quarta-feira, 30 de abril de 2014

38

Afirma um estudo recente que aos 38 anos (em média) o homem se torna igual ao seu pai: adormece no sofá, ri das piadas próprias, etc. A figura do progenitor, no entanto, constitui aqui um mero artifício retórico: aos 38, o indivíduo entra no «campo dos velhos» — particularismos genéticos são irrelevantes. Uma tal conclusão, bizarra e totalitária, até dá vontade de adormecer no sofá, de rir das piadas próprias — e das anedotas que estudos assim involuntariamente representam.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Metáforas estafadas

Chegam ruidosos, em modo botellón, com bebidas enfiadas em sacos e empurrões amistosos de gorilas na tundra. Argumentam, discordam, objectam, como costumam fazer nas pausas de ulular hinos futebolísticos ou apor letras obscenas a repertório tunante. Mas, surpresa!, a discussão é sobre figuras de estilo. Não sobre figuras estilosas do futebol ou da música. O tom e o vernáculo são os mesmos, mas o assunto é gramática. Defendem, uns, e contestam, outros, a ocorrência do advérbio metaforicamente.
— Metáforas existem, é óbvio, mas metaforicamente não se diz.
— Diz, claro que diz. Então se se diz anaforicamente, que vem de outra figura de estilo, porque não se havia de dizer metaforicamente?
Eu, que sempre demoro uns segundos a distinguir anáforas de ânforas, espanto-me e alimento a esperança de estar perante uma tertúlia literária. (Elas dão-se onde menos se espera, anelo.) Mas depois os tertulianos iniciam uma guerra convencional disparando cubos de gelo em todas as direcções, incluindo na dos carros estacionados, e um proprietário vem prevenir possíveis danos no seu Mitsubishi exibindo um martelo na mão («porque eram muitos», dirá mais tarde) e verifico com fadiga que não foi esta noite que o mundo saiu do seu eixo.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

O Salgueiro Maia do Pátio das Cantigas (3): a Revolução está no Pátio

(parte 2)

Talvez por sermos crianças, não nos resignávamos à passada lenta do devir histórico, razão pela qual, de facto, teríamos num mesmo dia os nossos 25 de Abril, 11 de Março e Verão Quente: seria derrube da ditadura, instituição de novo regime e apropriação dos bens da classe dominante, tudo de uma assentada. Traduzindo: o plano era, aproveitando a ausência do Carlitos, infiltrarmo-nos na sede, apoderarmo-nos dos “tesouros” do Clube e transferirmos tudo para as traseiras da segunda tasca disponível (a do Sílvio), onde fundaríamos o Novo Clube.

As operações decorreram inicialmente conforme previsto: entrávamos na tasca do Carlitos, dávamos a desculpa de que íamos à casa-de-banho situada ao lado da sede e saíamos de novo, trazendo um qualquer item escondido dentro das calças. Mas cedo percebemos que a tática tinha pernas curtas: após meia-dúzia de entradas e saídas, o pai do Carlitos poderia ficar desconfiado com tanta urgência urinária.

Uma incursão à despensa da minha avó trouxe-nos as armas da nossa vitória: uma corda de três ou quatro metros e um balde.
Imbuídos de nova esperança e determinação, retomámos as operações. Eu e o Nuno gastámos pela derradeira vez a desculpa do chichi e voltámos à sede. Lá, abrimos uma das janelas que deitavam para o Pátio. Após algumas tentativas falhadas (a janela ficava à altura de um primeiro andar não muito alto), conseguimos agarrar a corda que o Sílvio nos lançava. Com a outra ponta atada ao balde, içámo-lo. E foi o fartar-vilanagem: em poucas levas esvaziámos a sede de todas as fisgas e grampos, todos os arcos e flechas, todos os cromos de futebol e do Sandokan, todas as caricas e demais parafernália, incluindo — prémio supremo — um Franjinhas de gesso pintado, já meio esbotenado, que ocupava lugar de honra no espólio do Clube. (Em abono da verdade, o Franjinhas era do Carlitos, mas tal era a crueza da nossa revolução.)

Finda a operação, refugiámo-nos nas traseiras da tasca do Sílvio, onde esperámos na semiobscuridade do esconso anexo, que, a meio de uma remodelação, pouco espaço livre tinha entre sacos de cimento, tijolos e montes de areia.

Uma ou duas horas depois, o Carlitos entrava, de rabinho entre as pernas, na nossa nova sede. Chegado da aldeia e deparando-se com o esvaziamento do Clube e a ausência de três de nós, tinha interrogado o Jorge Miguel, que lhe contou do nosso 25 de Abril. E agora, eis aqui o nosso ex-ditador, não em fuga para o Brasil, mas humilde, a admitir que tinha errado, mas que tudo iria mudar: a partir daquele dia, haveria acesso igualitário ao uso das fisgas e igual empenho na apanha dos grampos.

Talvez devido à precariedade da nossa nova sede, acedemos aos apelos do Carlitos, devolvendo tudo à origem: esse dia memorável na História do Pátio acumulava, assim, mais um marco: o da reversão do processo de expropriação e colectivização da propriedade privada.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Os heróis e os cabos de João Miguel Tavares

A direita tem com o 25 de Abril uma relação difícil: ou o odeia ou o desvaloriza. Por vezes surge uma inesperada e comovente apropriação, como a do secretário de estado Pedro Lomba. No Público de terça-feira, João Miguel Tavares, outro jovem turco da direita, foi mais fiel à ortodoxia da tribo, mas nem por isso foi menos enternecedor. Munindo-se das ferramentas da condescendência e do lugar-comum, temperadas com uma pitada humorada de literatura, Tavares informou-nos que o 25 de Abril, ao invés de uma Revolução, foi um caso de não-acção típico dos portugueses. Para esta sua tese, elegeu como episódio central e representativo do movimento das forças armadas o do cabo-apontador Alves Costa — que se fechou no tanque para não ser obrigado a disparar, tal como conta o livro Os Rapazes dos Tanques. João Miguel reproduz o episódio, relaciona-o com a idiossincrasia lusa e culmina aquela secção do artigo com um lapidar «E assim se fez Abril».

Percebo que a vivacidade de algumas fotos do 25 de Abril seja perturbadora, e que certas pessoas, arrebatadas pela tensão das imagens, se sintam tentadas a refugiar-se num tanque. Mas isso não deveria servir para ignorar que naquele mesmo dia houve quem se posicionasse em frente ao canhão, de peito aberto. Quem, ao contrário de João Miguel Tavares hoje, não sabia que os tanques nãoiam disparar.

O cabo-apontador da história que encantou Tavares pode ser representativo de uma certa portugalidade. Portugal inteiro pode hoje ser fielmente representado pela personagem de Herman Melville, aquele Bartleby paradigma da passividade, divertidamente invocado por João Miguel. Não discuto isso. Mas só uma hermenêutica muito irreverente ousaria considerar que «Preferiria não o fazer», o mantra de Bartleby, é o slogan adequado ao 25 de Abril.

Por mais que custe ou não convenha à narrativa actual, a Revolução foi feita pelos tipos que se dispuseram a sair de Santarém e a enfrentar um regime, amolecido, é certo, mas que continuava a prender, a punir e a torturar. Um regime que tinha do seu lado gente que não hesitaria, como não hesitou, em disparar ou mandar disparar.

Enfatizar o papel do cabo-apontador Alves Costa em detrimento do de Salgueiro Maia é escolher a caricatura da pequena história em vez da dignidade do retrato, igualmente disponível.

O cabo-apontador, no artigo de João Miguel Tavares, teve o mérito de impedir «que a revolução se tornasse num banho de sangue», mas a coragem dos capitães que se dispuseram a fornecer sangue para esse «banho» parece ser menos relevante para a narrativa.

«Se há coisa em que os norte-americanos são realmente bons», diz Tavares, «é a criar heróis e memoriais». E conclui: «(…) nós não temos essa cultura em Portugal.» Pois não. E João Miguel empenhou-se em provar que não a temos — preterindo heróis inconvenientes a cabos de anedota.

Concluo com uma interpretação talvez também ousada (preferiria não o fazer, mas detestaria mais passar por bartlebyano): desvalorizar a coragem dos outros à distância de décadas e no conforto de uma boutade de jornal é, parece-me, uma cobardia.

O Salgueiro Maia do Pátio das Cantigas (2): o “Movimento dos Capitães”

(parte 1)

As fisgas que tínhamos no Clube não eram fisgas de atirar pedras, feitas de uma galha; eram mais pequenas (5-6 cm de comprimento), destinadas a outros projécteis, e eram exemplares perfeitos do desenrascanço urbano.
A estrutura em “Y” da fisga era feita de arame grosso roubado à ponta de um estendal da roupa. À volta desta estrutura de base enrolávamos depois, laboriosamente, fio eléctrico fininho, conseguido nas sobras da estação automática dos CTT, vizinhos do Pátio das Cantigas, o que não só dava à fisga um pouco mais de rigidez, mas também tinha um belo efeito cromático, devido às cores garridas dos isoladores. O fio servia ainda para prender o elástico, pedinchado aos balcões das agências bancárias existentes do outro lado da Avenida Carvalho Araújo. Em vez de pedra, disparávamos «grampos», pedacinhos de 1 cm do mesmo fio eléctrico dobrados em “U”.

A árdua tarefa de fabricar as nossas fisgas e os respectivos grampos era uma parte importante da vida do nosso Clube, mas, como disse no fim da primeira parte, foi por aí que chegou o descontentamento, a dissensão e, finalmente, a Revolução.

O problema foi que, a dada altura, eu e o Nuno nos apercebemos de que, depois de todo aquele trabalho, praticamente o único que disparava as fisgas era o Carlitos. Para piorar as coisas, a dificuldade em arranjar fio de cobre ditava a constante escassez de grampos, pelo que uma tarefa ainda mais árdua, e muito menos divertida do que fazer fisgas, era a de passar horas de rabo para o ar a catar do chão do Pátio os grampos anteriormente disparados — actividade a que o Carlitos, denotando já naquela tenra idade todos os tiques das chefias lusas, se furtava olimpicamente.
A constatação da injustiça levou-nos, ao Nuno e a mim, a optar inicialmente pela greve e a resistência pacífica, recusando-nos à servidão a que se sujeitavam o Sílvio e meu primo, sob a torreira do sol do Verão transmontano. Até que decidimos passar à conspiração activa.

Num dia em que o Carlitos estava ausente, convocámos os dois mais novos para uma reunião secreta. (A Teresa ficou de fora, pois era uma luta que lhe passava ao lado: mais interessada nas suas prelecções gramaticais do que nas artes da balística, não disparava a fisga mas também não mourejava na preparação do arsenal.)
A reunião permitiu constatar o que já prevíamos: o descontentamento era generalizado. No entanto, o Sílvio e o Jorge Miguel hesitavam em seguir os nossos apelos de passagem à acção, com medo do Carlitos. Eu e o Nuno esforçávamo-nos na retórica motivadora:
— Isto tem de acabar! As fisgas e os grampos são de todos!
— O Carlitos é um explorador, um ditador!
— É um facho!
— Temos de fazer um 25 de Abril!

Qual Salgueiro Maia na parada da Escola Prática de Cavalaria na madrugada do dia histórico, o nosso discurso galvanizador conseguiu convencer o Sílvio a juntar-se a nós. E por aí se ficou o nosso sucesso, ao contrário do de Salgueiro Maia: o meu primo, o mais novo de todos, persistiu na medrosa recusa em participar, mas comprometeu-se ao silêncio, sensível aos nossos argumentos:
— Ou te calas ou levas!

A Revolução estava em marcha.


(Conclui amanhã.)

quarta-feira, 23 de abril de 2014

O Salgueiro Maia do Pátio das Cantigas (1): antecedentes

Aí por 1978, eu e mais uns vizinhos criámos o nosso primeiro clube, que nunca teve outro nome que não «O Clube». Nessa altura eu ainda não sabia ler, pelo que a motivação não me chegou por via dos livros d’Os Cinco e d’Os Sete, que viria a consumir fanaticamente. O mais certo é ter sido pura imitação do meu irmão, que, com alguns outros miúdos mais velhos do Pátio, tinha também um clube, ao qual «os putos» não tinham acesso.

O nosso Clube teve, nos anos que durou, seis membros: eu e a minha irmã, o nosso primo Jorge Miguel, o Nuno, o Sílvio e finalmente o Carlitos, o nosso chefe.
O Carlitos era o mais velho do grupo. De facto, em termos etários, aproximava-se mais do meu irmão do que dos restantes de nós, mas a sua imaturidade (e a conhecida crueldade infantil) fazia com que fosse algo ostracizado pelos miúdos mais velhos. Assim, com nove-dez anos, convivia fundamentalmente connosco, cujas idades iam dos quatro aos oito — uma maioridade que lhe garantia o estatuto.
O direito à chefia era reforçado pelo facto de a ele devermos o Clube ter uma sede digna desse nome: uma sala nas traseiras da tasca do pai dele, que em dias de mercado se transformava no “consultório” de uma endireita; fora desse período, a sala estava por nossa conta.

O Clube desenvolvia um intenso programa de actividades: fazíamos fisgas, arcos e flechas, brincávamos aos índios e aos lusitanos, escrevíamos mensagens cifradas (isso mais tarde, quando já todos sabíamos ler e escrever) — enfim, fazíamos as coisas normais de miúdos daquela idade. Ou nem tanto: exercendo a sua autoridade de subchefe, patente assegurada pela idade e pelo privilégio de ser a única menina do grupo, a minha irmã conseguira incluir no rol de actividades um período em que ela tentava ensinar-nos os adjectivos e os verbos, a divisão longa e as regras de pontuação — que ela própria tinha aprendido apenas uns dias antes. (Sim, adivinharam: a minha irmã estava fadada a tornar-se professora.)

A certa altura, por iniciativa do Carlitos, as reuniões do Clube assumiram uma solenidade e um ritual — e uma estratificação hierárquica — impressionantes: o chefe sentava-se ao fundo, de costas para a parede, numa das duas únicas cadeiras disponíveis; os lugares à sua esquerda e à sua direita eram ocupados por mim e pelo Nuno, sentados em grades de cerveja vazias; em frente ao Carlitos, na segunda cadeira, sentava-se a subchefe; e de um lado e do outro da Teresa, de pé e em pose de guarda-de-honra, ficavam o Sílvio e o Jorge Miguel, os mais novitos. Tamanha entronização do chefe não causou a melhor impressão em alguns de nós.

Mas foi por causa das fisgas que a Revolução chegou ao Clube e ao Pátio das Cantigas.


(Continua amanhã.)

sexta-feira, 18 de abril de 2014

1976: Pátio das Cantigas, cidade olímpica

O mês de Julho de 1976 arrastava-se e estávamos aborrecidos. Talvez fruto da relativa frescura desse Verão, se comparado com o do ano anterior. Ou talvez devido à imensidão das férias: com seis anos, a minha irmã terminara o infantário e entraria na escola primária no Outubro que tardava; quanto a mim, com quatro anos, e ao meu primo, com vinte e um meses, as nossas curtas vidas eram umas férias contínuas. Fosse o que fosse, estávamos aborrecidos.

A RTP deveria andar a transmitir por esses dias algumas provas dos Jogos Olímpicos de Montreal, pois o certo é que um de nós se lembrou de fazermos as nossas próprias Olimpíadas. O “estádio” era o jardim das traseiras da nossa casa; as provas, corrida à volta dos canteiros, salto em comprimento, lançamento de pedras...
Como éramos só três, todos tinham lugar no pódio: o primeiro equilibrava-se num banco alto; à sua direita, num banco mais baixo, perfilava-se o segundo; o terceiro resignava-se ao piso térreo à esquerda do vencedor. (Talvez houvesse algum sucedâneo de medalhas, mas não me lembro.) Cantarolávamos o hino nacional, com a gravidade que convém a atletas medalhados, e passávamos à prova seguinte.
Dada a pequena-grande discrepância de idades, não demorou muito a detectar-se uma regularidade nos resultados: a atribuição das “medalhas” de ouro e de prata variava, mas, com os cueiros ainda a pesarem-lhe nas pernitas gordas, o bronze acabava sempre no peito do meu primo Jorge Miguel.

O Jorge Miguel era um desses fenómenos do último quartel do século XX português: sem nunca se ter ido embora, era um “Retornado”, tendo vindo da sua Angola natal em Janeiro de 1975. (Era também o único que não sabia que em Angola vivera num bairro de Luanda, e que chegara a Portugal com apenas três meses de idade, pelo que, para grande divertimento nosso, fantasiaria durante anos, longa e detalhadamente, sobre as suas supostas vívidas memórias de piqueniques no mato, com a imprescindível aparição de macacos, leões e elefantes...)
Como a família ainda não tinha casa própria, o meu primo e os pais iam vivendo na casa dos meus avós paternos, situada, tal como a nossa, no Pátio das Cantigas. Com eles vivia ainda uma tia solteira, a Tia Meá, também regressada de Angola.

Mal habituado pelo seu privilégio de “duas mães” (a Avó Teresa era mais igualitária na distribuição dos afectos), enquanto eu e os meus irmãos nos víamos obrigados a partilhar uma por três, aquela série de derrotas atléticas era mais do que o Jorge Miguel podia suportar: veio a birra, um literal se-não-me-deixam-ganhar-então-não-brinco.
A princípio resistimos a essa chantagem antidesportiva, mas acabámos por ceder e a prova seguinte foi uma retumbante vitória do meu primo: eu abrandara descaradamente o passo, dando-lhe a oportunidade de me ultrapassar no canteiro dos jarros. Foi um regalo vê-lo inchado de orgulho enquanto subia a custo para o banco mais alto, aparentemente alheio ao facto de a vitória lhe ter vindo por via da birra e não do mérito de velocista.
Porque, se é certo que não recordo se houve conspiração prévia ou não, também não é menos certo que a nossa vingança já estava a sair do forno: sobe o Jorge Miguel ao mais alto do pódio, tomamos, eu e a Teresa, as duas posições subalternas; e então, como um balde de água fria, cantamos (eu e ela) o hino do vencedor: «A-bunga-bu, a-bunga-bu...»
O Jorge Miguel explode num berreiro. Nós, curiais: «Então, tu és preto, vieste de Angola...»
«Não, eu sou português!», gritava o nosso primo, mais irritado do que nunca.

A ironia, claro, é que o Jorge Miguel era o único loiro de entre nós, com uma pele rosadinha que, nos polaroids desbotados da década de 70, lhe dá um ar de leitãozinho rechonchudo. Mas esse pormenor não refreava a determinação, minha e da minha irmã, de lhe darmos uma lição de desportivismo — ou, em abono da verdade, pormos em prática essa crueldade infantil que não precisa de ser ensinada.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

O meu prédio é uma metáfora nacional

O meu prédio é uma metáfora nacional. Durante anos apenas nos mijavam diária e copiosamente a entrada principal. Os excessos da boémia académica são o tributo que a terra aceita pagar pelos benefícios de ser uma cidade universitária. Pode dizer-se que Vila Real contribuiu activamente para hoje termos a geração mais indiscutivelmente bem formada da história lusa.
Como o progresso é imparável, no último ano temos também diariamente mijada a porta das traseiras. Já não pelos frequentadores das tascas do bairro, mas por adolescentes do prédio que se acoitam à noite, com as suas playstations, primeiros cigarros e cervejas clandestinos, numa das garagens familiares convertida em sala de jogos.
Lamentavelmente, dentre as benfeitorias levadas a cabo na garagem não parece constar nenhum WC, penico ou algália. Os papás proprietários da garagem não devem ter sentido necessidade disso porque confiam demasiado na elasticidade das bexigas juvenis, ou, mais certamente, porque não utilizam a nossa porta das traseiras, a mais discreta da fachada.
Em consequência da boçalidade adulta e da imbecilidade infanto-juvenil, do desleixo duns e da má-educação doutros, no meu prédio entra-se hoje sempre de mão no nariz e a descolar os sapatos depois de cada passo dado. O exercício é particularmente divertido e peganhento nos dias em que, como agora, há pó verde de pinheiros também nas entradas dos edifícios.

Pequenos retratos infames (3): Henrique ‘Santa Comba’ Raposo

É ilegítimo e vil usar aspectos físicos das pessoas para atacar as suas ideias ou posições políticas. Ou para as defender. Na minha pós-adolescência ocorreu acusarem-me de Júlio Isidro e simultaneamente piropearem-me de James Dean. (Hoje fariam pior.) Mas isso aconteceu, tanto para o mal como para o bem, porque na verdade ninguém, eu incluído, sabia ou se interessava pelo que eu pensava. Apenas estava toda a gente, de novo eu incluído, fascinada (como no circo) pelos diferentes ângulos da minha fotogenia: de frente para o James; de lado para o Júlio (nunca subestimem o poder afrodisíaco de um nariz).

Mas deixemos Narciso no seu lago. Se tivermos nobreza de princípios e intenções, será deveras impróprio e torpe lembrar o quanto Henrique Raposo, naquela sua foto de míope, se parece com um oficial das SS ou com um agente da Gestapo. O exercício é contudo legítimo se reconhecermos ao alvo dos nossos insultos uma inteligência capaz. Precisamente porque sabemos que Raposo não ignora as circunstâncias, as conotações e a vanidade de muitos dos seus artigozinhos irreverentes e caprichosos do Expresso, podemos, se formos igualmente mesquinhos, responder-lhe com um «Heil Hitler para ti também». Ou, pronto, não exageremos, o caso não é assim tão teutónico. Raposo talvez apenas se pareça com um mangas-de-alpaca doutrinário, uma espécie de primito lisboeta e envernizado do homem de Santa Comba, para quem basta um simples e nacional manguito das Caldas. E se o caso for menos grave ainda — Raposo enquanto mero delfim de César das Neves, invejoso do sucesso daquele no anedotário luso (que não da avença, imagino que o Expresso pague mais) —, até podemos achar o Henrique boa companhia para um copo. Quem não gosta de partilhar a mesa com um tipo mesmo de direita? Eu gosto, e o único amigo que tinha capaz de achar que a culpa da crise era dos gajos do rendimento mínimo vacilou nas convicções quando o Governo lhe foi ao bolso e o deixou mal equilibrado às portas do desemprego. Sinto por isso falta de alguém a quem possa pagar com gosto umas rodadas enquanto digo: o que bebes, nazi do caralho?

terça-feira, 15 de abril de 2014

GPS

Os movimentos parecem indicar tratar-se de mais um yogi, dos que por vezes aparecem no parque, mas a orientação precisa e constante, aquela maneira de encarar um ponto (para mim) indefinido a sudeste, revela outra intenção, outra atitude. Num primeiro impulso, com certa presunção de geógrafo ou de nativo íntimo do curso do Sol em Trás-os-Montes, estou tentando a corrigir-lhe a direcção do olhar, o azimute para onde aponta o rosto. Mas depois reconheço que preciso de consultar outra vez o mapa para localizar Meca, que, na verdade, eu próprio nos últimos tempos ignoro o norte.
Enquanto me debato com a magna questão dos pontos cardeais, dois élderes passam absortos no seu próprio ritual itinerante, ziguezagueante, mostrando como é ubíqua a existência de Deus ou como são múltiplas as maneiras de o Homem se desorientar.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Revista de imprensa e blogosfera

Os conservadores, como aquelas pessoas que encaixam a realidade nas previsões do Zodíaco, discutem entre si de que forma a sua bibliografia muito culta e cool explica a actualidade. Para fingirem solidariedade social, concedem que se dê uma atençãozita ao trabalho de Thomas Piketty sobre a desigualdade económica. Vasco Pulido Valente, pelo seu lado, foi ler mais um livro de história da I Guerra Mundial que explica, claro, como o Estado Social e qualquer forma de socialismo são insustentáveis. Os comunistas à antiga andam excitados com as conquistas da Rússia e repetem para si mesmos que são direitos e benfeitorias. Putin, vê-se pelas fotos do fim-de-semana, anda literalmente inchado de orgulho com o sucesso das suas campanhas (há quem diga que é botox, mas são calúnias, macho russo não estica o rosto, é ilegal). Na Coreia do Norte, diz-nos um jornalista da Lusa, afinal não se deitam os tios aos cães e há liberdade de penteado (que é, como se sabe, um requisito mínimo para a liberdade de pensamento, que sob o couro cabeludo se abriga). Já só faltam 76 dias e a Europa parece mais bem preparada para o centenário de Sarajevo do que o Brasil para o Mundial de Futebol.

domingo, 13 de abril de 2014

Ai que saudades da «cultura de excelência» do pré-25 de Abril!

Leio no Público que Durão Barroso veio lembrar-nos da «cultura de excelência» promovida nas escolas antes do 25 de Abril.

Senhor Dr. Durão Barroso, não era cultura de «excelência» — era a cultura de «Sua Excelência», era a cultura da exclusão.
A escola pública no Estado Novo não procurava detectar o talento onde quer que ele existisse, levando-o à excelência. A escola pública do Estado Novo procurava perpetuar o statu quo: garantir que os pobres se mantinham calados e sossegados — e pobres, como Deus quis.

A educação, para lá dos quatro anos da Primária (que a falta de fiscalização não garantia, sequer), estava fundamentalmente reservada às classes média e superiores — e nesses tempos a imensa maioria da população não alcançava, nem de longe, o nível da classe média.
Não é que a lei proibisse ipsis verbis o acesso das classes populares a educação suplementar, mas a prática do regime garantia que assim fosse, para todos os efeitos. As poucas famílias de classe mais baixa que conseguiam providenciar uma educação liceal a um dos seus filhos faziam-no com grande esforço, à custa de muito sacrifício: em geral, apenas o filho mais novo, na melhor das hipóteses, teria a oportunidade de prosseguir os estudos, pois era preciso que todos os irmãos e irmãs mais velhos trabalhassem (como moços de recados e marçanos, como criadas de servir e ajudantes de costureira) para que houvesse dinheiro à justa para suportar as despesas dessa escola promotora de «cultura de excelência».

¤

O meu pai foi um excelente aluno. Poucos meses depois de iniciar a 1.ª Classe, o professor percebeu que ele não só sabia toda a matéria desse ano (já dera duas voltas ao livro), como sabia de facto mais do que os alunos da 2.ª Classe. Homem sábio, passou-o logo para essa turma mais avançada, razão pela qual o meu pai concluiu a Primária em apenas três anos.
Como na altura a escola pública, como é sabido, promovia uma «cultura de excelência», a sua condição social ditaria que não prosseguisse os estudos. O meu avô precisava de um par de braços extra a trabalhar na sua pequena carpintaria e no meio hectare de terreno arrendado que ajudava no sustento das seis bocas da família.

Mais tarde, já com 18 ou 19 anos, o meu pai resolveu tentar fazer, como autoproposto, os exames do 2.º ano do curso do Liceu. Preparou-se autonomamente o melhor que pôde, chegando a pagar, com dinheiro penosamente ganho, umas explicações particulares de Francês.
Quando se tentou inscrever nas provas, foi informado que não bastava pagar a já de si pesada taxa de inscrição: precisava de um termo de responsabilidade.

— Termo de responsabilidade? — perguntou o meu pai.
— Alguém que se responsabilize por si, que afiance que está preparado para realizar os exames. Quem o assina tem de ser um familiar seu com escolaridade superior à sua, ou um licenciado.
— Mas responsabilizar-se por quê? Sou eu que vou pagar a inscrição. Se reprovar no exame, quem é que prejudico para além de mim? Para quê um «responsável»?

Era a «cultura da excelência» a funcionar. O meu pai podia discordar o quanto quisesse, as regras eram como eram. (Ai as saudades...)
Na família, mesmo alargada, não havia ninguém com escolaridade superior à dele. Quanto a um licenciado, não sei se o meu pai não encontrou um que se «responsabilizasse» por ele, ou se recusou a humilhação de procurar um. O resultado foi que não pôde realizar os exames, ficando-se pela escolaridade primária. Tudo em nome da «cultura de excelência», pois claro.

sábado, 12 de abril de 2014

Pátio das Cantigas: o pátio que o era antes de o ser

Não há certezas quanto a como este lugar de Vila Real se veio a chamar assim, mas as teorias mais acreditadas apontam para responsabilidades do famoso filme homónimo de 1942.

Até 1998, o Pátio das Cantigas existia essencialmente na geografia de afectos dos vila-realenses mais bem informados. Oficialmente, era apenas um número (o 77) da Avenida Carvalho Araújo, centro do centro da cidade transmontana. Existia também nos envelopes de uma ou outra carta destinada a algum dos seus moradores, remetida por alguém (um vila-realense da diáspora?) que, desconhecendo a morada correcta, estava familiarizado com a designação popular.
Então, nesse ano de 1998, os CTT criaram o código postal “4+3”, com os números extra a detalharem os arruamentos. A ignorância da distante Lisboa, associada à detecção de cartas endereçadas ao Pátio, ditou-lhe a atribuição de um código postal próprio (5000–517), para além do decorrente da sua localização oficial na Avenida Carvalho Araújo (5000–657).
E assim a casa onde nasci e vivi a maior parte da minha vida ganhou duas moradas para a mesma porta.

Mas como ganhou o Pátio tal designação? A teoria mais credível lembra o facto de o Pátio ter sido limitado a sul pelo Teatro Avenida, sala que era também de cinema. Nos anos 40 e 50, o “ar condicionado” consistia em, no intervalo, abrir as portas laterais, deixando entrar a fresca e dando aos espectadores a oportunidade de saírem para o pátio a fumar um cigarro. Não é descabido que num desses intervalos — talvez precisamente no intervalo d’O Pátio das Cantigas — alguém mais humorado tenha visto ali uma versão local do mítico pátio lisboeta. O nome pegou e foi ficando.

Mas a vida dá as suas voltas. O cineteatro faliu no fim dos anos 80, o prédio arruinou-se e, após década e meia de abandono, foi demolido e reconstruído: em 2004 renascia como Conservatório de Vila Real. Anos depois, desconheço por iniciativa de quem, surgiu a placa oficializadora que hoje ali se pode ver.
A memória humana é o que é. Com a nova vizinhança, talvez a lenda mude de musa: chegará o tempo em que a influência do cinema no designativo «das Cantigas» se perderá na bruma, em favor da das paredes-meias com o Conservatório? Talvez já tenha chegado...

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Gel, mães e filhos (2)

Como a mãe do post anterior, talvez a minha não se tivesse importado de me comprar gel recebendo instruções por telemóvel, se houvesse telemóveis quando eu era adolescente e se a mercearia do bairro — onde, família grande, nos abastecíamos a crédito para o mês, num vaivém de sacos que parecia diligência de Noé em véspera de dilúvio —, se a mercearia do bairro, dizia, tivesse a variedade actual de produtos e nós dinheiro para eles.
Sou dos que depois usaram gel e o largaram tarde, quando já corria o risco de ser tomado por deputado de um partido do arco da governação. Não fui deputado e a minha mãe decerto teve disso orgulho: não gostava que andássemos em más companhias.
A verdade é que, tirando o gel, nada mais me qualificava para deputado. Desde novo fui educado para ser humilde e sem ambições materiais. De cada vez que mostrava alguma ambição (uma bola, uma miniatura de tractor, algodão doce num arraial, um Fruto Real ou uma Schweppes, Sugus), recebia a resposta que hoje nos dá o Governo: não há dinheiro. Mas ao contrário do Governo, a minha mãe não o dizia com maldade de velha megera. Doce como era, dizia-o à superfície por vezes com rispidez pré-25 de Abril, mas com um coração de generoso revolucionário partido no peito. Ela que enfrentava a dureza da época como um Salgueiro Maia quotidiano (um que por vezes derramasse umas lágrimas).
Não lhe deve ter sido fácil negar-nos permanentemente os desejos. E tinha de o fazer em várias frentes (éramos seis, com interesses que variavam entre os dos que usavam chupeta e os dos que começavam a fumar). Mas depois ficou certamente contente por ver que os seus meninos lá medraram como Deus deixou — mantendo-se fiéis à linhagem: empenhados e humildes.
Por (triste) sorte, já não se dará conta de que neste país a humildade e o empenho se continuam a pagar mal e a castigar forte. Mesmo que em algum momento se tenha usado gel. Ou por causa disso.

Gel, mães e filhos (1)

Uma jovem mãe percorre as prateleiras do supermercado com o telemóvel na orelha. Procura um gel para o cabelo e percebe-se que, com branda resistência, está a ser dirigida remotamente pelo filho adolescente. Efeito molhado, fixação normal, forte ou extraforte, marcas, preços... As variáveis são muitas e é difícil encontrar um equilíbrio entre a exigência do rapaz e a carteira da mãe.
Não parece aborrecida com os caprichos do filho, talvez porque já teve ou testemunhou experiências piores. Protagonizadas por teenagers maldispostos, rudes, rufiões, que acompanham as mães às lojas como quem sequestra um desconhecido e o leva sob coacção ao multibanco mais próximo. Filhos que mandam calar as progenitoras e cospem em público ninguém te perguntou a opinião como bandidos sem paciência para as objecções patéticas e impertinentes das suas vítimas. E que, depois de escolherem algo da última moda para gangues (que um diligente criativo desenhou a pensar na globalização do Bronx), arrastam com maus modos a mãe para a caixa, deixando já adivinhar que à saída da loja atirarão com ela e a sua carteira vazia para uma valeta.
A mãe no supermercado fica por momentos esquecida a olhar carinhosamente a filha, talvez para afastar maus pensamentos. A rapariga, criança, entretém-se na secção de produtos para o rosto — não ainda a projectar-se na adolescência que tarda, mas porque as cores e as formas lhe parecem divertidas.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Imprudência

Com os cada vez mais evidentes sinais de regresso dos fascismos à Europa (e ao poder; a originalidade da Hungria não durará), com um clima político a leste cada vez mais prussiano, a direita continua, com moral de inquisidor, obcecada em punir os países e as pessoas que, na opinião dela, viveram acima das suas posses. A direita é muito estúpida, conivente ou imprudente. E receio ter escrito imprudente apenas por cortesia ou fair play.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

O papel do jornalista tem dias

Em dois posts que por preguiça não publiquei aqui, defendi o papel do jornalista no caso Rodrigues dos Santos versus Sócrates. Muita gente o tem feito, alguns com particular ferocidade, incluindo o próprio José Rodrigues dos Santos. Contudo, não vi muita gente defender o papel do jornalista também nos casos das partenaires inânimes de Marcelo Rebelo de Sousa e Marques Mendes. Que de resto são comentadores há mais tempo.
É isto que me irrita ou entedia (depende das horas) na vida política portuguesa, este clubismo sem coluna e hipócrita, incapaz de esconder o longo rabo que deixa de fora. Onde têm estado os defensores do papel activo do jornalista nos longos anos que Marcelo leva de missa dominical? Onde estão quando é Marques Mendes a perorar sem particular contraditório?
Uma intervenção útil em defesa do jornalismo era terem aproveitado este episódio para reivindicar verdadeiros jornalistas também nos programas de Marcelo & Mendes — em vez de se limitarem a uma defesa de JRS que é na verdade um ataque imbecil a Sócrates e/ou uma defesa acéfala do Governo.