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terça-feira, 13 de setembro de 2016

sábado, 9 de janeiro de 2016

Cortesãos de esquerda

A esquerda também tem os seus cortesãos, a quem as baixezas da democracia incomodam. Eduardo Pitta, no seu blogue, escandaliza-se com a permeabilidade de coador furado do Tribunal de Contas, no que se refere a filtrar candidatos às presidenciais, e vai daí faz birra e não assiste a nenhum debate, talvez boicote mesmo as eleições.

Eu também me escandalizo com o facto de ter havido 7.500 portugueses que subscreveram a candidatura de Tino de Rans. Para humor e nonsense ficaria bem mais aliviado (entusiasmado, na verdade) se 7.500 portugueses tivessem subscrito uma candidatura de Manuel João Vieira. Seria uma indicação de que alguns dos nossos compatriotas distinguem a sátira da anedota, a inteligência da brejeirice. Seria uma indicação de que uma quantidade apreciável de portugueses, se não se importa com o governo da pátria, é pelo menos criteriosa no que concerne à derrisão da pátria.

Contudo, não creio que as assinaturas e o mau gosto de uns tantos (lembro que o sistema é Democracia) poluam as assinaturas que habilitaram outros candidatos, até aos meus olhos mais apresentáveis. Elogio, aliás, o estoicismo e a polidez com que estes aceitaram todos os debates. De resto, só vejo os debates que quero e voto igualmente em quem quero. Se por alguma razão paranóica ou hipocondríaca eu temesse contágios bacteriológicos da ralé por simples contacto com o boletim de voto onde aparecem tão vis figuras, procuraria desde já umas luvas de cirurgião que dissessem bem com a minha toilette de 24 de Janeiro. Eduardo Pitta, não querendo da sua tribuna ajudar a esclarecer o eleitorado, pode cobrir da mesma forma os seus apêndices e poupar o país ao seu pedantismo e ao seu paternalismo. Portugal não são aqueles 7.500, 15.000 ou 22.500 portugueses que ele como eu execra. (Embora às vezes pareça, é certo.)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Cinismo à portuguesa

Duas afirmações colhidas na Internet sobre o candidato à presidência da República Paulo Morais:
«Tudo o que é demais enjoa, e ainda mais quando se faz vida disso. Se ninguém [o] refuta é precisamente porque o cromo se tornou inofensivo por ridículo.»
«Paulo Morais (…) exibe a sua mania da corrupção, de uma maneira insultuosa e quase alucinada.»
A primeira afirmação é de um cidadão qualquer, a segunda é de Vasco Pulido Valente. É destas duas espécies de cinismo que o país sofre, o cinismo do eleitorado comum e o cinismo dos fazedores de opinião. Ao longo de anos, Morais indicou números e nomes para a história da nossa desgraça. A imprensa e a justiça pouco exploraram as pistas, e o aproveitamento privado do erário público continuou — como de resto todos testemunhámos, de forma mais empírica ou mais esclarecida.
Contudo, não ter o denunciador sido amordaçado, torturado ou preso faz dele um cromo, um personagem ridículo. E a insistência na denúncia é, para o comentador emérito da direita portuguesa, uma forma de insulto (insulto decerto para os benfeitores da economia nacional).

Para ser tido como um candidato respeitável neste país, Paulo Morais tinha de ser morto ou fazer-se matar pelas suas acusações.
A alternativa era ser um betinho palavroso e igualmente inofensivo para o statu quo como Marcelo Rebelo de Sousa — e nesse caso não só o bom povo o elegeria como teria a enternecedora preocupação de VPV com a forma como uma eleição presidencial como esta pode ser aviltante para um cliente do Gambrinus.

Cromo por cromo, o povo português prefere os de pedigree. E para Valente toda a gente é estúpida, mas há os estúpidos comuns e os nossos (dele) estúpidos. 

Um só país, duas manifestações do mesmo cinismo. Não foi à toa que Cavaco existiu. 

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Crise da imprensa: os meus contributos

A minha relação com a imprensa no último ano não tem contribuído nada para a sua saúde económica. Deixei de comprar o Público quando me incutiram a sensatez de considerar um euro e sessenta e cinco dinheiro a mais para um jogo de Sudoku (só comprava ao fim-de-semana, o baixo nível de dificuldade dos jogos de segunda a quinta não era estimulante). A única outra razão que me fazia (e faz) comprar o jornal era o suplemento Ípsilon. Há alguma possibilidade de entusiasmo e fascínio nas artes que não encontro no quotidiano político e social do país, na sua nefasta e maçadora previsibilidade. Sem me atrever a uma reflexão como a da Alexandra Lucas Coelho, julgo que, se o jornal diminuísse drasticamente o número de páginas e colunistas dedicados à vidinha e transformasse em caderno diário o Ípsilon, o número de compradores aumentava. Não subestimem a quantidade de pessoas que se está nas tintas para o futuro de Paulo Portas e dispensa a redundância de quotidianamente lhe darem as mesmas más notícias sobre o seu próprio futuro. Há, apesar de tudo, mais efervescência e diversidade na literatura, no teatro ou na música do que na vida da república. Desta, um resumo mensal dificilmente deixaria de fora qualquer novidade. Aliás, um almanaque anual ao género do Borda d’Água, com as suas tabelas de ciclos e reiterações e os mesmos provérbios e mezinhas, seria suficiente periódico nacional.

sábado, 7 de novembro de 2015

Malcolm Gladwell: «Párias, Símbolos e Pioneiros» (palestra)

Malcolm Gladwell, colaborador permanente da revista The New Yorker, deu em 2013 uma interessantíssima (e longa...) palestra sobre uma das formas mais surpreendentes como as classes dominantes garantem a manutenção da sua condição de privilégio.

Gladwell centrou-se particularmente na discriminação das mulheres — na política, na arte, na vida em sociedade em geral —, discriminação que por vezes se mantém, mesmo quando aparentemente a porta se abriu para elas...
(Outro tema importante é o do anti-semitismo.)

O argumento é ilustrado com dois exemplos paradigmáticos: o da pintora inglesa Elizabeth Thompson (1846–1933) e da ex-primeira-ministra australiana (2010–2013), Julia Gillard.

Esta palestra fascinou-me desde que a vi pela primeira vez. Há 2 meses ganhei coragem (e aprendi o procedimento técnico) para traduzi-la e legendá-la.

Uma outra palestra, do mesmo autor e do mesmo ano, centra-se na história de uma das mais importantes sufragistas americanas, Alva Vanderbilt (também conhecida como Alva Belmont) e das razões que levaram esta insuspeita mulher — milionária e privilegiada — a lutar contra o sistema estabelecido.

Infelizmente, quando comecei o longo processo de tradução e legendagem (levou-me 50 dias...), não sabia que havia quase a estrear um filme sobre o movimento sufragista.
Por isso, escolhi começar pela palestra sobre a pintora. Talvez daqui a 50 dias tenha o outro, sobre a sufragista, pronto...

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

PAF: Violência doméstica

A noite foi passada — por jornalistas, comentadores e políticos no activo — a avançar teorias sobre a razão de o eleitorado ter mantido a coligação PSD/CDS como maior força política (ainda que fragilizada face a 2011), mesmo após tanta austeridade e tanta queixa popular por causa da austeridade.

Confesso: de facto quase não assisti à noite eleitoral, pelo que quando digo que a noite foi passada nisto, estou em verdade a lançar um palpite. Mais: avanço mesmo que, de entre todas as teorias apresentadas, nenhuma se aproximou realmente da verdade. (Que é, claro, a que de seguida aqui apresento.)

Tantos eleitores renovaram o voto de confiança na coligação que nos governou nos últimos quatro anos pela mesma razão que tanta mulher vítima de violência doméstica volta para a casa onde ainda vive o marido que as violentou.

Como “Zé Povinho” não é nome que caia bem nessa personificação feminina do eleitorado português, chamemos-lhe “Maria Tuga”.

Dá quase para vê-la, mas não consigo dizer o que veste ou que traços físicos tem, pois tudo em que reparo é no olho negro (fruto de uma queda das escadas...) que a custo a maquilhagem disfarça.

E dá perfeitamente para ouvi-la, enquanto fala com a vizinha:

«É, voltei para o meu homem, que é que se havia de fazer?... Sim, ele é um pouco bruto, insultou-me uma e outra vez, até à frente dos miúdos, bateu-me vezes sem conta — mas a verdade é que eu estava a pedi-las... quase sempre, sim. Pus-me a jeito. No fundo, no fundo, lá naquele modo abrutalhado dele, ele ama-me. Tudo o que faz é para o meu bem. Bate-me, sim, bate-me, já o admiti. Mas depois é sempre super-carinhoso. Já sabe como é: o melhor sexo é o das reconciliações...»

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Não brinquem com números, respeitem os deputados!
(Pensando bem, não respeitem — se não merecem.
Mas respeitem os números, esses sim, respeitem sempre!)

No Facebook, um amigo partilhou ontem uma imagem que, segundo quem a postou originalmente, «Não precisa de qualquer tipo de comentário. Está tudo lá escrito.».

Portugal: 230 deputados; Austrália: 150 deputados

Pois, simplesmente não está, de facto, tudo escrito: o autor da imagem “esqueceu” alguma informação, nomeada e convenientemente, aquela que destrói em absoluto a “teoria”, expondo a falácia.

Esqueceu-se, por exemplo, de dizer que o sistema parlamentar australiano comporta duas câmaras: a Câmara Baixa (Casa dos Representantes), com os tais 150 membros, e a Câmara Alta (Senado), com 76 membros. Isto perfaz um Parlamento nacional com 226 membros, quase o mesmo que Portugal (sistema unicameral).

Mas ainda há mais: a Austrália é um estado federal, dividido em 6 estados e 2 territórios. Cada um desses estados/territórios tem o seu próprio Parlamento, que na maior parte dos casos tem duas câmaras. Vejamos:

  • Austrália do Sul: 47 membros da Câmara Baixa (CB) + 22 membros da Câmara Alta (CA) = 69
  • Austrália Ocidental: 59 (CB) + 36 (CA) = 95
  • Nova Gales do Sul: 93 (CB) + 42 (CA) = 135
  • Queensland: 89 membros (Câmara única)
  • Tasmânia: 25 (CB) + 15 (CA) = 40
  • Vitória: 88 (CB) + 40 (CA) = 128
  • Território da Capital: 17 membros (Câmara única)
  • Território do Norte: 25 membros (Câmara única)

Isto quer dizer que o total de parlamentares na Austrália, entre nacionais e “regionais”, é de 824.

Quanto a Portugal, para além dos 230 deputados nacionais, tem 57 deputados regionais nos Açores e 47 deputados regionais na Madeira. Isto perfaz 334 parlamentares.

Ou seja, o número de parlamentares australianos é quase 2,5 vezes o de Portugal — embora “só” tenha o dobro da população.
(Como diriam os famosos cartazes: não brinquem com os números.)

O problema de Portugal não está no excesso de deputados — mas na sua qualidade. E, já agora, na dos eleitores também.

segunda-feira, 9 de março de 2015

1. O zelota

Os que minimizam a importância dos actos de Passos Coelho fogem (deliberadamente ou não; cândida ou perversamente) ao essencial: falamos do maior moralista que governou Portugal depois de Salazar e Marcello e, mais importante, que governou e decidiu sobre a vida dos concidadãos com base nessa moralidade instrumentalizada. A desfaçatez e a hipocrisia não são, neste caso, pecadilhos que apenas mostram que Passos, tendo errado, é humano. Pelo contrário: dada a centralidade da moral no seu discurso, mostram que PPC é um pastor que prega mas não acredita no que prega. Repete a ladainha apenas para perpetuar a instituição. Está portanto ao serviço dos interesses da instituição e não dos da comunidade. E não é difícil perceber o que é a instituição para Passos Coelho.

2. O cordeiro de Deus

É tão absolutamente idiota desculpar Passos com os erros maiores de Sócrates que chega a dar um novo sentido à Páscoa que se aproxima: o ex-PM foi preso para expiar os pecados do mundo, particularmente os de Passos Coelho? Depois de crucificado o messias da Covilhã (que, de resto, acreditava sê-lo, como todos os mitómanos), basta ao Coelho pascal a confissão e a compunção para que uma quantidade assustadora de pensadores o mande em paz com duas ou três inofensivas ave-marias por penitência.

3. O ridículo

Comparados os casos, ter Passos como PM equivale a ter Relvas como Ministro da Educação. Ridículo, não seria?

terça-feira, 3 de março de 2015

Passos Coelho e o problema do literalismo reducionista

A revelação de que Pedro Passos Coelho deveu cinco anos de contribuições à Segurança Social, e que só quando o Público levantou a lebre é que o primeiro-ministro pagou parte (!) dessa dívida, gerou dois tipos de reacções: a dos membros do Governo e estruturas do PSD, lestos a encontrar culpas alhures, e a das pessoas com algum sentido de verdade.
As reacções governamentais e afins não comentarei para lá de dizer que, está visto, não há limites à falta de vergonha. (Eu é que ainda tinha ilusões neste particular.) Quanto às restantes, venho aqui pôr-lhes um embargo, passando desde logo por cima de apodos como «caloteiro», que me parecem apoucadores da discussão.

Alegou Passos Coelho que «não tinha consciência» de que as contribuições para a Segurança Social eram obrigatórias. Esta estranha “defesa” foi recebida, unanimemente e bem, com a recordação de um princípio fundamental do Direito: o desconhecimento da Lei não obsta à obrigação de a cumprirmos — ou em tudo se alegaria ignorância e siga a festa! Mas aqui surgiu uma divisão: entre os que descartaram tal alegação como pura mentira (como poderia um político profissional, ex-deputado, desconhecer o mais básico das suas obrigações legais?) e os que classificaram de inadmissível que tamanho ignorante desempenhe cargos públicos, para mais que encabece o Governo.
Disseram alguns destes últimos que já desconfiavam que Pedro Passos Coelho subira nas estruturas partidárias, não por mérito, mas por uma cuidada mistura de servilismo, clientelismo e compadrio, a que haveria a somar uma cara laroca para fazer boa figura nos cartazes de campanha: mais do que timoneiro, o primeiro-ministro seria o “poster boy” dos demolidores do Estado. A admissão de ignorância permitiria também contextualizar a insensibilidade de um primeiro-ministro que, em Setembro de 2012 (quando já sabia ser devedor à Segurança Social), veio anunciar um brutal aumento da Taxa Social Única a pagar pelos trabalhadores: Pedro Passos Coelho simplesmente «não tinha consciência» do que estava a falar — para ele não seria clara a diferença entre TSU e RSU, tal como, acrescentavam alguns, entre BCE e BCG...

Admitindo alguma verdade no diagnóstico expresso no parágrafo anterior, venho aqui deixar o meu embargo: mais do que da ignorância pura e dura, Pedro Passos Coelho foi vítima de uma ignorância (ou incompreensão) mais subtil, que designarei «literalismo reducionista», abrindo de seguida parênteses para, com um exemplo, deixar claro em que consiste tal conceito.

[Na minha infância, no Pátio das Cantigas, existia um grande tanque ao ar livre, pertencente à cerca do antigo Convento de São Domingos. Esse tanque era o local de eleição para a desova de dezenas de rãs, de que nasciam, para nosso fascínio de crianças, centenas de girinos que designávamos “peixes cabeçudos”.
Lembro-me que a certa altura começaram a surgir quantidades apreciáveis de girinos mortos. Fui rápido a apontar a suposta causa: tendo o tanque sido limpo pouca semanas antes, os anfíbios morriam à fome, por falta das algas a que chamávamos “lodo”. E tão certo estava do meu diagnóstico que, tendo aprendido havia pouco a escrever, logo fiz questão de comunicar por escrito à minha irmã as minhas conclusões quanto a tão preocupante hecatombe: «Os peixes cabeçudos estão a morrer porque não à lodo.» Assim mesmo, com «à» em vez de «há».
O bilhetinho foi lido pelo meu pai, que logo me chamou a atenção:
— Fernando, então já não te dissemos que quando ou existe se escreve com agá, e que só nos outros casos é que é sem agá e com acento para trás?!
— Pois é, Pai, mas neste caso não há lodo!
De facto, conforme era visível no meu bilhete, eu inicialmente escrevera «há», mas, atendo-me literal e redutoramente à noção de que assim, com agá, era só e só quando havia algo, tinha riscado a palavra correcta e escrito «à» por cima.]

E assim voltamos à «falta de consciência» de Pedro Passos Coelho de que, enquanto consultor da Tecnoforma, estava obrigado a pagar contribuições sociais.
Ao contrário do que alguns, inegavelmente mal-intencionados, afirmaram, o primeiro-ministro não ignorava tout court a obrigatoriedade de os trabalhadores independentes contribuírem para a Segurança Social. Em boa verdade, Passos Coelho, caindo como o eu da minha infância no erro do literalismo reducionista, simplesmente acreditava estar isento: na sua inocente interpretação da letra da lei, tais contribuições obrigatórias aplicavam-se exclusivamente aos detentores de rendimentos do trabalho — e a sua colaboração com a Tecnoforma configurava um tacho.


P. S.: É também falso que Pedro Passos Coelho não saiba a diferença entre TSU e RSU, ou entre BCE e BCG. O primeiro-ministro sabe bem a diferença: em ambos os casos, «uma letra».

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

João Miguel Tavares segrega pessoas de estatura mediana

Aborrecido com o hábito de ainda se confundir a direita com os ricos e a esquerda com os pobres (a quem ocorre tal coisa?), João Miguel Tavares resolveu introduzir um novo «eixo político» para separar as águas de forma mais democrática, digamos. Esse novo eixo dividiria o espectro político em «alto/baixo». Ouçamo-lo: 
«Neste novo “alto” poderíamos incluir tanto a habitual casta económica e política, como os detentores de privilégios corporativos, os burocratas que dificultam a livre iniciativa ou os especialistas na arte de fugir aos impostos; enquanto no novo “baixo” poderíamos colocar não só os pobres, mas também os reformados que se sentem espoliados, os jovens que nunca conseguiram um emprego, e todos aqueles que vêem a sua ascensão social dificultada pelas mais variadas redes de interesses que dominam os estados contemporâneos.»

Ora, a não ser que JMT reconheça que todas as pessoas honestas e boas são pobres (o que se diria uma surpresa na sua mundividência), esta nova divisão acrescenta a um novo maniqueísmo uma omissão ou um estigma. Um tipo que mantenha um emprego conseguido por mérito e não passe fome ou não existe no Portugal tavaresco ou é detentor de um privilégio corporativo, um burocrata que dificulta a livre iniciativa, enfim, um especialista na arte de fugir aos impostos. Acreditando que JMT não se vê a si mesmo como uma destas pessoas, temos de concluir que faz parte da habitual casta económica e política. Ou então é um pobre, já que não parece um dos reformados que se sentem espoliados nem um dos jovens que nunca conseguiram um emprego. A não ser, claro, que Tavares se sinta como um daqueles que vêem a sua ascensão social dificultada pelas mais variadas redes de interesses que dominam os estados contemporâneos e aí está tudo explicado, incluindo a sua divertida proposta taxonómica.

O Brecht dos bons observadores

Observador é uma bela ideia na imprensa portuguesa: junta num mesmo antro uma quantidade jeitosa de situacionistas. Torna-se mais fácil evitar a seita quando sabemos onde ela se acoita e é também mais simples mantermo-nos actualizados (basta um clique) quando, enquanto verdadeiros democratas, procuramos a nossa dose higiénica de contraditório. (Na verdade, não é bem isso que ali se procura, não vale a pena sermos generosos — nem escondermos a nossa compulsão pornógrafa.)

Numa das produções recentes daquela folha online lemos de um tal Mário Amorim Lopes: 
«Quando financiamos uma peça de Brecht de um qualquer encenador que jura que a cultura deve ser financiada por todos nós, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. E sacrificar a vida de uma criança é um preço demasiado elevado a pagar.»*

O parágrafo é todo um programa — e de uma subtileza antológica. Imagine-se que o rapaz escolhia outro dramaturgo; por exemplo, um daqueles gregos um pouco menos odiados pela direita Observadora: Sófocles, Eurípedes. Ou o inglês Shakespeare. O sofisma teria um impacto diferente. Aqui e ali, um ou outro velho conservador torceria a sua penca, sentado em frente às prateleiras de bom carvalho da biblioteca do solar. Um clássico grego é um clássico, raios, e Stratford-upon-Avon não é assim tão longe de Oxford. Há sempre uma criança que se pode sacrificar para salvar os clássicos, como sabia Churchill. Com dramaturgo de outra família literária, o voluntarismo do neófito seria remetido para a gaveta das inanidades próprias da juventude. Mas ele soube jogar em terreno seguro e lá colheu as suas palmaditas nas costas.

Jogou aliás tão pelo seguro que usou para sofismar esse democraticamente odiado universo da performance teatral. Imagine-se que ele tinha dito, por exemplo, quando financiamos uma apresentação da 9.ª Sinfonia de um qualquer maestro que jura que Beethoven é património da humanidade e a sua interpretação deve ser financiada por todos nós, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vidaHaveria por certo chatice da próxima vez que o avô descesse à capital para a sua ida sazonal ao S. Carlos.
Ou imagine-se que Amorim se atrevia ainda mais, num acto de verdadeira rebeldia juvenil (hipótese meramente académica, já se sabe), e saía para outros campos semânticos: quando financiamos uma empresa que paga impostos na Holanda, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. Ou, já num assomo de loucura: quando financiamos pornograficamente prémios a gestores, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. E sacrificar a vida de uma criança para enriquecer uma classe não raro incompetente e criminosa que se julga incensada e merecedora de todo o dinheiro que nega aos outros é um preço demasiado elevado a pagar.

Mas não. Quem escreve no Observador não se atreve a boutades divertidas como estas. Os bons conservadores preferem piadas onde se bate sempre no ceguinho do Brecht (aliás felizmente já tão pouco habitual nos teatros quanto decerto o próprio Amorim Lopes).


*A prosa tem um contexto alegadamente racional que pode ser livremente aferido aqui: http://observador.pt/opiniao/quanto-vale-uma-vida/

domingo, 6 de julho de 2014

É caro e ineficiente manter o interior: encerra-o e deita fora a chave

Vasco Pulido Valente costuma dizer que este Governo não é neoliberal, e de facto talvez Passos Coelho não tenha conseguido ir tão longe quanto a casta desejaria em algumas áreas. Mas em várias medidas já concretizadas e em muitas outras planeadas o menino-cantor, com a sua melena beta e ar de sacripanta, é merecidamente o orgulho dos thatcherianos meridionais e setentrionais. É, por exemplo, um empenhado darwinista social (sector privado contra função pública, professores contra professores, jovens contra velhos, tudo tem promovido) e só não encerrará definitivamente o interior se o interior, por vezes tão irritantemente tradicionalista e atávico, não recuperar por um dia velhos hábitos e não se munir de varapaus e chuços para o correr daqui para fora da sua zona de conforto.

A propósito disto: 

sexta-feira, 20 de junho de 2014

O Tua e a sua canção (ou)vistos pela nova direita

Um grupo de artistas dedicou uma canção ao Tua. A Helena Matos já deverá estar a escrever no pravda da nova direita um artigo a defender que se afogue não só o vale como os artistas. Se faltavam motivos para construir a barragem, dirá ela, agora temos um. João Miguel Tavares, pelo seu lado, pessoa sensível, aumentará o caudal do Tua com uma lágrima ou duas pelo vale e pelos artistas, mas lembrar-lhes-á a sua culpa por canções e paisagens belas serem actividades condenadas num Portugal falido.
Pedro Lomba dirá num briefing falhado que os artistas deviam era estar a contribuir para a demografia fazendo filhos enquanto a água não os cobre. Poiares Maduro tentará tirar-lhes o subsídio de férias e Passos vender-lhes uma formação em aeronáutica que lhes permita emigrar a partir de qualquer aeródromo das redondezas. Que os há-de haver.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Problemas de habitação, no centenário de Sarajevo

No Verão de 2012, o jornalista Tim Butcher foi às profundezas da Bósnia-Herzegovina procurar a casa de Gravilo Princip, o assassino do arquiduque Francisco Fernando da Áustria. Quando encontra o que resta dela, pensa:

«Aquilo era uma casa europeia habitada por uma família inteira no início do século XX, mas fazia-me lembrar as choupanas com que me deparava frequentemente na África rural. O princípio era exactamente o mesmo: um chão de terra batida numa habitação construída com paredes de pedra, sob um telhado feito de madeira, colmo ou ramos apanhados localmente. Uma taxa de mortalidade infantil que podia matar seis dos nove filhos da família Princip soava mais a África do que a Europa. O mundo desenvolvido podia desesperar perante os problemas sistémicos da África moderna, mas estar ali, naquele jardim de Obljaj, ensinou-me como grande parte da Europa estivera recentemente em situação similar.»*

Duas décadas depois da morte de Gravilo, a minha mãe crescia numa casa similar à do sérvio-bósnio que serviu de gatilho à Primeira Guerra Mundial. Um compartimento de terra batida para a família, um compartimento adjacente com chão de carquejas para o gado. Como Gravilo, a minha mãe cuidou dos animais em criança, afastou lobos com paus e pedras. Não abateu nenhum arquiduque no final da adolescência, mas um dos seus filhos escreveu um romance onde se fala de «terrorismo inteligente».

Descontada a boutade pateta, há decerto uma maldição sobre domicílios impróprios. Resolver problemas de habitação é talvez um bom exorcismo para casas-assombradas. A Europa devia lembrar-se.  

* A partir do muito interessante excerto de O Gatilho, de Tim Butcher, publicado na LER de Junho.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

O fanico de Cavaco

Aprendi a certa altura que não se goza com as características físicas das pessoas. O debate público é acerca de ideias ou actos, não de deformidades. Uma corcunda ou um penteado ridículo não transformam em mentira ou erro as afirmações de quem os padece. A beleza e a feiura, como a saúde e a enfermidade, a inteligência ou a mediania, não fazem boas ou más pessoas.
Caricaturar o outro a partir dos seus defeitos ou padecimentos físicos é, portanto, recurso dos pobres de espírito ou daqueles a quem escasseia talento para mais. É humor que as tascas aceitam (porque aceitam tudo), mas delas não devia sair.
Dito isto, se me parece errado desejar que o fanico de Cavaco Silva seja consequente, não vejo por que a ocorrência (a quase queda) não possa ser invocada em frases irónicas sobre o seu mandato enquanto presidente ou sobre o regime que ele representa. Podemos desejar a máxima saúde para o cidadão Cavaco Silva — mas agradecer que ele a vá gozar por muitos anos longe de Belém.

De resto, depois de, por exemplo, a sua tirada sobre a reforma que aufere, a empatia que as pessoas eventualmente sintam pelo ser humano que ele é será sempre mérito da bondade delas — nunca efeito dos actos dele.
Cavaco, devemos reconhecê-lo, é um homo sapiens — não um santo. Tem direito a misericórdia — não devoção.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Auspícios

Raramente ou nunca as eleições em Portugal são auspiciosas. Mas como haveriam de o ser se depositamos o nosso voto em urnas?

Marinho e Pinto

Marinho e Pinto é talvez o José Manuel Coelho destas eleições. Mas tem de se apressar se quiser ser o primeiro a desfraldar a bandeira nazi no parlamento europeu.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Dilúvio

Há duas relevantes estratégias para superar os embaraços desencadeados pelos silêncios da vida social: uma delas consiste em fazer alusões ao estado do tempo; outra, em tecer comentários ao estado a que o país chegou. Existem, no entanto, fórmulas que as sintetizam a ambas. Eis um exemplo, saído de voz tonitruante: «Isto vai tudo acabar em dilúvio!» Trata-se de uma sentença universal, capaz de corrigir qualquer silêncio. Ao invés do dilúvio — que não permite emendar grande coisa.