domingo, 28 de dezembro de 2014
Selfie ou as faculdades paliativas da nostalgia
sexta-feira, 3 de janeiro de 2014
Blasfemando no fim do jogging
No fim da corrida, quando a estrada se ergue em rampa, uma freira pousa o saco das compras para tomar fôlego e enfrentar o pequeno calvário que se lhe apresenta. No último instante, tenho a minha epifania, caio do cavalo e ofereço-me para lhe carregar o saco. Ela aceita e eu, talvez deixando-a a reconsiderar a possibilidade ontológica da bondade, saio a correr rampa acima com o saco na mão. Sinto-me revigorado, capaz de correr a maratona, mas o meu gesto (e o meu fôlego) termina logo ao cimo do outeiro, no paço episcopal. (Talvez não se chame assim, mas de todo o modo, é a casa onde mora o bispo.)
Se fosse escuteiro, suponho que consideraria, inspirado pela doutrina, que a boa acção me garantia uns pontos no ranking celeste, mas na verdade os meus ganhos são desbaratados no imediato. Não evito blasfemar logo ali perguntando-me por que raio o bispo, no seu metafisicamente supérfluo automóvel de luxo, não faz as suas próprias compras. E, já agora, reincido, por que raio tem de morar numa casa apalaçada, servido por um conjunto de obedientes freiras. Ele é o quê? Um novo-rico com tara por serviçais fardadas? Um padrinho da máfia com respeitáveis códigos de honra e de vestuário? Um conservador de velha casta que se passeia no solar de estola pelos ombros, dando palmadinhas nas criadas uniformizadas quando ninguém vê?
Bom, só não atiro com as compras porque suspeito que a pobre e esbaforida freira ficaria chateada (talvez aquilo seja o seu jantar). E porque, na verdade, me sinto verdadeiramente, cristãmente, satisfeito por a ter ajudado.
Talvez Deus me perdoe a heresia — mesmo que a sua classista e machista Igreja não o faça. Em todo o caso, o prazer foi todo meu e da simpática freirinha que, calhando, ainda me reserva uma oração esta noite, tão precisado que ando delas. Saravá.
segunda-feira, 25 de novembro de 2013
A carranca do vizinho
Parque de estacionamento, à espera que o portão se abra. O vizinho chega ao fundo da rampa e o morador recua. O vizinho cruza com o seu automóvel a entrada assim franqueada, passa ao lado do Chevrolet-dos-tesos do morador e nem um gesto de gratidão, nem um meio sorriso de reconhecimento, nem um aceno de cabeça que o faça descer do pedestal de repulsiva sobranceria a que ascendeu. Também costuma, na sua impaciência de ridículo aristocrata, subir a rampa ao mesmo tempo que as pessoas a descem a pé, obrigando-as a colar-se à parede.
O morador recorda-se de o ver no parque, «um advogado e um pastor alemão com o mesmo ar de poucos amigos, ambos sem açaimo». Felizmente que neste jogging arrastado em dia de alma de chumbo são outros os bichos que passeiam. Alguém traz um cão vivaço e curioso. Trocam olhares cúmplices a propósito do bicho e abrem-se sem resistência os sorrisos. Dois perfeitos estranhos cruzam-se e desnudam a alma numa partilha espontânea, despretensiosa, franca, uma repentina felicidade a propósito de nada, um nada que a carranca do vizinho obviamente desconhece e que ao morador faz esquecer a carranca do vizinho pelo resto do dia. Até à hora ritual em que os demónios são convocados para exorcismo. Xô!