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quinta-feira, 24 de abril de 2014

Os heróis e os cabos de João Miguel Tavares

A direita tem com o 25 de Abril uma relação difícil: ou o odeia ou o desvaloriza. Por vezes surge uma inesperada e comovente apropriação, como a do secretário de estado Pedro Lomba. No Público de terça-feira, João Miguel Tavares, outro jovem turco da direita, foi mais fiel à ortodoxia da tribo, mas nem por isso foi menos enternecedor. Munindo-se das ferramentas da condescendência e do lugar-comum, temperadas com uma pitada humorada de literatura, Tavares informou-nos que o 25 de Abril, ao invés de uma Revolução, foi um caso de não-acção típico dos portugueses. Para esta sua tese, elegeu como episódio central e representativo do movimento das forças armadas o do cabo-apontador Alves Costa — que se fechou no tanque para não ser obrigado a disparar, tal como conta o livro Os Rapazes dos Tanques. João Miguel reproduz o episódio, relaciona-o com a idiossincrasia lusa e culmina aquela secção do artigo com um lapidar «E assim se fez Abril».

Percebo que a vivacidade de algumas fotos do 25 de Abril seja perturbadora, e que certas pessoas, arrebatadas pela tensão das imagens, se sintam tentadas a refugiar-se num tanque. Mas isso não deveria servir para ignorar que naquele mesmo dia houve quem se posicionasse em frente ao canhão, de peito aberto. Quem, ao contrário de João Miguel Tavares hoje, não sabia que os tanques nãoiam disparar.

O cabo-apontador da história que encantou Tavares pode ser representativo de uma certa portugalidade. Portugal inteiro pode hoje ser fielmente representado pela personagem de Herman Melville, aquele Bartleby paradigma da passividade, divertidamente invocado por João Miguel. Não discuto isso. Mas só uma hermenêutica muito irreverente ousaria considerar que «Preferiria não o fazer», o mantra de Bartleby, é o slogan adequado ao 25 de Abril.

Por mais que custe ou não convenha à narrativa actual, a Revolução foi feita pelos tipos que se dispuseram a sair de Santarém e a enfrentar um regime, amolecido, é certo, mas que continuava a prender, a punir e a torturar. Um regime que tinha do seu lado gente que não hesitaria, como não hesitou, em disparar ou mandar disparar.

Enfatizar o papel do cabo-apontador Alves Costa em detrimento do de Salgueiro Maia é escolher a caricatura da pequena história em vez da dignidade do retrato, igualmente disponível.

O cabo-apontador, no artigo de João Miguel Tavares, teve o mérito de impedir «que a revolução se tornasse num banho de sangue», mas a coragem dos capitães que se dispuseram a fornecer sangue para esse «banho» parece ser menos relevante para a narrativa.

«Se há coisa em que os norte-americanos são realmente bons», diz Tavares, «é a criar heróis e memoriais». E conclui: «(…) nós não temos essa cultura em Portugal.» Pois não. E João Miguel empenhou-se em provar que não a temos — preterindo heróis inconvenientes a cabos de anedota.

Concluo com uma interpretação talvez também ousada (preferiria não o fazer, mas detestaria mais passar por bartlebyano): desvalorizar a coragem dos outros à distância de décadas e no conforto de uma boutade de jornal é, parece-me, uma cobardia.

sábado, 7 de dezembro de 2013

O Efeito Mandela

Em Novembro de 1997, enquanto lia o Doutor Jivago e aguardava pelo check in no Aeroporto de Joanesburgo, apercebi-me de um rumor crescente e de um inesperado movimento de pessoas junto a um portão de embarque. A curiosidade venceu e também eu me acerquei do aglomerado: era Nelson Mandela que antes de passar o corredor de segurança parou e, entre aplausos, se deixava fotografar acenando, sorridente, para a pequena multidão.

A minha vida não mudou, depois daquele momento. Mas fiquei sempre com a agradável memória de ter estado próximo de um Mito.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Apagar

Abro um ficheiro com certo diário que mantive ao longo de mais de três anos. Sempre que o revisito (faço-o regularmente) apago, em geral, um parágrafo. Por vezes, salvo uma ocorrência, conservo um pensamento, guardo uma expressão. Mas o imperativo é apagar. Se pode tornar-se entusiasmante a rápida criação de textos quando nos guia a promessa do livro novo, chega a ser redentora a lenta extinção de frases quando nos guia o ideal da página em branco.

terça-feira, 26 de março de 2013

Eterno retorno

Pesquisando num dos meus antigos blogues (decesso desde outubro de 2009), encontro um comentário à seguinte notícia do Público de 11/04/2009, meses depois do início da crise financeira em que ainda andamos naufragados:

Pela primeira vez na história, Brasil passa a credor do FMI

“Chique”, “histórico”, “soberano”. Não faltaram adjectivos ao Presidente brasileiro, Lula da Silva, para classificar o empréstimo que o país vai conceder ao Fundo Monetário Internacional (FMI). [...] “Você não acha chique o Brasil emprestar dinheiro para o FMI?”, perguntou a um dos jornalistas presentes na conferência de imprensa. “Eu passei parte da minha juventude a carregar faixas contra o FMI no centro de São Paulo e, agora, serei o primeiro Presidente deste país a emprestar dinheiro à mesma estrutura a quem já devemos muito dinheiro”, enfatizou.

No final desta semana, o Governo brasileiro anunciou que vai disponibilizar 3,4 mil milhões de euros ao FMI, com o objectivo de ajudar países emergentes que enfrentam dificuldades de crédito devido à crise internacional. “Agora estamos a entrar no clube de credores do FMI”, frisou o ministro das Fazenda (Finanças), Guido Mantega.

[...]

Brasil viveu “humilhação”

Depois de décadas a receber visitas de representantes do FMI, o Brasil saldou as dívidas com a estrutura em finais de 2005 [...]. Até essa altura, sublinhou Lula da Silva antes de seguir para a cimeira do G20 em Londres, o país viveu um “inferno”, uma “humilhação”.

“A gente via descendo do avião, no aeroporto, mulheres e homens do FMI dando palpites sobre o que tínhamos de fazer. Aquilo era uma humilhação. Diziam que tínhamos de fazer ajuste fiscal, contenção de gastos... era um inferno”, afirmou.

[...] “Antes da actual crise financeira global, disse o Presidente, o FMI vivia dando palpites sobre as economias do Brasil e de outros países da América do Sul”, assegurou.

Comentava então eu, num post intitulado «Passei metade da vida a lutar contra os “Maus”. Agora sou um dos “Maus”, e sabem que mais? Até que não é mau...» :

Curioso: agora que está no “Clube dos Ricos”, Lula da Silva não explicou se:
  • Estava errado quando lutava contra o FMI;
  • O FMI tinha razão quando pedia o saneamento das contas brasileiras, e isso ajudou a chegar onde estão hoje;
  • A postura do FMI era mesmo errada e ele, agora que tem voto na matéria, vai lutar por um “FMI de rosto humano”;
  • Qual quê! Agora que é credor, vai levar aos outros a «humilhação» que o Brasil sofreu antes, dando-lhes palpites a toda a hora...

O cenário dos homens que descem de aviões com palpites indesejados soa-me bastante familiar, pelo que me inclino para a hipótese de que o FMI pós-contributo brasileiro se regula mais pelo princípio expresso na minha quarta alternativa.

Ou talvez eu esteja a ser injusto. Talvez o Brasil, seguindo a promessa do governo de Lula da Silva, tenha dado o tal “rosto humano” ao FMI — mas apenas, como referia a notícia, relativamente a «países emergentes».

Países imergentes, como Portugal, levam a velha receita.

segunda-feira, 18 de março de 2013

«É preciso ter estudado Economia muitos anos para não perceber isto...»

Uma das mais fascinantes características do ministro Vítor Gaspar (que chegou ao Governo com aura de génio da Economia e currículo com supostas «provas dadas») é a sua imorredoura capacidade para se surpreender com o andar da... Economia.

O Governo corta os salários do funcionários públicos, aumenta os impostos para todos e diminui a segurança no trabalho facilitando os despedimentos. Quando, perante a menor disponibilidade financeira e as perspectivas negras para o futuro, os portugueses se precavêem retraindo ainda mais o consumo e a economia cai mais rapidamente... Vítor Gaspar fica surpreendido.
(A 13 de setembro último, em entrevista à RTP, Pedro Passos Coelho, que antes dissera que os portugueses viviam acima das suas possibilidades, justificou o acentuar da retracção económica pondo a culpa nos portugueses, que teriam consumido menos do que podiam...)

Quando a quebra do consumo leva ao aumento do desemprego (consequência natural num tecido empresarial que depende esmagadoramente do consumo interno)... Vítor Gaspar fica desapontado.

Foi assim que, ainda antes de muitos destes episódios caricatos da política portuguesa ocorrerem, me convenci que o alegado «génio» da Economia não percebe nada de Economia (real). A propósito disso, escrevi no Facebook, a 10 de setembro de 2012, o post que a seguir reproduzo.

«É preciso ter estudado Economia muitos anos para não perceber isto...»

Dogbert agita varinha máica e diz. «Fora! Fora!! Seus demónios da estupidez!!»

Dogbert, de Scott Adams


Daniel Kahneman e Amos Tversky (dois psicólogos) mostraram em 1979 que, ao contrário das teorias económicas vigentes (em grande medida, ainda agora), os sacrossantos Mercados não são racionais.

A teoria foi recebida com escândalo e cepticismo pelos previsíveis guardiães da ortodoxia económica: com fervor, agarraram-se ao dogma e, benzendo-se, maldisseram os ímpios incréus que ousavam entrar no recinto sagrado do Templo e denunciar os seus ídolos de caco e as suas burlas sibilinas.

Às objecções do Sinédrio e da Cúria da Economia, Kahneman retorquiu com ironia: «É preciso ter estudado Economia muitos anos para não perceber isto...»

Para nossa desgraça, a boutade de Kahneman aplica-se, não apenas à teoria económica da racionalidade dos Mercados, mas à generalidade da política económica adoptada em Portugal e por muito desse mundo...


Nota: Daniel Kahneman viria a ganhar o Prémio Nobel da Economia em 2002 (Tversky já tinha morrido, não sendo por isso nobelizável).

domingo, 17 de março de 2013

Há muitas formas de estar errado

André Macedo, no seu editorial do Dinheiro Vivo de 16 de março, fala do perigo de o radicalismo económico de Vítor Gaspar levar, por reacção, as pessoas a rejeitarem «as economias liberais, a concorrência, o capitalismo, até as instituições democráticas».

Esse perigo é real, pois as pessoas têm a tendência de ver dicotomias em tudo: se uma ideia é errada, uma outra ideia que se lhe oponha será necessariamente certa.
Pude verificar (sem surpresa) essa tendência para a ultrassimplificação das questões na semana que antecedeu a grande manifestação de 15 de setembro: no Facebook defrontavam-se, por vezes com grande violência verbal, dois campos antagónicos, não raro constituídos por “amigos”. Uns, que com enorme facilidade passavam da oposição ao Governo e à Troika para a apologia da Cuba castrista e outros comunisms serôdios. Outros, que vendo comunistas e anarquistas em tudo quanto era canto (mesmo que tal visão fosse muitíssimo redutora e por isso injusta), fincavam pé quais irredutíveis gauleses, repetindo o mantra de apoio a Gaspar mais para se convencerem a si próprios do que à sua audiência; uma táctica alternativa era a de desviar as atenções dos erros presentes, berrando bem alto a denúncia dos erros passados.

A propósito deste triste espectáculo, escrevi no Facebook a 14 de setembro de 2012 o post que a seguir reproduzo.

Há muitas formas de estar errado

Um artigo no Público espanhol diz que a crise deu força a quem rejeita o Capitalismo. Será verdade, mas é um erro.

PPP's dos últimos Governos: Cavaco Silva 2, Guterres 30, Durão Barroso + Santana Lopes 6, Sócrates 50

Um amigo meu aqui no Facebook, de Direita, posta uma imagem que compara o número de Parcerias Público-Privadas celebradas nos governos PSD (Cavaco Silva, Durão Barroso/Santana Lopes) e PS (Guterres, Sócrates): sendo os números correctos (não sei), o regabofe foi uma ordem de grandeza (i.e., 10x) superior durante os governos do PS. Ainda que o gráfico seja verdadeiro, a extrapolação (implícita) do meu amigo está errada.

O mundo é mais complexo do que, à esquerda e à direita, alguns nos querem convencer. A ideologia e a prática política e económica não são dicotómicas, não são binárias. Se uma está errada, a outra não está consequentemente certa.
Há muitas maneiras de estar errado.

Não foi por combater Hitler que Estaline estava certo, nem foi por Estaline estar errado que Hitler estava certo. Estavam ambos errados e ambos estão no top dos Criminosos contra a Humanidade.

Não é por o sistema soviético ter colapsado sob o peso dos seus próprios princípios errados que as variedades selvagens de capitalismo são aceitáveis. E não é por existir capitalismo selvagem, exploração e cegueira ideológica à Direita que o regime soviético, o marxismo-leninismo ou a Ditadura do Proletariado devem ser reabilitados da fossa séptica da História, como se à Esquerda não tivesse havido também a sua enorme dose de selvajaria (colectivista), opressão e cegueira ideológica de sinal contrário.
Há muitas maneiras de estar errado.

De igual forma, não é por os Governos PS terem sido despesistas e dominados por golpistas, ladrões e gajos de “esquemas” que o actual Governo do PSD está livre do mesmo mal ou está certo na (der)rota que está a desenhar para Portugal.
Há muitas maneiras de estar errado.

As práticas económicas dos bancos de “investimento” que vivem da especulação e do ataque cerrado às economias frágeis e expostas, na mira exclusiva do lucro a (literalmente) qualquer custo (para os outros, isto é, nós), estas práticas não são “O Capitalismo”. São apenas uma forma perniciosa e infestante de prática capitalista. Metê-la no mesmo saco de outras práticas de capitalismo, pretendendo que todo o capitalismo é selvagem e esquecendo o desenvolvimento que ele trouxe, resulta no mesmo erro ou falácia de meter no mesmo saco a Marcha da Morte imposta aos seus prisioneiros pelos japoneses, a prova atética radical da Ultra-Maratona ou uma peregrinação a pé pelo Caminho de Santiago...

Sou pelo Capitalismo — mas não este, ruinoso.

sábado, 16 de março de 2013

A cegueira ideológica

[Republicação de um post meu no Facebook, datado de 9 de setembro de 2012.]

A cegueira ideológica


cegos guiando cegos

Pieter Brueghel, the Elder (1525/30–1569):
«The Parable of the Blind Leading the Blind»


Anteontem [7 de setembro] perguntei-me se a adopção de tais medidas de austeridade*, tão clara e obviamente erradas, era sinal de ignorância do Governo (do nosso Primeiro e do seu adjunto, sem dúvida — mas a mesma desculpa não é aceitável nos ministros das Finanças e da Economia...), se sinal de que os membros do Governo e quem os assessora querem é «a porra deles direita», estando-se nas tintas para o país e a generalidade dos seus cidadãos.

Ontem cheguei à conclusão de que, verificando-se sem dúvida em parte as duas possibilidades anteriores (ignorância e interesses pessoais), há um terceiro factor a considerar, por ventura (ia dizer «por certo») mais importante: a cegueira ideológica.

O Governo do PSD (e o de Merkel, e muita gente em Washington, com particular ênfase para os Republicanos) fez o que fez, não apenas por ignorância (que, sem dúvida, grassa), nem apenas porque a sua verdadeira preocupação são os interesses dos seus verdadeiros patrões (as grandes empresas para onde irão quando deixarem o Governo), o que também é um facto a considerar — mas porque a sua ideologia (limitada e simplista) lhes diz que é assim que as coisas se fazem, e não interessa que a realidade contradiga os “artigos de fé” da ideologia: os dogmas são intocáveis.

A cegueira ideológica conduziu o bloco soviético à ruína: o sistema económico marxista-leninista não funcionava, mas insistiram no erro do dogma. A Direita empenha-se agora em mostrar-nos que também consegue avançar intrepidamente sob o efeito de cegueira semelhante: tal como os soviéticos à esquerda, a Direita actual conduzir-nos-á ao arrepio da realidade, até cairmos pelo precipício económico-social. Que caiamos pela direita do precipício e não pela esquerda, pouco interessa. Cairemos na mesma, a queda acelerada por levarmos atada ao pescoço a bigorna do dogma (a que eles, na sua cegueira, chamam «pára-quedas»).


Inspirado por este longo, mas interessantíssimo, artigo: «Bill Black: New York Times Reporters Need to Read Krugman’s Columns» (em inglês).


P.S. O editorial de hoje (16 de março) de André Macedo (Dinheiro Vivo) arrasa as políticas económicas deste Governo, «o falhanço estrondoso de Gaspar». No ponto 4, Macedo refere-se precisamente à «cegueira ideológica» subjacente. Recomendo vivamente todo o artigo.


* As propostas de alteração à TSU, medida abandonada após a oposição popular manifestada a 15 de setembro.

sexta-feira, 15 de março de 2013

O Escritor
(conto de microcontos)

(Resgatado do baú da memória pela leitura do post “Necessidade e contingência”, do José Ferreira Borges.)

1

Queria ser escritor.
Não tinha disciplina nem profundidade para o romance. Não tinha objectividade para a novela. Não tinha relevância para o conto. Não tinha poder de síntese para o microconto. Fora isso, não lhe faltava nada.
Nem sequer o Moleskine.


2

Queria ser escritor. Desse por onde desse, seria escritor.
Tentara o romance, tentara o conto — nunca acabara nada.
Tentara, em desespero de causa, o microconto — nenhuma ideia surgira.
Um dia, uma súbita inspiração: abriu o Moleskine e, de rajada, escreveu um ponto final.


3

A publicação de “.” apanhou a cena literária e o mercado livreiro de surpresa.
Em pouco tempo a sua obra inaugural arrebatava os tops de vendas. No final do ano a crítica foi unânime em elegê-lo como escritor-revelação. Era a nova coqueluche literária: não havia epígrafe em que não figurasse, não havia curso de escrita criativa que não o glosasse, nem dissertação de mestrado ou tese de doutoramento que não o citasse.
Era também terrivelmente plagiado. Mas aprendeu, estoicamente, a resignar-se.


4

À surpresa seguiu-se a certeza: contra todos os medos e maus agoiros, as obras seguintes confirmaram o fulgor e a frescura do Escritor. E não só como ficcionista, mas também nas vertentes de investigador e pensador crítico do nosso mundo: da sátira (“þ”) à Economia (“$”, “£”, “€”, “¥”...), passando pela Matemática (destaque para a diversas vezes reimpressa trilogia “>”, “<” e “=”), o seu contributo foi tudo menos irrelevante.
De facto, a sua primeira incursão pelo ensaio — “?” — tornou-se rapidamente leitura obrigatória nos mais prestigiados cursos de Filosofia (sucesso que se estenderia ao mundo hispano-falante depois da publicação de “¿?”, edição «revista e aumentada» cuja responsabilidade de tradução para o castelhano o Escritor chamou inteiramente a si). Anos depois, por pressão de alunos que se queixavam da exigência de tal obra de leitura integral, alguns cursos — à semelhança, de resto, do que já se passava em todas as faculdades de Teologia — adoptariam o menos inquisitivo e mais assertivo “.” (não confundir com a obra de ficção homónima, do mesmo autor). E, num exercício próximo da heteronímia, ou sinal de obsessão pelo contraditório, publicaria quase em simultâneo, sob nome suposto, “;”, uma refutação implacavelmente sardónica de “.” (referimo-nos ao ensaio, naturalmente).


5

Já num campo mais marginal, foi internacionalmente aclamado como «ground-breaking» o psicadélico “Ctrl+Alt”, também descrito como «o único digno sucessor de “The Doors of Perception”».
E, claro, como esquecer “æ” e “œ” («duas obras-primas da literatura erótica», chamaram-lhes), ou os muito mais polémicos “§” e “¶” (cuja temática homo-erótica ditou a sua remoção de muitos escaparates)?
Só não vingou na poesia. O manuscrito de “!” foi considerado «de um débil e inflacionado “sentimentalismo” poético» pelo único editor que contactou; o balde de água fria retirou-lhe o ânimo para novas tentativas.


6

Radicalmente anti-elitista, não desprezou os ditos “géneros menores”.
Foi com total desassombro que trouxe à luz do dia “—”, livro de auto-ajuda (subcategoria, autoconhecimento) que, à venda em todas as estações dos Correios, pôs meio país a falar com o seu Eu interior. (Pela mesma editora, o manual de yoga “&” foi apenas um sucesso relativo.)


7

Um dia atribuíram-lhe o Prémio Nobel. Polida mas irredutivelmente, recusou: as solicitações sociais de um laureado eram «too time-demanding».
E o que ele queria mesmo era escrever.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Um pequeno passo para nós, um grande salto para as Finanças portuguesas

Ora aí está. No dia em que inaugurávamos oficialmente o blogue Iniciação ao Tédio, Portugal regressava aos mercados. Soubéssemos nós que era assim que a coisa funcionava, tínhamos tratado disto mais cedo.

'Opinion making' de mão na anca: «Regressar aos mercados é bom, e tal... mas esta roupa não se lava sozinha.»