projecto das ecohouses. Parecia um sucedâneo miserável dos sonhos que as pessoas têm para ali. E de algum modo estavam certas em achar as casas um sucedâneo. São-no. De uma forma literal e pragmática. Substituem os hotéis que no seu tempo tiveram igual (ou maior) sucesso. Mas substituem-nos não necessariamente de uma forma aviltante. Há um certo realismo no projecto (e o realismo é quase sempre desmancha-prazeres), mas neste caso é um realismo sensato. Ou antes: sensível. Há que reconhecer que as construções, ainda que modernas (ou por isso mesmo), não feriram o território, respeitaram-no, dialogaram construtivamente com ele, como a boa arquitectura sabe fazer. E são facilmente desmontáveis, descartáveis, se acreditarmos que algum dia o termalismo terá suficiente importância para encher hotéis em vez de casas nas árvores e defendermos que as duas actividades são incompatíveis.

Há certa legitimidade em achar que os lucros de quem explora as águas das Pedras (e paga os correspondentes impostos em Lisboa ou na Holanda) deveriam obrigar — se não legal, moralmente — a concessionária a ser um pouco menos realista e a sonhar um pouco mais com a terra. Mas esperar-se que reconstrua os hotéis e os ponha a funcionar (como felizmente fez com o Balneário) é talvez irrealista, se nos lembrarmos que a mesma empresa é também proprietária do magnífico Vidago Palace Hotel, ali ao lado.

No curto prazo (enquanto o turismo termal não a estimule suficientemente, se confiarmos que algum dia o venha a fazer), uma das formas que a concessionária das águas tem de beneficiar a terra, de lhe assegurar um futuro digno da sua antiga glória, é proteger o património, como fez com as ecohouses (e com o Casino, sejamos justos). Proteger desde logo, inexoravelmente, a sua enorme riqueza botânica — e proteger o que resta de história, de memória nas ruínas do Grande Hotel, do Hotel Universal, das Romanas (com a sua fonte e edifício adjacente). Fora de muros, o território das Pedras Salgadas tem sido paulatinamente descaracterizado. De termal resta ali praticamente a memória. Dentro de muros, há abundância de fantasmas, mas fantasmas benignos e eventualmente lucrativos.

Depois dos buracos deixados pela demolição do Hotel do Norte, do Bazar Fotográfico, da Pensão do Parque e do Hotel Avelames (deve dizer-se que este tinha sido já bastante prejudicado por intervenção medíocre anterior, que além de descaracterizar o edifício abriu uma clareira no bosque contíguo, revelando que os arquitectos responsáveis não perceberam o espírito romântico e o interesse da sombra num parque termal); depois da demolição da Casa de Chá na Romanas, a concessionária das águas mostraria já um grande respeito pela terra, ajudá-la-ia bastante (por vezes até contra a vontade dela) se não permitisse o abate de nenhuma árvore que não estivesse doente e se parasse com as demolições.

O turismo termal nos dias de hoje tem potencialmente mais motivações do que a tradicional ida a águas. Há a vertente da natureza (que o marketing das ecohouses evidentemente explorou) e há uma “arqueologia termal”, um “turismo de época”, de “nostalgia” que não deveriam ser negligenciados. Ora, estas duas vertentes só poderão ser rentabilizadas se o património edificado persistir, como em Roma o Coliseu ou o que resta do Fórum. Claro que custa muito dinheiro pôr os edifícios habitáveis, mas custa certamente muito menos estabilizá-los, dar-lhes segurança, fazer deles elementos dignos da paisagem, do cenário que são o parque termal e as Romanas. A Unicer será já amiga das Pedras Salgadas se deixar de demolir património e se impedir a sua descaracterização. Se zelar para que quaisquer intervenções nas suas propriedades (ou em áreas que com elas conflituem) se façam com a mesma inteligência, o mesmo gosto, a mesma sofisticação, a mesma clarividência arquitectónica das ecohouses.

Estão em curso intervenções na marginal ao rio (e ao Parque) e nas Romanas. Eis um bom momento para a Unicer assegurar que no futuro lhe agradeceremos a defesa intransigente que ela fez da nossa memória, do nosso património — e do nosso futuro. É que se se distrai ainda lhe plantam uma rotunda com uma torneira em frente à entrada.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Escritor de levar para casa

Li que Valter Hugo Mãe esteve à conversa com leitores em Bragança ou Macedo e que a algumas pessoas no fim apetecia levá-lo para casa, por ser tão doce. Fiquei deprimido, com a inveja. Depois esbofeteei-me. Pela estupidez.
A inveja entre escritores é proverbial* — e tê-la sentido alegrou-me. Pensei que já podia pegar no telefone e dizer: «Mãe, sou escritor!», como se tivesse detectado os primeiros pêlos no buço (ou em zona mais meridional) e quisesse gritar: «Mãe, já sou homem!»
Mas de seguida fiquei deprimido, porque, embora exagere nos açúcares, jamais serei um tipo doce que as pessoas queiram ir ouvir falar — quanto mais levar para casa.
Se depois me esbofeteei é porque me lembrei que detestaria que as pessoas me quisessem levar para casa. Se por hipótese bizarra me quisessem ir ouvir falar.


* Leia-se A Informação, de Martin Amis.

Zuckerberg, pá, vê lá se cresces!

Como por infortúnio (ou melhor dizendo, por ausência de fortuna) não posso comprar a revista LER, amiguei-me com ela no Facebook. Contudo, o Facebook não deve gostar deste tipo de promiscuidade, porque não me tem dado qualquer notícia de actualizações da página. Dá-me notícias de actualizações patetas (sim, também as há no rol dos meus 275 “amigos”) e dá-me sugestões de imbecilidades que não lhe pedi. Mas não me informa de novidades da LER. De início julgava que era porque a revista não publicava nada, e creio que assim foi durante algum tempo. Mas agora, por um acaso, descobri que o blogue da LER tem estado mais activo do que me lembrava e que a página do Facebook tem espelhado essa actividade.

Caro Zuckerberg: bem sabemos que o bom uso que alguns fazem da tua invenção é algo que não estava na tua cabeça e te deixa contrariado, mas é um golpe baixo favorecer os patetas só porque simpatizas mais com eles. Vê lá se cresces, pá, isto não é a universidade! Já não és um caloiro! Ou um dux!

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Contas certas

Leio no Notícias ao Minuto que Poiares Maduro, o ministro “meio-Relvas”, disse:

A RTP tem 1.800 trabalhadores e as estações privadas têm 400. Nada justifica uma diferença tão grande. Temos de reduzir os recursos humanos para investir na grelha.

Talvez a RTP tenha mesmo pessoal a mais (provavelmente, tem) — mas pergunto que percentagem dos programas de cada canal é feita com meios próprios e que percentagem é feita por produtoras externas contratadas. E qual o custo total depois de contabilizadas cada uma das componentes (produção interna e contratação externa).

Porque a comparação tem de ser feita desta maneira — vendo o custo total da operação, não a dimensão do quadro de pessoal.

Até pode ser que nessa comparação a RTP saia ainda pior (não faço a mínima ideia), mas é essa comparação que tem de ser feita. Tudo o resto é demagogia. Ou ideologia (o que vai dar no mesmo, dada a estatura moral destes políticos).

Tarde demais: já foi penhorado para pagar os impostos...

Público: «Entrevista ao Vice-presidente da Comissão Europeia: “Os portugueses fizeram muitos sacrifícios e tiro-lhes o chapéu”»

de[s]amor: countdown para o Dia de São Valentim (2)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

de[s]amor: countdown para o Dia de São Valentim (3)

Neste tempo, em que a aproximação do Dia de São Valentim nos submerge numa maré “fofinha” de ursos de peluche, corações gigantes de veludo e postais (reais ou virtuais) com mensagens lamechas, urge variar um pouco.

Ora, o que há de menos romântico (no sentido vernacular) e “fofinho” do que a Economia? Exactamente: nada.

Assim, o antídoto certo contra tanta lamechice insincera (amores eternos e infinitos, etc.), de pechisbeque, é a requintada linha, que agora lanço, de cartões postais produzidos com o profissionalismo dos analistas de uma prestigiada agência de rating. (Não estando dinheiro envolvido, a dita agência de rating abriu una excepção e disse apenas a verdade, em vez de tentar criar uma.)

Ainda te amo... mas as perspectivas não são animadoras.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Relógio existencial

Recém-inventado, o Tikker é um relógio que mostra ao utilizador quanto tempo lhe resta no mundo, após análise das respostas a um questionário sobre o seu estilo de vida. No entanto — pasme-se! —, o aparelho não é completamente rigoroso. Talvez falhe por segundos, o que faz uma enorme diferença. A intenção, todavia, consiste em suscitar o reconhecimento da preciosidade dos instantes. De qualquer modo, também seria conveniente informar o utilizador acerca do tempo de vida do próprio relógio.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Acerca do Céu

No hipermercado, noto a presença na mesma prateleira de três livros que anunciam temáticas celestes. Avalio os títulos. O primeiro é de índole experimental: Uma Prova do Céu. O segundo é de carácter ontológico: O Céu Existe Mesmo. O terceiro é de pendor revolucionário: O Céu Muda Tudo. Talvez a dificuldade mais obstinada, para as almas que se entretêm a descrever o Céu — lugar de conflitos domados e de redundâncias certas —, seja encontrar um título minimamente original.

Wackypedia: Política (1) e Economia (2)

INVENTÁRIO. s. m. Programa eleitoral. [Wackypedia: contributos para um léxico alternativo (política)]

INVENTÁRIO. s. m. Orçamento do Estado. [Wackypedia: contributos para um léxico alternativo (economia)]

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Redireccionando a bigorna

«Sonho com uma bigorna a cair sobre o servidor global do Facebook, interrompendo a “comunicação” entre tantas pessoas desejosas de mostrar fotos da roupa interior ou de espalhar ignomínias. Antes, os idiotas andavam um pouco por todo o lado, mas distinguiam-se bem. Agora, estão escondidos na Internet.»

Não sei se Francisco José Viegas escreveu isto (espero que não) e, se o fez, em que contexto, mas parece-me coisa mais digna de Miguel Sousa Tavares (que considerou o Facebook uma mera «agência de namoros») do que dele. Vejamos: o mesmo tipo de idiotas que pulula no Facebook andou (e anda) pelas caixas de comentários dos jornais há muito, pelos fóruns das rádios desde sempre, e consta que frequenta (em larga maioria, arrisco) os cafés da classe média. Mais: este tipo de idiotas, atrevo-me a dizer, constitui a maior fatia de leitores do Correio da Manhã, esse órgão onde parece ser possível ir entregar artigos de opinião sem pisar nas vísceras e sobretudo na merda que há pelos corredores. (Ok, talvez muitos destes idiotas não leiam jornais, nem sequer o CM. A Internet é de facto um bom substituto para voyeurs.)

O Facebook é também por certo uma agência de namoros. E está cheio de idiotas. São talvez a maioria, que sei eu? Agora, reclamar para ali uma pureza e uma elevação de espírito que a sociedade não tem, que os jornais, as rádios e as televisões não têm, parece-me ridículo. Ou melhor: reclamar essa pureza está certo. Era o que toda a gente devia fazer. O que é ridículo é achar que ela pode existir ali não existindo nos outros lados.

Já me parece mais acertada a crítica de Sousa Tavares à subserviência do jornalismo em relação ao Facebook. Mas, de novo, diabolizar o FB não adianta de muito. O problema não é a subserviência em relação a isto ou aquilo. O problema é a subserviência. A idiotice que existe no Facebook não é pior nem mais generalizada do que a idiotice que existe nas televisões, por exemplo. Televisões que, aliás, mais do que revelarem subserviência face à idiotice, promovem a idiotice, são em grande medida responsáveis pelo tipo de sociedade idiota que temos. (Não, não são apenas espelho, não sejam ingénuos.)

A cair uma bigorna (e Deus sabe como eu sonho com uma há décadas) que caia primeiro nas TVs, onde traz mais proveito e tem bem menos probabilidades de esmagar inocentes.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Humilhações*

«[Nós] temos o direito a ser humilhados!», proferiu o moço, em defesa da praxe. Nada de grave subjaz à reivindicação de um direito — excepto quando tal reivindicação pressupõe um dever que a dignidade humana seguramente não aprova. O enunciado exposto configura uma situação do género: para que uns tenham o direito a ser humilhados, outros terão o dever de os humilhar. Claro, há sempre candidatos disponíveis para cumprir essa tarefa — excepto em países onde a decência reina.


* Escrito após a leitura do post do Rui e a visualização do vídeo insólito (e altamente instrutivo) que suscitou essas reflexões.

«Ser humilhado é um direito»

O problema da praxe (sim, é um problema) poderia ser minimizado, não exactamente proibindo-se esse desporto néscio, mas se todas as universidades exigissem que os alunos aprendessem para continuarem lá e lhes testassem com frequência os conhecimentos; se as empresas e o Estado contratassem de facto prioritariamente os que melhor desempenho académico têm ou mais bem preparados se revelam, e não os que têm melhores “referências” ou se mostram mais chico-espertos; se as famílias, em contrapartida à mesada e às despesas pagas, exigissem resultados e se orgulhassem mais de boas notas do que de trajes, emblemas e títulos fúteis; se os comensais de bom gosto e de boa educação num restaurante fossem em número suficiente (não são) e tivessem ânimo suficiente (não têm) para se opor à tirania dos bárbaros, exigindo moderação na voz e boas maneiras à mesa; se a polícia levasse a sério as leis do ruído e mais umas minudências legais afins. Pequenos passos para as instituições, grande passo para a humanidade. Mas para isto tínhamos de presumir que o resto da sociedade difere dos patetas perigosos que dizem que «ser humilhado é um direito». Os passos necessários são curtos, mas ainda assim é preciso ter pernas.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

The show must go on

Perante um “contratempo” estatístico, a assertividade e a cientificidade neoliberal engasgam-se, patinam, coçam a cabeça. Depois, Medina Carreira suspira — antes de pedir à importuna jornalista que passe à frente, siga o guião.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

E os cortes continuam...

El inMundo: Tu periódico de siempre, ahora mucho más in (ofensivo) -- (Prosiguen los recortes...)


Inspirado pelo post do Rui.

O caso El Mundo ou os dias contados da imprensa séria

O El Mundo trouxe à luz do dia os casos Bárcenas (financiamento ilegal do PP, partido do Governo em Espanha) e Urdangarin (escândalo de corrupção protagonizado pelo genro do Rei).
Os accionistas de El Mundo, inesperadamente, afastaram Pedro J. Ramírez da direcção do jornal que fundou.
Diz-se por todo o lado, e é difícil achar falso o estrepitoso rumor, que o afastamento surge por pressão do Governo espanhol e da Casa Real.
Longe vai o tempo em que havia tipos de dinheiro a investir em projectos de jornalismo de investigação em vez os dificultarem. Em Portugal, o dinheiro disfarça-se de mecenas para pagar umas reportagens de cariz histórico ou cultural (as do Público Mais). São interessantes e aliviam a consciência de todos os envolvidos: investidores, jornal e leitores, que assim podem assistir impávidos ao definhar da investigação.
Apesar de injusto (numa primeira fase) para os restantes jornalistas de El Mundo, os leitores do jornal deveriam boicotá-lo a partir de hoje. Doutra maneira, será cada vez mais difícil haver imprensa independente e ousada, condição essencial das democracias.
Mas não tenho muita fé em atitudes drásticas por parte dos leitores. Em Trás-os-Montes, o único jornal que conheci que de facto fez jornalismo (o Semanário Transmontano) terminou um dia por cansaço sem que se ouvisse um queixume em todo o “reino maravilhoso”.
Na península (e não só nela), o conluio entre o dinheiro e os poderes ainda tem muitas ofensivas para fazer antes que o povo perceba o que perde perdendo a democracia. E a democracia perde-se quando se perde o jornalismo de investigação. Continuem a iludir-se com o jornalismo cidadão e tretas afins.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Pequenos retratos infames (1)

José Manuel Fernandes

Leio que José Manuel Fernandes vai embarcar num novo projecto editorial, o Observador, que certamente não por coincidência rima com conservador. (Rui Ramos coordena o Conselho Editorial…)
Eu gosto de alguns conservadores. Gosto mesmo muito das crónicas do velho Dr. António Sousa Homem, são da melhor literatura que Francisco José Viegas escreve e da melhor que se lê em Portugal. Tenho a minha própria costela conservadora. Como um tipo de outros tempos, espanta-me a linguagem da juventude, as suas maneiras, o desrespeito, o totalitarismo que nela é tão natural que alguns dos seus elementos se surpreendem genuinamente quando acusados de desconsideração, de abuso.
Não gosto de fanáticos. E, por corolário, não gosto de José Manuel Fernandes. Desde que ele se apaixonou por Helena Matos, essa avençada do Tea Party, gosto menos ainda. Os dois isolados são irritantes; juntos tornam-se odiosos, uma espécie de Bonnie and Clyde com um gosto sádico por assaltar velhinhas.
José Manuel Fernandes é um conservador influente. Que Portugal tenha fretado e revestido a pechisquebe um cacilheiro para ir a Veneza, fazendo deste género de epopeia marítima o símbolo de uma opção no que se refere ao apoio às artes, é, de certa forma, um desiderato para o qual contribuiu o antigo director do Público. Anos atrás, ele escreveu que «uma só exposição como a de Amadeo [na Gulbenkian] faz mais pela educação do gosto dos portugueses do que milhares de microeventos de “criadores” que não estão dispostos a correr riscos». A ideia era defender meia dúzia de grandes exposições deste género como investimento único do Estado nas artes. Daí a o Estado “arriscar” na Joana Vasconcelos pós-Versalhes, foi um passinho.
O próprio José Manuel Fernandes é uma pessoa de arriscar. Quando temos um governo, uma maioria e um presidente de direita, quando temos uma crise e instituições tutelares a forçar uma viragem política e social extrema à direita, José Manuel Fernandes embarca num arriscado projecto editorial… de direita. É preciso coragem. É certo que não há o risco de lhe faltarem patrocinadores, com tantas empresas agradecidas pelo admirável mundo novo que ele ajudou a promover. Mas há o risco grande de os portugueses confundirem o Observador com o Diário da República, quando notarem que a tendência editorial é a mesma. Claro que este problema de concorrência se resolverá rapidamente quando todos perceberem que há benefício em assinar o Observador, onde as (más) novas legislativas aparecerão primeiro. O DR deverá, aliás, ser rapidamente extinto, por redundante. Para quê um caro órgão público oficial quando podemos ter um privado órgão oficioso?