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sábado, 12 de novembro de 2016

O actor e a contra-regra:
Pedro e Mónica na Terra da Carochinha

A versão de Pedro Dias, alegado homicida de Aguiar da Beira, tem tantos buracos, que até estou a pensar substituir o escorredor de alimentos...

13:30
— O Pedro conhecia os agentes da GNR que o abordaram?
— Não, senhora. Não os conhecia de modo algum.
— Nem nenhuma das pessoas que aparecem nas notícias como suas vítimas?
[Pedro Dias olha de relance para a advogada, Mónica Quintela.]
— Não, senhora.
— Mas esteve com elas todas...
— Não.

08:12
— E não sequestrou pessoas?
— De maneira nenhuma. Essas pessoas até o relógio me emprestaram.
— E não roubou carros a essas pessoas?
— Não, pedi o carro emprestado.

18:38
— Nunca roubou?
— Não... Hã, roubei... Roubei meio frango de uma arca de um amigo meu, conhecido.
— De um amigo...?
— De um amigo. Que não soube que eu lá estive.

07:11
— O que é que a sua família soube, até hoje, sobre si? Nestas últimas quatro semanas.
— Nada, absolutamente nada. Não consegui comunicar com ninguém.
— Não o ajudaram? Foi dito várias vezes que o Pedro tinha sido ajudado.
— Coitados, como é que me ajudavam?! [...]

Ou seja, os familiares (que ele próprio reconhece que o amam) e os amigos nunca o ajudaram, mas as duas vítimas de agressão (espancadas, estranguladas, amordaçadas e atadas) da aldeia de Moldes, que nem sequer o conheciam, emprestaram-lhe o carro com que fugiu para Vila Real, e até o relógio de pulso! E tudo isto, apesar de que não só Pedro Dias não as conhecia, como nem NUNCA sequer esteve com elas... Há bons samaritanos!

06:13
— O Pedro Dias está em fuga desde o dia 11 de Outubro, é suspeito do homicídio de duas pessoas e de ter baleado outras três — assume a autoria destes factos?
— O senhor agente da GNR [baleado, mas que sobreviveu] terá certamente mais a dizer sobre o que me fizeram do que eu terei a dizer sobre isso...
— Mas assume a autoria desses homicídios ou não?
— De maneira nenhuma.

11:12
— Para clarificar, o Pedro está a dizer-me que não matou ninguém, não roubou ninguém, não sequestrou ninguém, e que mesmo assim esteve em fuga quatro semanas...
— Sim, não fiz nada do que me acusam até agora.
— Nenhum destes crimes praticou?
— Nenhum desses crimes.
— Portanto, está a afirmar-nos com convicção que se sente um homem inocente.
— Sinto-me um homem inocente, com vontade de defender a minha honra.
— E sente alguma motivação para ter sido perseguido? Como é que justifica, então, que um homem inocente possa ser perseguido?
[Pedro Dias levanta os olhos para a advogada, que lhe sussurra, quase imperceptivelmente: «O GNR...»]
— O senhor GNR poderá facilmente responder-lhe a isso...

13:30
— O Pedro conhecia os agentes da GNR que o abordaram?
— Não, senhora. Não os conhecia de modo algum.

17:18
— Fui ameaçado [com o mandato de busca europeu] logo no primeiro dia, quando me telefonaram.
— Mas alguém lhe telefonou? Até que horas é que teve o telefone ligado? Com quem é que falou nas primeiras horas?
— Uma senhora sargento, que não lhe sei dizer o nome [Nota: noutra parte do vídeo, Pedro Dias identifica a sargento pelo sobrenome] que me ameaçou de morte, disse logo que eu corria risco de vida. Logo no primeiro telefonema que me fez.
— Recorda-se que horas eram?
— Umas nove e meia da manhã, talvez.
— De dia 11.
— De dia 11.
— E foi aí que decidiu pôr-se em fuga, ou já estava em fuga?
— Estava a caminho da minha família, que é o meu centro, o meu universo.
— E depois dessa chamada...
— E depois dessa chamada, mal recebi essa chamada, dez minutos depois estava a ser baleado no Alto da Freita.
— E foi aí que iniciou a fuga.
— Foi aí que tentei sobreviver.

Ou seja, Pedro Dias não conhecia «de modo algum» os agentes que o abordaram. Apesar disso, os dois agentes (um dos quais foi baleado mortalmente, e o outro com gravidade) «fizeram» algo a Pedro Dias (que saiu ileso, ao contrário dos dois agentes que «fizeram» não sei quê).

Mas, não obstante ter sido alegadamente “vítima” do que dois agentes lhe «fizeram» e de ter sido “testemunha” (presume-se, pois Pedro Dias nega ter sido ele) da morte de um militar da GNR, Pedro Dias não denunciou o crime que “testemunhou” nem o “abuso” que sofreu às autoridades. De facto, começou o novo dia como se nada fosse, estando normalmente a caminho da sua família.

(O argumento de que não fez a denúncia às autoridades por temer a GNR não cola: segundo Pedro Dias, ele não estava em fuga, e só soube que estava a ser procurado pelas autoridades às 9h30, quando foi contactado por telefone — isso apesar de umas horas antes ter “testemunhado” um agente da GNR a ser abatido à sua frente, coisa do mais normal do mundo, certamente.)


Parabéns, Dr.ª Mónica Quintela, faz tudo muito sentido.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Dá Deus ovos a quem não tem galinhas

Isabel dos Santos, prendada filha do presidente de Angola, deu uma entrevista ao Financial Times onde refuta a ideia de que a sua fortuna advenha de “paitrocínios”. Não, segundo a empresária, é tudo resultado de um talento inato para os negócios:

«Tive sentido para os negócios desde muito nova. Vendia ovos quando tinha seis anos.»

Algumas bocas reaccionárias nas redes sociais logo ridicularizaram a afirmação: com que então, a herdeira do Presidente (José Eduardo dos Santos assumiu o cargo quando a filha tinha precisamente 6 anos) saía do palácio presidencial e ia fazer uns biscates como vendedora ambulante?!

Eu, em contra-ciclo, acredito piamente na história do negócio de venda de ovos — aproveitando aqui a oportunidade para, com atraso de quase 40 anos, apresentar a minha solidariedade à criança a quem Isabel dos Santos previamente os roubara.

domingo, 22 de novembro de 2015

Parem de divulgar mentiras sobre o Islão!

Nos tempos conturbados em que vivemos, com muita histeria, muito medo, muita ignorância e muito maquiavelismo, as redes sociais pululam de informação falsa e enganosa.
O fim do Verão e o Outono deste ano foram particularmente férteis em notícias falsas que procuram denegrir os refugiados sírios: com 5% de Photoshop, 50% de puras mentiras e 0% de contexto, eis como manifestações violentas de muçulmanos radicais alemães em 2011 são apresentadas como manifestações pró-Daesh de refugiados sírios na Alemanha em 2015 ou como um ex-combatente anti-Daesh refugiado na Europa foi apresentado como um combatente do Daesh infiltrado na Europa. E estes são só dois exemplos, de entre dezenas possíveis. (Eu mesmo ilustrei a facilidade com que se poderia “transformar” um heróico voluntário português que lutou ao lados dos Curdos do YPG num membro da horda assassina do pseudo-Califa.)

Mas, nem só de desinformação islamófoba, anti-refugiados e anti-muçulmanos, se faz o nosso tempo. Tão ou mais frequente é a desinformação islamófila. E se aquela deve muito à histeria e ao medo, esta deve não menos a uma certa boa-vontadezinha “flower power” ou a um wishful thinking de Padre Américo do like-and-share. E ambas — desinformação islamófoba e islamófila — são alimentadas pela ignorância de muitos e o maquiavelismo de alguns (porque nem todos podem alegar desconhecimento).

Talvez o exemplo mais claro desta desinformação islamófila seja a tentativa desesperada de apresentar o Islão como uma «religião de paz», quando, como deveria ser notório, o Islão foi, logo desde o seu fundador, uma religião violenta: foi o Islão que inventou o conceito de «Guerra Santa»; as Cruzadas, que os muçulmanos não se cansam de apresentar como raiz de todo o seu ressentimento, foram simplesmente o plágio tardio com que os cristãos responderam.

O expoente máximo desse travestismo pacifista é a suposta citação de um famoso versículo corânico, o 32.º da 5.ª Sura:

Se alguém matar uma pessoa, é como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvar uma vida, é como se ele salvasse toda a humanidade.

Digo «suposta citação», porque uma versão um pouco mais honesta seria:

[...] se alguém matar uma pessoa [...] é como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvar uma vida, é como se ele salvasse toda a humanidade. [...]

Notaram a diferença?
Três reticências, apenas — mas, parafraseando Arquimedes, dêem-me reticências suficientes e ponho Hitler a elogiar os Judeus.

Porque a verdade é que o versículo é sempre “citado” com grandes — e importantíssimas — omissões. Os apologistas islâmicos queixam-se frequentemente de que as passagens violentas do Corão (esgrimidas pelos seus opositores) são citadas removendo o contexto e deturpando, assim, a mensagem. De facto, a apologia da violência está frequentemente lá, sem ou com contexto; já o pacifismo é que só se consegue fabricar à custa de muito corta-e-cose.

Invocar o versículo 32 da Sura 5 para demonstrar que o Islão é uma religião de paz (ou «a religião da paz», como dizem alguns muçulmanos mais enfáticos) é o mesmo que ilustrar o génio literário de José Saramago (e o seu pacifismo, o seu patriotismo e a sua arte poética) com “citações” como «amai-vos uns aos outros», «As armas e os barões assinalados» ou «o poeta é um fingidor».
José Saramago escreveu tais coisas? Sim: estão, respectivamente, nas páginas 43, 68 e 114 de O Ano da Morte de Ricardo Reis, edição de 1995. A questão, claro, é que, apesar de constarem num livro de Saramago, todos (espero) sabemos que ele não é o autor das passagens em causa.

Comecemos por desmontar a tese do suposto pacifismo do versículo corânico.

Sendo menos pródigo em reticências, uma citação mais completa seria:

[...] se alguém matar uma pessoa — que não seja em retaliação de homicídio, ou por espalhar a corrupção pela terra — é como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvar uma vida, é como se ele salvasse toda a humanidade. [...]

Esfumou-se o pacifismo: não só o preceito prevê a possibilidade de se matar alguém como sanção pelo crime de homicídio, como a aplicação da pena de morte é alargada ao convenientemente vago crime de «espalhar a corrupção pela terra». Em que consiste tal ofensa capital? Dependendo do nosso imã, do nosso ciber-guru, do nosso autoproclamado Califa ou do nosso ressentimento doentio, pode ser qualquer coisa — desde desrespeitar o Profeta, abandonar o Islão ou professar outra religião ou nenhuma, passando por cometer adultério ou ser vítima de violação, até jantar no Le Petit Cambodge, assistir a um concerto no Bataclan, passar em frente ao Estádio de França, ir ao mercado em Beirute, dormir num hotel em Bamako: viver, existir.

Mas a contrafacção de um pacifismo corânico que não está lá vai mais longe: não só o preceito não é tão pacífico como no-lo querem vender, como nem sequer é certo que, segundo o Corão, ele se aplique aos muçulmanos.

Porque uma citação ainda mais completa e correcta do versículo seria:

Por causa disso, ordenei aos Filhos de Israel que se alguém matasse uma pessoa — que não fosse em retaliação de homicídio, ou por espalhar a corrupção pela terra — seria como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvasse uma vida, seria como se ele salvasse toda a humanidade. [...]

Exactamente: este preceito teria sido ordenado, no passado, não aos muçulmanos (que no Corão são sempre designados «Crentes»), mas aos «Filhos de Israel», isto é aos Judeus.

De facto, a citação supostamente pacifista não é um original do Corão, embora seja citada actualmente como tal: é uma paráfrase de uma passagem do Talmude (concretamente, do Livro do Sinédrio, 37a), colectânea de comentários rabínicos da tradição judaica. (E o autor do Corão enganou-se: a frase consta do Talmude, não da Tora — a Lei de Moisés — ou sequer de outra parte da Bíblia judaica, pelo que é errado dizer que tal foi ordenado por Deus.)

Pior: a subtil diferença nos tempos verbais («matasse», «seria», «salvasse», e não «matar», «é», «salvar») reforça ainda mais a ideia de que, não só o preceito teria sido transmitido aos Judeus (embora eles nem sempre o cumprissem, falha referida no resto do versículo, que não transcrevi), como, agora que Maomé veio pôr os pontos nos is para os «Crentes» (muçulmanos), tal preceito foi ultrapassado, não se aplicando a eles.

Mas então, que preceito se aplica aos muçulmanos, aos verdadeiros crentes? Não é preciso procurar longe, noutras partes do Corão, caindo uma vez mais no problema do contexto: o versículo seguinte (5:33) dá a resposta imediata:

De facto, a pena para aqueles que lutam contra Alá e o Seu Profeta e tudo fazem para espalhar a corrupção pela terra é não outra do que eles serem abatidos [como o gado, isto é, degolados] ou crucificados, ou as suas mãos e pés serem cortados de lados opostos, ou eles serem expulsos da terra. Tal é a sua desgraça neste mundo; e no outro mundo espera-os um grande tormento.

Suscita-vos algumas imagens recentes?...

Que concluir, então, de tudo isto?

Que, se a ignorância grassa no vulgo, não é crível que tal desconhecimento da totalidade do texto e do seu contexto se verifique nos vários clérigos muçulmanos que, ofendidos na sua dignidade (uma especialidade muçulmana), sacam deste “trunfo” em defesa da sua religião.
Claramente, o que lhes falta em humor e em “poder de encaixe” sobra-lhes em sofisticada ironia: o expoente máximo do suposto «pacifismo islâmico» é um grande saco cheio de vento — a citação incompleta da paráfrase desinformada de um texto judaico. Allahu asghar.

sábado, 21 de novembro de 2015

Por que assumi as cores da França,
mas não as do Líbano ou do Mali

Por que razão é que, na própria noite dos ataques de Paris, espontaneamente, alterei a minha imagem de perfil no Facebook para as cores e o símbolo da França (que ainda mantenho e manterei por tempo indeterminado), mas não tive igual gesto relativamente a, por exemplo, o atentado bombista em Beirute ou a mortífera toma de reféns num hotel em Bamako?

Racismo, preconceito — é do que me tentam convencer algumas publicações partilhadas por amigos e por desconhecidos. Há, parece, mortos de primeira, de segunda e de terceira; há até um «mapa mundi trágico» — dizem-me, apontando um dedo acusador, tentando impor-me um sentimento de culpa ou de vergonha.

Se essa é a intenção, falharam redondamente. Porque a verdade é que um mapa mundi trágico — simplesmente, ao contrário do que os autores daquele pensam, esse mapa mundi é pessoal, não é global: cada pessoa tem o seu próprio mapa mundi trágico (e no meu a Nova Zelândia está a vermelho).

Começo por deixar claro que, ao assumir as cores da França, mais do que solidarizar-me com os mortos e as suas famílias, pretendo solidarizar-me com a França.
Porque, se o atentado na França é uma tragédia de dimensão humana (morreu gente, e não foi pouca), é acima de tudo uma tragédia civilizacional: foi um ataque à ideia de França, ao modo de ser e estar na vida do povo francês (e, por extensão, do Ocidente), foi um ataque a uma certa ideia de sociedade aberta, liberal e laica.
Já um ataque ao Líbano ou ao Mali, o que significa para mim, em termos identitários? Nada, admitamo-lo sem medo. Vistos do ponto onde me situo (e sem esquecer as implicações geopolíticas), tais ataques são quase exclusivamente tragédias humanas. E essas — na França, no Líbano ou no Mali —, tendo vitimado (tanto quanto sei) pessoas que desconheço, são-me sempre algo abstractas, não cravam tão fundo as unhas na pele do sentimento.

Dito de outra maneira, a razão pela qual faço “luto” pelos atentados na França, mas não pelos no Líbano ou no Mali, é a mesma pela qual temos direito a licença por luto se nos morrer um irmão emigrado há anos na Austrália, mas não temos igual direito quando morre o vizinho do quinto esquerdo. Ou a razão pela qual vamos ao funeral do nosso ex-professor primário, mas não ao do ex-professor da escola de (digamos) Trigaches, terra cujo quase nada que sabemos se deve à Wikipédia. O que não quer dizer que o ex-professor de Trigaches não mereça um belo funeral, com grande assistência e sentidas manifestações de pesar — da parte de quem o conheceu e dele se sentia próximo. Idem, mutatis mutandis, para o Líbano e o Mali.

Países há muitos, uns mais próximos geograficamente, outros mais distantes — e, mais importante ainda, uns mais próximos culturalmente, sociologicamente, outros mais distantes (tão distantes, alguns, como se de outra galáxia se tratasse).
Há países que nos são irmãos, há outros que são apenas os vizinhos do quinto esquerdo, e há os que são de Trigaches, professores ou não.
Fingir que isso não é assim, assumir as cores do Líbano ou do Mali só para aparentar uma identificação que não se sente, que não se pode realmente sentir, é hipocrisia. Na melhor das hipóteses, é reflexo sem valor, como o da beata que vai aos velórios de desconhecidos por desfastio.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Ignorância e Preconceito

Já pensaram que se, por ignorância ou intencionalmente, eu tivesse escrito «ISIS» em vez de «YPG»...

... eu poderia ter facilmente acusado este voluntário português, que lutou contra o Estado Islâmico, de ser um jihadista sírio?

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Fugir à pergunta
(quem responde ou quem pergunta?)

Uma amiga comentou recentemente um vídeo em que uma conferencista americana da Heritage Foundation (um “think tank” conservador ligado ao Partido Republicano) explica, em termos fortes, por que razão de nada vale invocar a «maioria pacífica» de muçulmanos, quando o que importa é que a imensa maioria dessa maioria se abstém de confrontar — sequer no plano ideológico — a minoria (não tão pequena assim) de radicais, muitos dos quais violentos.

O comentário da minha amiga (e de outros) ia no sentido da «força» e na «falta que faz» esse tipo de resposta. Até que alguém comentou: «Só faltou mesmo RESPONDER À QUESTÃO.»

A questão (de uma muçulmana americana na plateia) era, para quem não viu o vídeo e para quem — como, confesso, eu — se distraiu com a resposta: «Como lutamos uma guerra ideológica com armas? Como poderemos algum dia terminar essa guerra?»

É verdade que a “resposta” da conferencista não respondeu à pergunta. Mas quem abriu a porta a essa mudança de assunto e à não-resposta foi a própria autora da pergunta: ela é que fez um preâmbulo à «pergunta simples», falando nos 1,8 mil milhões de muçulmanos (número exagerado...), da má imagem que eles e o Islão têm, e da falta de representatividade dos muçulmanos na sala. Após desviar assim as atenções da sua «pergunta simples», quem se pode admirar que a intervenção subsequente não seja uma resposta ao que foi perguntado, mas uma réplica àquele preâmbulo?

Fazendo um paralelo, dizer que a pergunta de Saba Ahmed não foi respondida é o mesmo que, perante a seguinte intervenção de um alemão em 1938:

«Como sabe, o nosso amado Führer instituiu recentemente leis com vista a expurgar do Sangue Alemão toda a infecção judaizante. Qual o papel do recém-criado Volkswagen no renascimento do Povo Alemão?»

alguém protestar porque a resposta incidiu sobre a inaceitabilidade das Leis Raciais de Nuremberga e não sobre os méritos ou deméritos do “Carro do Povo”...

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Não brinquem com números, respeitem os deputados!
(Pensando bem, não respeitem — se não merecem.
Mas respeitem os números, esses sim, respeitem sempre!)

No Facebook, um amigo partilhou ontem uma imagem que, segundo quem a postou originalmente, «Não precisa de qualquer tipo de comentário. Está tudo lá escrito.».

Portugal: 230 deputados; Austrália: 150 deputados

Pois, simplesmente não está, de facto, tudo escrito: o autor da imagem “esqueceu” alguma informação, nomeada e convenientemente, aquela que destrói em absoluto a “teoria”, expondo a falácia.

Esqueceu-se, por exemplo, de dizer que o sistema parlamentar australiano comporta duas câmaras: a Câmara Baixa (Casa dos Representantes), com os tais 150 membros, e a Câmara Alta (Senado), com 76 membros. Isto perfaz um Parlamento nacional com 226 membros, quase o mesmo que Portugal (sistema unicameral).

Mas ainda há mais: a Austrália é um estado federal, dividido em 6 estados e 2 territórios. Cada um desses estados/territórios tem o seu próprio Parlamento, que na maior parte dos casos tem duas câmaras. Vejamos:

  • Austrália do Sul: 47 membros da Câmara Baixa (CB) + 22 membros da Câmara Alta (CA) = 69
  • Austrália Ocidental: 59 (CB) + 36 (CA) = 95
  • Nova Gales do Sul: 93 (CB) + 42 (CA) = 135
  • Queensland: 89 membros (Câmara única)
  • Tasmânia: 25 (CB) + 15 (CA) = 40
  • Vitória: 88 (CB) + 40 (CA) = 128
  • Território da Capital: 17 membros (Câmara única)
  • Território do Norte: 25 membros (Câmara única)

Isto quer dizer que o total de parlamentares na Austrália, entre nacionais e “regionais”, é de 824.

Quanto a Portugal, para além dos 230 deputados nacionais, tem 57 deputados regionais nos Açores e 47 deputados regionais na Madeira. Isto perfaz 334 parlamentares.

Ou seja, o número de parlamentares australianos é quase 2,5 vezes o de Portugal — embora “só” tenha o dobro da população.
(Como diriam os famosos cartazes: não brinquem com os números.)

O problema de Portugal não está no excesso de deputados — mas na sua qualidade. E, já agora, na dos eleitores também.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Einstein, o Bem e o Mal

Vi recentemente um vídeo em que uma criança “ensina” ao seu professor que, tal como não existe a Escuridão (que é só a ausência de Luz) ou o Frio (ausência de Calor), também não existe o Mal, que seria apenas a ausência de Bem. Donde, concluía a criança, contradizendo o professor, Deus não criou o Mal.
A acreditar no vídeo — e os múltiplos apócrifos que circulam pela Internet aconselham a manter um pé atrás —, a criança seria Albert Einstein.

Einstein estava errado. De resto, fora da sua área de especialidade, a opinião de Einstein (ou de qualquer cientista) não goza de especial autoridade.
A verdade é que não há equiparação possível entre Bem/Mal e Luz/Escuridão.

A Escuridão não existe enquanto coisa, de facto; é apenas a ausência de Luz. Mas o Mal existe enquanto coisa (abstracta); não é apenas a ausência de Bem.
Como é que sabemos?
Conseguimos identificar (e até criar) fontes de Luz, isto é, objectos que emitem, espalham e propagam a Luz. Se eliminarmos as fontes de Luz, sobrevém necessariamente a Escuridão. Mas não existem objectos que emitam, espalhem e propaguem a Escuridão. A única forma de “criar” Escuridão é anular todas as fontes de Luz.

O mesmo não se passa com a dualidade Bem/Mal — que, desde logo, é uma falsa dualidade: existe ainda um terceiro termo, Neutro.
Limitando-nos às acções humanas, todos reconhecemos que há quem seja uma “fonte de Bem”: pessoas que ajudam os outros e, em geral, tornam melhor a vida em sociedade. Escolherei, por razões de simplicidade, um exemplo bem actual: definirei como “fonte de Bem” uma pessoa que arrisque a sua vida a esconder alguém que, de outra forma, seria capturado e degolado pelos terroristas do “Estado Islâmico”.
Ora, por muito moralmente errado que seja não fazer nada perante uma atrocidade, existe uma enorme diferença entre ficar passivo (olhar para o outro lado, fingir que não se vê, tentar passar despercebido) e participar activamente nas atrocidades e injustiças. Assim, o cidadão que nada faz e segue a sua vida não pode ser metido no mesmo saco do sociopata que degola “infiéis” ou do líder que lhe dá ordem para tal.
Por outro lado, enquanto anular todas as fontes de Luz resulta inevitavelmente em Escuridão, anular todos os actos de altruísmo não resulta necessariamente em atrocidades. Voltando ao nosso exemplo, não esconder “infiéis” não resulta inevitavelmente no degolamento destes: os “infiéis” não têm uma tendência natural para aparecerem degolados, estilo combustão espontânea; se os deixarmos em paz, em geral mantêm a cabeça agarrada aos ombros. Aqueles que acabam degolados tiveram que se cruzar com um agente sem o qual o degolamento não ocorreria. Se definirmos a degola de pessoas como um Mal, então o agente que a praticou é uma “fonte de Mal”.

Quer isto dizer que existem tanto “fontes de Bem” como “fontes de Mal”. Donde se conclui que existem, enquanto conceitos abstractos (concretizáveis em acções), tanto o Bem com o Mal.

Einstein estava errado. Mas, claro, Einstein tinha desculpa: não só ele não era filósofo como, naquela idade, sendo criança, nem sequer era físico, pelo que não compreendia bem a diferença entre a Física e a Moral.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Patranhas à Moda do Porto

Vejo no Público online uma notícia sobre os supostos 600 anos das Tripas à Moda do Porto e penso: apesar de não serem publicações científicas, os jornais deviam fazer um esforçozinho de não se limitarem a propagar histórias da carochinha. A tradição de que as Tripas à Moda do Porto estão ligadas à conquista de Ceuta não passa de um mito.

O formato (não a temática concreta) do mito das tripas é típico, encontrando-se em muitos pontos do país: para enobrecer uma tradição local — seja uma romaria, uma procissão ou, no caso do Porto, uma receita culinária —, a tradição ou algum “etnólogo” militante inventa uma patranha patriótica, ou, pelo menos, uma história que temporalmente coincida com um momento importante (positiva ou negativamente) da história de Portugal: Batalha de Ourique, Aljubarrota, Ceuta, chegada à Índia, descoberta do Brasil, domínio filipino, Restauração, Terramoto de 1755, Invasões Francesas... Desta forma, mesmo que por mera coincidência temporal, a humilde tradição local é dignificada: já não é relevante apenas para as gentes da aldeia (ou, neste caso, da cidade do Porto) — é, de alguma forma (e, no caso das tripas, de uma forma clara), relevante para todo o país.

A verdade sobre a origem das Tripas à Moda do Porto é muito mais simples — e muito mais humilde. É também bastante clara.

Durante séculos, as únicas pessoas que comiam regularmente carne eram as classes abastadas: nobres, média e alta burguesia, algum clero. O resto da população era, por ausência de alternativas, basicamente vegetariana. Mesmo os servos que criavam os animais domésticos não os comiam: a carne era para os seus senhores.
(É por isso que, em inglês, palavras como “cow”, “calf”, “sheep”, “pig” e “deer” — designando os animais vivos — são de origem anglo-saxónica, enquanto palavras como “beef”, “veal”, “mutton”, “pork” e “venison” — designando a carne desses animais — são de origem francesa: após a conquista normanda, só os senhores feudais normandos — que falavam francês — comiam carne; o servo saxão que tratava dos porcos e guardava as vacas nunca punha o dente num desses animais depois de morto.)

No caso do Porto, a origem culinária das tripas não é menos clara: os criados dos ricos, tal como o resto do povo, não incluíam carne na sua dieta. Até que alguns desses criados pousaram os olhos num subproduto da preparação das refeições dos patrões: as tripas, que iam para o lixo. E eis como, com um pouco de imaginação e tempero, o que estava destinado a ser o desperdício das classes abastadas se tornou o banquete das classes despojadas que para aqueles trabalhavam.

Com o tempo, a fama das tripas foi-se espalhando, chegando inclusivamente à mesa dos ricos. Tal fama, que elevava o prato a símbolo de toda uma cidade, requeria uma origem mais nobre: entra em cena o costumeiro fabricante de patranhas patrióticas (provavelmente apenas nos séculos XVIII ou XIX). Rebusca nos compêndios de História um momento elevado na cronologia nacional (quase de certeza, muito anterior à receita original das tripas) e, como num passe de mágica, voilà! Sai uma historieta edificante, digna de orgulho, pronta a engolir — mais facilmente do que as próprias tripas.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Mil poetas

A Chiado Editora tem uma Antologia de Poesia Contemporânea que reúne cerca de mil autores. Sim, apenas mil. Julgávamos nós que Portugal era um país de poetas e a Chiado, propondo-se antologiar a raça, não encontra mais de mil. Que ineficiência. Que preguiça. Que falta de respeito pela veia pátria. 
Há quem defenda a editora dizendo que o magro número de antologiados se deve ao apertado crivo do antologiador, receoso de deixar a impressão de que ali entrava qualquer transeunte capaz de assinar o próprio nome, mesmo que com erros ortográficos. Receio absurdo, bem se vê, que na verdade conduziu à publicação de uma obra incompleta, pouco representativa da vivacidade lírica nacional.
É certo que o excesso de escrúpulo teve as suas vantagens: não há na antologia senão Homeros. O escasso número de autores assegura ao leitor o mesmo conforto que teve o organizador: em colectânea peneirada com tal minúcia é virtualmente impossível encontrar um poema mau.
A opção elitista da editora tem naturalmente desvantagens comerciais (o que dá uma certa nobreza abnegada à empresa, é de reconhecer). Sabendo-se que os leitores portugueses, na hora de comprar, são movidos sobretudo pela cumplicidade estética, pela afectividade intelectual e pelos laços literários que mantêm com os autores, está bom de ver que se venderão uns meros seis ou sete milhares de exemplares da antologia quando se poderiam vender pelo menos sessenta mil, se se multiplicasse por dez o número de antologiados. Reflectindo, aliás, mais verosimilmente a contemporânea arcádia lusitana. Dez mil poetas lusos* é o mínimo que uma antologia que se preze deve às letras portuguesas.

* De longas barbas e de braço dado a cantar eurovisivamente, à grega, “Good bye, my love, good bye”.

P.S.: Entre o Sono e o Sonho é o título da antologia da Chiado Editora. Entre o sono dos leitores e o sonho delirante dos autores, presumo.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O Brecht dos bons observadores

Observador é uma bela ideia na imprensa portuguesa: junta num mesmo antro uma quantidade jeitosa de situacionistas. Torna-se mais fácil evitar a seita quando sabemos onde ela se acoita e é também mais simples mantermo-nos actualizados (basta um clique) quando, enquanto verdadeiros democratas, procuramos a nossa dose higiénica de contraditório. (Na verdade, não é bem isso que ali se procura, não vale a pena sermos generosos — nem escondermos a nossa compulsão pornógrafa.)

Numa das produções recentes daquela folha online lemos de um tal Mário Amorim Lopes: 
«Quando financiamos uma peça de Brecht de um qualquer encenador que jura que a cultura deve ser financiada por todos nós, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. E sacrificar a vida de uma criança é um preço demasiado elevado a pagar.»*

O parágrafo é todo um programa — e de uma subtileza antológica. Imagine-se que o rapaz escolhia outro dramaturgo; por exemplo, um daqueles gregos um pouco menos odiados pela direita Observadora: Sófocles, Eurípedes. Ou o inglês Shakespeare. O sofisma teria um impacto diferente. Aqui e ali, um ou outro velho conservador torceria a sua penca, sentado em frente às prateleiras de bom carvalho da biblioteca do solar. Um clássico grego é um clássico, raios, e Stratford-upon-Avon não é assim tão longe de Oxford. Há sempre uma criança que se pode sacrificar para salvar os clássicos, como sabia Churchill. Com dramaturgo de outra família literária, o voluntarismo do neófito seria remetido para a gaveta das inanidades próprias da juventude. Mas ele soube jogar em terreno seguro e lá colheu as suas palmaditas nas costas.

Jogou aliás tão pelo seguro que usou para sofismar esse democraticamente odiado universo da performance teatral. Imagine-se que ele tinha dito, por exemplo, quando financiamos uma apresentação da 9.ª Sinfonia de um qualquer maestro que jura que Beethoven é património da humanidade e a sua interpretação deve ser financiada por todos nós, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vidaHaveria por certo chatice da próxima vez que o avô descesse à capital para a sua ida sazonal ao S. Carlos.
Ou imagine-se que Amorim se atrevia ainda mais, num acto de verdadeira rebeldia juvenil (hipótese meramente académica, já se sabe), e saía para outros campos semânticos: quando financiamos uma empresa que paga impostos na Holanda, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. Ou, já num assomo de loucura: quando financiamos pornograficamente prémios a gestores, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. E sacrificar a vida de uma criança para enriquecer uma classe não raro incompetente e criminosa que se julga incensada e merecedora de todo o dinheiro que nega aos outros é um preço demasiado elevado a pagar.

Mas não. Quem escreve no Observador não se atreve a boutades divertidas como estas. Os bons conservadores preferem piadas onde se bate sempre no ceguinho do Brecht (aliás felizmente já tão pouco habitual nos teatros quanto decerto o próprio Amorim Lopes).


*A prosa tem um contexto alegadamente racional que pode ser livremente aferido aqui: http://observador.pt/opiniao/quanto-vale-uma-vida/

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Papa “Falácisco”

O Papa Francisco é uma das Pessoas Que Não Sabem Bem Se São Charlie. No segundo seguinte a dizer que «não se pode reagir violentamente», acrescenta que se alguém, incluindo um amigo, «disser um palavrão contra a minha mãe, pode esperar um murro. É normal.»

É pena que aquele que é, de longe, o Papa mais simpático dos últimos 50 anos não consiga manter a coerência por um pouco mais de dois segundos. Mais pena é que a falta de coerência constitua — pecado adicional — uma flagrante falácia. (Bem, não será por acaso que alguém ascende na hierarquia cardinalícia...)

A sua mãe, Sr. Papa, não é (tanto quanto me consta) omnipotente, nem omnisciente, nem omnipresente. Se, quando é insultada, ela não estiver presente, não se pode defender. Quem estiver presente e gostar dela tem obrigação de a defender (embora não necessariamente através da violência física).
Deus, por outro lado, segundo o Papa, está em toda a parte e é todo-poderoso. Assim, se nalguma parte do mundo (que digo? do Universo!) alguém insultar Deus, Deus — como todo-poderoso — tem o (lá está) poder de intervir directamente e tratar do assunto.
Idem para profetas-amados-por-Deus, segundo consta.

Por isso, Sr. Papa, a comparação com insultos à sua mãe é uma falácia.
Já agora, pouco cristã (Mateus 5:39, Lucas 6:29, 1 Pedro 3:9, Provérbios 12:16).

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Notas sobre uma aberração legal

Segundo o Jornal de Negócios, o Governo prepara-se para taxar telemóveis, tablets e todos os equipamentos digitais que possam gravar ficheiros, leia-se: pens e cartões de memória, discos rígidos, CDs e DVDs graváveis, caixas descodificadoras de televisão, etc., etc., etc. O dinheiro assim conseguido será usado para pagar direitos de autor, leia-se: entregar à Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) para que o distribua entre os amigos, segundo critérios que só a SPA conhece.

Esta legislação é uma aberração legal num Estado de Direito.

Taxar direitos de autor num produto, porque «pode» servir para um acto ilícito (armazenar ilegalmente imagens e sons sujeitos a direitos de autor) é uma flagrante inversão do ónus da prova.
Note-se: com tal legislação não estamos sequer no caso, já de si extremamente preocupante, de o Estado se furtar à obrigação de provar que determinado crime foi cometido por Fulano. Não, esta legislação, a ser aprovada, vai mais longe, desce mais fundo no poço autoritário: nem sequer é preciso ter havido crime, o Estado simplesmente pune (através de uma taxa) todo e qualquer adquirente, sob o pretexto de que o produto adquirido «pode» servir para cometer um crime! E usa o dinheiro para “indemnizar” a parte que talvez nem sequer tenha sido lesada.

Para esta aberração legal, é irrelevante que o equipamento adquirido nunca venha a armazenar produtos sujeitos a direitos de autor, ou que o faça legalmente. Eis a “igualdade” em versão Governo/SPA: pagam todos, do justo ao pecador.
No meu telemóvel não há músicas, vídeos só os feitos por mim, fotos só pessoais? Não importa: paga.
No meu PC só há software (gratuito ou cuja licença paguei), ficheiros Excel e afins, algumas músicas ripadas legalmente de CDs que comprei e cujos direitos de autor paguei? Não interessa: paga, paga de novo.
No meu iPod só há músicas compradas no iTunes, pelas quais também já paguei os devidos direitos de autor? Não importa: paga outra vez.
As músicas que tenho, adquiridas legalmente ou da minha própria autoria, não são de qualquer membro da SPA? Não interessa: paga — a SPA agradece.
Mesmo que nalgum do meu equipamento venham a existir produtos sujeitos a direitos de autor não devidamente remunerados, a taxa é cobrada no acto da compra do equipamento, isto é, antes de qualquer eventual crime ser cometido, pelo que a SPA não tem maneira de saber quais os autores lesados (e que, por isso, mereceriam ser compensados)? Não interessa: paga — os caminhos da SPA são insondáveis...

A aberração legal que constitui uma tal taxa sobre um ilícito potencial é mais claramente ilustrada com a aplicação do mesmo critério a outras áreas do comércio e da vida em sociedade:
Que, a partir de agora, todo o cidadão que compre uma faca seja condenado a passar um fim-de-semana na prisão — pois uma faca «pode» ser usada para matar alguém. Não é preciso provar que Fulano é um homicida. De facto, nem é necessário que tenha havido (ou venha a haver) qualquer homicídio. Uma faca tem um potencial homicida, a sua aquisição deve ser punida.

Pensando melhor, nem só de facas vive o homicídio. Há inúmeras maneiras de matar alguém, inclusive só com as mãos. Todo o ser humano «pode» vir a ser um homicida. Coerentemente, a partir de agora, que toda a criança seja à nascença condenada por homicídio potencial!
(Pena a ser cumprida apenas após alcançarem a maioridade — não somos bárbaros, quê!)

domingo, 13 de julho de 2014

Um postal e a falaciosa Aposta de Pascal

postal: «e se de facto DEUS existir?»

Num expositor destinado a folhetos promocionais e afins, na Universidade do Minho, deparo-me com um postal que, remetendo-nos para um site, questiona: «e se de facto DEUS existir?».
O postal não tem remetente, mas a ausência de selo levará o observador sagaz a concluir que terá sido o próprio Criador a fazer o envio: de que outra forma, se não por intervenção divina, teria um postalito desfranquiado chegado ali? (Deus, tal como os craques de futebol e outras majestades, refere-se a si mesmo na terceira pessoa.)

manuscrito no verso: «Paciência!»

No verso do postal alguém deixara já a sua lacónica resposta: «Paciência!»


A questão «E se Deus existe?» foi posta, e respondida, pelo grande matemático e filósofo (etc.) francês do séc. XVII, Blaise Pascal. Dizia ele: Se Deus não existir, é irrelevante se sou ateu ou crente, pois, esteja certo ou errado, nada de transcendental existe; mas se Deus existe e eu for crente, tenho muito a ganhar (salvação eterna), enquanto se for ateu terei tudo a perder (danação eterna). Seguindo este raciocínio, numa espécie de cálculo daquilo a que a teoria económica chama função de custo, Pascal concluía que a melhor jogada era acreditar em Deus. Este “argumento” ficou conhecido como “Aposta de Pascal”.

O problema da Aposta de Pascal é que é uma falácia. De facto, várias falácias.

É, desde logo, uma falácia teológica. Pascal não acredita, de facto, que Deus existe: não tem uma fé no sentido exacto do termo (crença sem provas), nem sequer tem uma convicção fruto de qualquer análise e ponderação das eventuais provas a favor e contra a existência de Deus. A opção pascalina é estratégica, economicista, interesseira. Ora, sendo Deus omnisciente como (em geral) o pintam, esse Deus saberia que a fé e a devoção de Pascal não eram verdadeiras, mas calculistas. Um deus interessado, não na mera aparência, mas no que nos vai na alma (chamemos-lhe assim), condenaria por isso o pseudocrente/contabilista encarnado pelo filósofo francês.

A Aposta de Pascal — e a mentalidade subjacente ao postalito — corporiza também uma falácia lógica, concretamente, uma falsa dicotomia. Se os ateus estão certos (há várias estirpes de ateus, mas por simplicidade centremo-nos nos que negam totalmente a existência de entes divinos), então os crentes estão errados — mas se os ateus estão errados, não podemos dizer que então os crentes estão certos. Não há apenas uma concepção do divino; qual concepção, qual fé, é (nesta situação hipotética) a correcta?
Os ateus até podem estar enganados, mas, simultaneamente, também os crentes: o(s) verdadeiros(s) deus(es) pode(m) ser diferente(s) daquele(s) em que esses crentes acreditam. Há muitas maneiras de estar errado.

Daqui resulta a terceira falácia da Aposta de Pascal: vergonhosamente para alguém cujos contributos na área da Probabilidade lhe deram direito a emprestar o seu nome a uma distribuição, esta é, precisamente, uma falácia probabilística. Há uma tal profusão de concepções do divino (do monoteísmo estrito e do pseudomonoteísmo cristão, em especial católico, passando pelo deísmo e maniqueísmo, ao politeísmo clássico e ao xamanismo, culminando no politeísmo extremo — mais de 300 milhões de deuses! — do hinduísmo), cada corrente de pensamento dividindo-se frequentemente em subcorrentes cujas mútuas diferenças, não raro pentêlhicas, assumem proporções cósmicas, que a probabilidade de a nossa concepção em concreto ser a correcta é, por assim dizer, infinitesimal.
Como afirma Richard Dawkins no livro The God Delusion (erradamente traduzido em Portugal como A desilusão de Deus), todos somos ateus em alguma medida, pois negamos a verdade dos deuses dos outros (na Antiguidade os judeus e os primeiros cristão foram precisamente acusados de ateísmo) — os crentes no Deus judaico-islamo-cristão simplesmente suspendem a sua postura crítica um deus cedo demais...

Se atendermos ainda, como em geral é afirmado, a que Deus (ou o divino) é insondável, transcende o entendimento humano, então devemos ainda considerar a possibilidade de que, apesar da sua espectacular diversidade, nenhuma concepção teológica alcançou arranhar sequer a superfície da natureza divina: podemos estar todos errados!
Esta, de resto, é a suprema falácia teológica (pelo menos das religiões monoteístas mais importantes): ao mesmo tempo que afirmam a inefabilidade de Deus, as religiões digladiam-se, não raro literal e dasapiedadamente, à volta de certezas irredutíveis quanto aos desígnios divinos (o que Deus quer ou não quer, quem ama e quem odeia de morte).

manuscrito no verso: «Se calhar existe, mas é diferente daquele em que tu acreditas e nem sequer gosta de ti!»


O lacónico «Paciência!» no verso do postal despontou em mim um giocôndico sorriso, mas, como se vê por estas linhas, eu tendo a ser mais palavroso. Um milagre fez materializar-se na minha mão a providencial esferográfica com que escrevinhei o meu contributo...

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Charlatanice parlamentar

Alexandra Solnado, autodenominada «terapeuta de almas» e confidente assídua de Nosso Senhor Jesus Cristo (que é o ghost-writer dos livros dela), vai dar uma palestra na Assembleia da República sobre «vidas passadas», no âmbito das Jornadas da Saúde.

Reagindo um pouco a quente, estive quase a dizer no Facebook que a Parlamento não deveria tolerar charlatães — mas então lembrei-me que, se assim fosse, não haveria quem assinasse os decretos e votasse as leis...


Actualização (Público): «Conferência de Alexandra Solnado no Parlamento foi cancelada»

terça-feira, 6 de maio de 2014

Não

Especialistas salientam a dificuldade do cérebro em entender o «não». Daí a vantagem de pensar «Eu sou inteligente» e a nocividade de proferir «Eu não sou estúpido». Estranhamente, Sartre descobriu na raiz daquele advérbio uma estrutura ontológica: o nada, condição necessária do «não», habita o ser, «como um verme». A primeira teoria contradiz a segunda. Ou talvez o cérebro seja um grande «não» — só empenhado em acolher o «sim». Mas tal ideia é francamente absurda. Ou não.

domingo, 13 de abril de 2014

Ai que saudades da «cultura de excelência» do pré-25 de Abril!

Leio no Público que Durão Barroso veio lembrar-nos da «cultura de excelência» promovida nas escolas antes do 25 de Abril.

Senhor Dr. Durão Barroso, não era cultura de «excelência» — era a cultura de «Sua Excelência», era a cultura da exclusão.
A escola pública no Estado Novo não procurava detectar o talento onde quer que ele existisse, levando-o à excelência. A escola pública do Estado Novo procurava perpetuar o statu quo: garantir que os pobres se mantinham calados e sossegados — e pobres, como Deus quis.

A educação, para lá dos quatro anos da Primária (que a falta de fiscalização não garantia, sequer), estava fundamentalmente reservada às classes média e superiores — e nesses tempos a imensa maioria da população não alcançava, nem de longe, o nível da classe média.
Não é que a lei proibisse ipsis verbis o acesso das classes populares a educação suplementar, mas a prática do regime garantia que assim fosse, para todos os efeitos. As poucas famílias de classe mais baixa que conseguiam providenciar uma educação liceal a um dos seus filhos faziam-no com grande esforço, à custa de muito sacrifício: em geral, apenas o filho mais novo, na melhor das hipóteses, teria a oportunidade de prosseguir os estudos, pois era preciso que todos os irmãos e irmãs mais velhos trabalhassem (como moços de recados e marçanos, como criadas de servir e ajudantes de costureira) para que houvesse dinheiro à justa para suportar as despesas dessa escola promotora de «cultura de excelência».

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O meu pai foi um excelente aluno. Poucos meses depois de iniciar a 1.ª Classe, o professor percebeu que ele não só sabia toda a matéria desse ano (já dera duas voltas ao livro), como sabia de facto mais do que os alunos da 2.ª Classe. Homem sábio, passou-o logo para essa turma mais avançada, razão pela qual o meu pai concluiu a Primária em apenas três anos.
Como na altura a escola pública, como é sabido, promovia uma «cultura de excelência», a sua condição social ditaria que não prosseguisse os estudos. O meu avô precisava de um par de braços extra a trabalhar na sua pequena carpintaria e no meio hectare de terreno arrendado que ajudava no sustento das seis bocas da família.

Mais tarde, já com 18 ou 19 anos, o meu pai resolveu tentar fazer, como autoproposto, os exames do 2.º ano do curso do Liceu. Preparou-se autonomamente o melhor que pôde, chegando a pagar, com dinheiro penosamente ganho, umas explicações particulares de Francês.
Quando se tentou inscrever nas provas, foi informado que não bastava pagar a já de si pesada taxa de inscrição: precisava de um termo de responsabilidade.

— Termo de responsabilidade? — perguntou o meu pai.
— Alguém que se responsabilize por si, que afiance que está preparado para realizar os exames. Quem o assina tem de ser um familiar seu com escolaridade superior à sua, ou um licenciado.
— Mas responsabilizar-se por quê? Sou eu que vou pagar a inscrição. Se reprovar no exame, quem é que prejudico para além de mim? Para quê um «responsável»?

Era a «cultura da excelência» a funcionar. O meu pai podia discordar o quanto quisesse, as regras eram como eram. (Ai as saudades...)
Na família, mesmo alargada, não havia ninguém com escolaridade superior à dele. Quanto a um licenciado, não sei se o meu pai não encontrou um que se «responsabilizasse» por ele, ou se recusou a humilhação de procurar um. O resultado foi que não pôde realizar os exames, ficando-se pela escolaridade primária. Tudo em nome da «cultura de excelência», pois claro.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Contas certas

Leio no Notícias ao Minuto que Poiares Maduro, o ministro “meio-Relvas”, disse:

A RTP tem 1.800 trabalhadores e as estações privadas têm 400. Nada justifica uma diferença tão grande. Temos de reduzir os recursos humanos para investir na grelha.

Talvez a RTP tenha mesmo pessoal a mais (provavelmente, tem) — mas pergunto que percentagem dos programas de cada canal é feita com meios próprios e que percentagem é feita por produtoras externas contratadas. E qual o custo total depois de contabilizadas cada uma das componentes (produção interna e contratação externa).

Porque a comparação tem de ser feita desta maneira — vendo o custo total da operação, não a dimensão do quadro de pessoal.

Até pode ser que nessa comparação a RTP saia ainda pior (não faço a mínima ideia), mas é essa comparação que tem de ser feita. Tudo o resto é demagogia. Ou ideologia (o que vai dar no mesmo, dada a estatura moral destes políticos).

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A liberdade de ser e o papel do bobo

Os pobres de espírito e de carácter (e até de inteligência, não pode ser totalmente inteligente quem não percebe o conceito de liberdade individual) hão-de precisar sempre de alguém a quem discriminar, sobre quem fazer recair raivas, preconceitos, frustrações, complexos. A História ensina: mulheres, pretos, judeus, homossexuais… Há sempre um “argumento” de ordem “natural”, “científica” ou “cultural” para negarem ao próximo aquilo de que se consideram legítimos (alguns por direito divino) detentores: a liberdade de ser. É da definição de liberdade global que o direito a ser imbecil, inalienável, tem de se restringir à esfera do próprio indivíduo. Por favor ninguém proponha, neste estádio da civilização, um referendo sobre a possibilidade de as pessoas serem parvas para si mesmas. Direitos humanos não se referendam — e continuamos a precisar de cromos de quem rir. Não os deixemos é legislar, não é esse, historicamente, o papel do bobo.