Mostrar mensagens com a etiqueta Turismo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Turismo. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A necessidade de flanar

Algumas ruas aqui em volta fazem-me por estes dias lembrar Roma, a caminho do Trastevere. Nada nas ruas sem Tibre nem classicismo desta cidade se parece a Roma, excepto as coloridas folhas de plátano coladas ao chão pela chuva. Mas é de Roma que me lembro ao contemplar o que o Outono fez às folhas. O que me teria sucedido de interessante ali, se descontarmos estar desobrigado de horários e compromissos?
O caminhar à noite pela margem esquerda do rio, indagando abstraidamente a corrente rápida e acastanhada, o cruzar a Ponte Fabricio com vaga e preguiçosa curiosidade estética e histórica não estavam balizados por nenhum prazo ou ânsia, não tinham nenhum objectivo que não fosse descobrir algures, sem urgência, uma taberna simpática com preços módicos. E percebo que é isso o que de importante me aconteceu em Roma. Isso, essa suspensão do tempo, do trabalho, da existência social mesmo que misantropa, esse interlúdio da vida quotidiana que deambular por uma cidade estrangeira pode significar.
Há um prazer, uma leveza, um sentimento de eternidade quando se vagueia por uma cidade sem pressa nem destino nem desejos nem gente conhecida. Não é talvez de Roma que me lembro, mas de flanar por uma cidade atapetada de folhas no fim do Outono. Não é de Roma que tenho saudades (que patético seria reclamar-me saudoso de uma capital de fim-de-semana), mas daquela versão de mim que não tinha agenda.

Descubro que sou, por aspiração (e julgo que natureza íntima), uma espécie de flâneur. Um flâneur rústico, pelo menos provinciano, mas um flâneur. Fui-o quando saía de fim-de-semana da tropa e tinha de queimar horas entre estações de Lisboa ou do Porto. Fui, então, um flâneur do Cais do Sodré a Santa Apolónia, de S. Bento a Campanhã, fazendo grandes desvios pré-baudelerianos (no sentido de inconscientes de si), preferindo calcorrear horas a fio as cidades do que passar o tempo de espera em bancos frios e sujos de apeadeiro ou em cafés para cuja cerveja não tinha dinheiro. Fui um flâneur à maneira torguiana (figura que, contudo, me não desperta interesse), pisando em todas as oportunidades o saibro dos caminhos e escalando as rochas dos montes. Fui, a espaços, com certa pretensão walterbenjaminiana, digamos, um flâneur à medida das pequenas terras onde vivi ou procurando erguer-me ao tamanho de algumas das que visitava.

Mas só hoje, ao regressar a casa e aos deveres, ao olhar com nostalgia este tapete de folhas nesta terra que não é Roma, percebo mais intensamente que a felicidade talvez seja não aceitar na vida mais do que solas de sapatos e bilhetes low cost.

Algo que na verdade já devia ter intuído quando em Bruxelas me pus, não sem embaraço, — como aqueles fãs que vão a Paris visitar o túmulo de Jim Morrison — à procura dos sítios por onde andou o narrador flanante de Cidade Aberta, de Teju Cole. Não era uma emulação ou uma excentricidade constrangedora das que por vezes me assolam — era, freudianamente, uma acusação e um apelo. 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Pedras Salgadas: futuro e memória


Hipódromo das Romanas, Pedras Salgadas


As ecohouses de Pedras Salgadas têm recolhido elogios e prémios. Merecidamente. São de facto bonitas, inteligentemente desenhadas e integradas no arvoredo do centenário parque. Convidam irresistivelmente a habitá-las por um ou muitos fins-de-semana mesmo quem como eu praticamente nasceu e foi criado naquele território romântico. Mas não sei se tem sido referido um aspecto essencial: parte do sucesso das casas deve-se… ao arvoredo do parque.

As ecohouses precisam de um cenário. Tanto para os que se encantam apenas com as fotografias (e são a maioria) como para os que de facto as visitam ou alugam. Quem já pôde confirmar com os olhos que as casas são algo mais do que um belo projecto, com animações 3D muito pitorescas e realistas, terá por certo intuído que o cenário já era bonito antes de as casas existirem. Na verdade, o sucesso das ecohouses das Pedras Salgadas iniciou-se há mais de um século, quando o parque começou a ser plantado. Não abundam no país territórios como aquele e deveriam ser ferozmente protegidos.

Uma parte das pessoas que ama as Pedras Salgadas, por baptismo ou adopção, indignou-se com o projecto das ecohouses. Parecia um sucedâneo miserável dos sonhos que as pessoas têm para ali. E de algum modo estavam certas em achar as casas um sucedâneo. São-no. De uma forma literal e pragmática. Substituem os hotéis que no seu tempo tiveram igual (ou maior) sucesso. Mas substituem-nos não necessariamente de uma forma aviltante. Há um certo realismo no projecto (e o realismo é quase sempre desmancha-prazeres), mas neste caso é um realismo sensato. Ou antes: sensível. Há que reconhecer que as construções, ainda que modernas (ou por isso mesmo), não feriram o território, respeitaram-no, dialogaram construtivamente com ele, como a boa arquitectura sabe fazer. E são facilmente desmontáveis, descartáveis, se acreditarmos que algum dia o termalismo terá suficiente importância para encher hotéis em vez de casas nas árvores e defendermos que as duas actividades são incompatíveis.

Há certa legitimidade em achar que os lucros de quem explora as águas das Pedras (e paga os correspondentes impostos em Lisboa ou na Holanda) deveriam obrigar — se não legal, moralmente — a concessionária a ser um pouco menos realista e a sonhar um pouco mais com a terra. Mas esperar-se que reconstrua os hotéis e os ponha a funcionar (como felizmente fez com o Balneário) é talvez irrealista, se nos lembrarmos que a mesma empresa é também proprietária do magnífico Vidago Palace Hotel, ali ao lado.

No curto prazo (enquanto o turismo termal não a estimule suficientemente, se confiarmos que algum dia o venha a fazer), uma das formas que a concessionária das águas tem de beneficiar a terra, de lhe assegurar um futuro digno da sua antiga glória, é proteger o património, como fez com as ecohouses (e com o Casino, sejamos justos). Proteger desde logo, inexoravelmente, a sua enorme riqueza botânica — e proteger o que resta de história, de memória nas ruínas do Grande Hotel, do Hotel Universal, das Romanas (com a sua fonte e edifício adjacente). Fora de muros, o território das Pedras Salgadas tem sido paulatinamente descaracterizado. De termal resta ali praticamente a memória. Dentro de muros, há abundância de fantasmas, mas fantasmas benignos e eventualmente lucrativos.

Depois dos buracos deixados pela demolição do Hotel do Norte, do Bazar Fotográfico, da Pensão do Parque e do Hotel Avelames (deve dizer-se que este tinha sido já bastante prejudicado por intervenção medíocre anterior, que além de descaracterizar o edifício abriu uma clareira no bosque contíguo, revelando que os arquitectos responsáveis não perceberam o espírito romântico e o interesse da sombra num parque termal); depois da demolição da Casa de Chá na Romanas, a concessionária das águas mostraria já um grande respeito pela terra, ajudá-la-ia bastante (por vezes até contra a vontade dela) se não permitisse o abate de nenhuma árvore que não estivesse doente e se parasse com as demolições.

O turismo termal nos dias de hoje tem potencialmente mais motivações do que a tradicional ida a águas. Há a vertente da natureza (que o marketing das ecohouses evidentemente explorou) e há uma “arqueologia termal”, um “turismo de época”, de “nostalgia” que não deveriam ser negligenciados. Ora, estas duas vertentes só poderão ser rentabilizadas se o património edificado persistir, como em Roma o Coliseu ou o que resta do Fórum. Claro que custa muito dinheiro pôr os edifícios habitáveis, mas custa certamente muito menos estabilizá-los, dar-lhes segurança, fazer deles elementos dignos da paisagem, do cenário que são o parque termal e as Romanas. A Unicer será já amiga das Pedras Salgadas se deixar de demolir património e se impedir a sua descaracterização. Se zelar para que quaisquer intervenções nas suas propriedades (ou em áreas que com elas conflituem) se façam com a mesma inteligência, o mesmo gosto, a mesma sofisticação, a mesma clarividência arquitectónica das ecohouses.

Estão em curso intervenções na marginal ao rio (e ao Parque) e nas Romanas. Eis um bom momento para a Unicer assegurar que no futuro lhe agradeceremos a defesa intransigente que ela fez da nossa memória, do nosso património — e do nosso futuro. É que se se distrai ainda lhe plantam uma rotunda com uma torneira em frente à entrada.