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quinta-feira, 2 de julho de 2015

Einstein, o Bem e o Mal

Vi recentemente um vídeo em que uma criança “ensina” ao seu professor que, tal como não existe a Escuridão (que é só a ausência de Luz) ou o Frio (ausência de Calor), também não existe o Mal, que seria apenas a ausência de Bem. Donde, concluía a criança, contradizendo o professor, Deus não criou o Mal.
A acreditar no vídeo — e os múltiplos apócrifos que circulam pela Internet aconselham a manter um pé atrás —, a criança seria Albert Einstein.

Einstein estava errado. De resto, fora da sua área de especialidade, a opinião de Einstein (ou de qualquer cientista) não goza de especial autoridade.
A verdade é que não há equiparação possível entre Bem/Mal e Luz/Escuridão.

A Escuridão não existe enquanto coisa, de facto; é apenas a ausência de Luz. Mas o Mal existe enquanto coisa (abstracta); não é apenas a ausência de Bem.
Como é que sabemos?
Conseguimos identificar (e até criar) fontes de Luz, isto é, objectos que emitem, espalham e propagam a Luz. Se eliminarmos as fontes de Luz, sobrevém necessariamente a Escuridão. Mas não existem objectos que emitam, espalhem e propaguem a Escuridão. A única forma de “criar” Escuridão é anular todas as fontes de Luz.

O mesmo não se passa com a dualidade Bem/Mal — que, desde logo, é uma falsa dualidade: existe ainda um terceiro termo, Neutro.
Limitando-nos às acções humanas, todos reconhecemos que há quem seja uma “fonte de Bem”: pessoas que ajudam os outros e, em geral, tornam melhor a vida em sociedade. Escolherei, por razões de simplicidade, um exemplo bem actual: definirei como “fonte de Bem” uma pessoa que arrisque a sua vida a esconder alguém que, de outra forma, seria capturado e degolado pelos terroristas do “Estado Islâmico”.
Ora, por muito moralmente errado que seja não fazer nada perante uma atrocidade, existe uma enorme diferença entre ficar passivo (olhar para o outro lado, fingir que não se vê, tentar passar despercebido) e participar activamente nas atrocidades e injustiças. Assim, o cidadão que nada faz e segue a sua vida não pode ser metido no mesmo saco do sociopata que degola “infiéis” ou do líder que lhe dá ordem para tal.
Por outro lado, enquanto anular todas as fontes de Luz resulta inevitavelmente em Escuridão, anular todos os actos de altruísmo não resulta necessariamente em atrocidades. Voltando ao nosso exemplo, não esconder “infiéis” não resulta inevitavelmente no degolamento destes: os “infiéis” não têm uma tendência natural para aparecerem degolados, estilo combustão espontânea; se os deixarmos em paz, em geral mantêm a cabeça agarrada aos ombros. Aqueles que acabam degolados tiveram que se cruzar com um agente sem o qual o degolamento não ocorreria. Se definirmos a degola de pessoas como um Mal, então o agente que a praticou é uma “fonte de Mal”.

Quer isto dizer que existem tanto “fontes de Bem” como “fontes de Mal”. Donde se conclui que existem, enquanto conceitos abstractos (concretizáveis em acções), tanto o Bem com o Mal.

Einstein estava errado. Mas, claro, Einstein tinha desculpa: não só ele não era filósofo como, naquela idade, sendo criança, nem sequer era físico, pelo que não compreendia bem a diferença entre a Física e a Moral.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

domingo, 13 de julho de 2014

Um postal e a falaciosa Aposta de Pascal

postal: «e se de facto DEUS existir?»

Num expositor destinado a folhetos promocionais e afins, na Universidade do Minho, deparo-me com um postal que, remetendo-nos para um site, questiona: «e se de facto DEUS existir?».
O postal não tem remetente, mas a ausência de selo levará o observador sagaz a concluir que terá sido o próprio Criador a fazer o envio: de que outra forma, se não por intervenção divina, teria um postalito desfranquiado chegado ali? (Deus, tal como os craques de futebol e outras majestades, refere-se a si mesmo na terceira pessoa.)

manuscrito no verso: «Paciência!»

No verso do postal alguém deixara já a sua lacónica resposta: «Paciência!»


A questão «E se Deus existe?» foi posta, e respondida, pelo grande matemático e filósofo (etc.) francês do séc. XVII, Blaise Pascal. Dizia ele: Se Deus não existir, é irrelevante se sou ateu ou crente, pois, esteja certo ou errado, nada de transcendental existe; mas se Deus existe e eu for crente, tenho muito a ganhar (salvação eterna), enquanto se for ateu terei tudo a perder (danação eterna). Seguindo este raciocínio, numa espécie de cálculo daquilo a que a teoria económica chama função de custo, Pascal concluía que a melhor jogada era acreditar em Deus. Este “argumento” ficou conhecido como “Aposta de Pascal”.

O problema da Aposta de Pascal é que é uma falácia. De facto, várias falácias.

É, desde logo, uma falácia teológica. Pascal não acredita, de facto, que Deus existe: não tem uma fé no sentido exacto do termo (crença sem provas), nem sequer tem uma convicção fruto de qualquer análise e ponderação das eventuais provas a favor e contra a existência de Deus. A opção pascalina é estratégica, economicista, interesseira. Ora, sendo Deus omnisciente como (em geral) o pintam, esse Deus saberia que a fé e a devoção de Pascal não eram verdadeiras, mas calculistas. Um deus interessado, não na mera aparência, mas no que nos vai na alma (chamemos-lhe assim), condenaria por isso o pseudocrente/contabilista encarnado pelo filósofo francês.

A Aposta de Pascal — e a mentalidade subjacente ao postalito — corporiza também uma falácia lógica, concretamente, uma falsa dicotomia. Se os ateus estão certos (há várias estirpes de ateus, mas por simplicidade centremo-nos nos que negam totalmente a existência de entes divinos), então os crentes estão errados — mas se os ateus estão errados, não podemos dizer que então os crentes estão certos. Não há apenas uma concepção do divino; qual concepção, qual fé, é (nesta situação hipotética) a correcta?
Os ateus até podem estar enganados, mas, simultaneamente, também os crentes: o(s) verdadeiros(s) deus(es) pode(m) ser diferente(s) daquele(s) em que esses crentes acreditam. Há muitas maneiras de estar errado.

Daqui resulta a terceira falácia da Aposta de Pascal: vergonhosamente para alguém cujos contributos na área da Probabilidade lhe deram direito a emprestar o seu nome a uma distribuição, esta é, precisamente, uma falácia probabilística. Há uma tal profusão de concepções do divino (do monoteísmo estrito e do pseudomonoteísmo cristão, em especial católico, passando pelo deísmo e maniqueísmo, ao politeísmo clássico e ao xamanismo, culminando no politeísmo extremo — mais de 300 milhões de deuses! — do hinduísmo), cada corrente de pensamento dividindo-se frequentemente em subcorrentes cujas mútuas diferenças, não raro pentêlhicas, assumem proporções cósmicas, que a probabilidade de a nossa concepção em concreto ser a correcta é, por assim dizer, infinitesimal.
Como afirma Richard Dawkins no livro The God Delusion (erradamente traduzido em Portugal como A desilusão de Deus), todos somos ateus em alguma medida, pois negamos a verdade dos deuses dos outros (na Antiguidade os judeus e os primeiros cristão foram precisamente acusados de ateísmo) — os crentes no Deus judaico-islamo-cristão simplesmente suspendem a sua postura crítica um deus cedo demais...

Se atendermos ainda, como em geral é afirmado, a que Deus (ou o divino) é insondável, transcende o entendimento humano, então devemos ainda considerar a possibilidade de que, apesar da sua espectacular diversidade, nenhuma concepção teológica alcançou arranhar sequer a superfície da natureza divina: podemos estar todos errados!
Esta, de resto, é a suprema falácia teológica (pelo menos das religiões monoteístas mais importantes): ao mesmo tempo que afirmam a inefabilidade de Deus, as religiões digladiam-se, não raro literal e dasapiedadamente, à volta de certezas irredutíveis quanto aos desígnios divinos (o que Deus quer ou não quer, quem ama e quem odeia de morte).

manuscrito no verso: «Se calhar existe, mas é diferente daquele em que tu acreditas e nem sequer gosta de ti!»


O lacónico «Paciência!» no verso do postal despontou em mim um giocôndico sorriso, mas, como se vê por estas linhas, eu tendo a ser mais palavroso. Um milagre fez materializar-se na minha mão a providencial esferográfica com que escrevinhei o meu contributo...