sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Lógica “sareca”

O Carlitos, líder derrubado pela nossa revolução infantil, destacava-se no nosso pequeno mundo por ser o habitante do Pátio das Cantigas com mais designações alternativas: para além do diminutivo que sempre o acompanhou e da alcunha de Pinguinhas que lhe foi atribuída nas Piscinas Municipais por ter medo até da água do chuveiro, era principalmente conhecido como Sareco. (Por um curto período, foi ainda o Nugget, por razões que agora não vêm ao caso.)

O percurso etimológico que desembocou na alcunha de Sareco é algo tortuoso e merece ser explicado.

A tasca que viria a ser dos pais do Carlos Sareco pertencera anteriormente a um senhor de nome Acácio, mas comummente apelidado de Passarinho. Mudando a gerência do estabelecimento, o Rui, irmão um pouco mais velho do Nuno, logo promoveu o “trespasse” também do cognome: como a falta de à-vontade não permitia apodar directamente o casal de novos proprietários, a herança onomástica saltou uma geração, para o filho. E assim passou o Carlitos a ser o Passarinho.
(A jogada do Rui foi uma espécie de “preemptive strikeavant la lettre: o Sr. Acácio era padrinho da mãe do Rui, pelo que, a não serem tomadas medidas, não seria de espantar se a alcunha ornitológica transitasse para ele e os irmãos...)
Com o tempo, Passarinho passou a Passareco. Um pouco mais de tempo e a lei da economia ditou o encurtamento da alcunha para Sareco.

As relações entre os putos do Pátio eram em geral amenas. O mais das vezes dividíamo-nos segundo linhas aproximadamente geracionais (os nascidos nos anos setenta, os dos finais da década anterior e, já mais distantes em mentalidade e vivências, os do seu início), com alguma liberdade ou tolerância no convívio entre grupos etários: de quando em vez, éramos convidados para um jogo de Monopólio no sótão do João Luís, onde funcionava o clube a que também pertenciam o Rui e o meu irmão.

Apesar da paz habitual, por vezes, porém, as coisas azedavam; terá sido nestas circunstâncias que, num episódio que ficou famoso, o Rui acertou o passo ao Carlitos.
A violência não passou do muito moderada, eventualmente pouco mais do que uns calduços, mas era ver o Sareco descer as escadas a berrar como um desalmado, prometendo medidas retaliatórias:

— Isto não fica assim! Vais ver, vais ver... Vou dizer à minha mãe e ela vem cá e bate-te!

Detém-se a meio do caminho, vira-se e acrescenta, peremptório:

— E se ela não vier cá, vai lá tu!

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A Morada da Sabedoria

Na passada 2.ª feira, em ambiente de festa à entrada da biblioteca da UTAD, preparava-se o dispositivo para a matrícula dos novos alunos desta Universidade. A equipa era composta por vários estudantes, alguns doutores e professores. Havia um percurso sinalizado por fitas vermelhas e brancas, entre cadeiras e mesas alinhadas e música cuidadosamente seleccionada para o efeito.
Entre outras sonoridades igualmente melodiosas, o Bacalhau Caralho ecoava no hall de entrada do bastião do conhecimento, da arte, da investigação, dos valores académicos e humanistas por excelência.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

O regresso da cantora careca


Ontem e hoje assisti no Youtube a dois regressos: U2 e Sinéad O’Connor. Sendo um genuíno filho dos eighties, não fico indiferente a notícias que se relacionem com gente desta. Mas ouvi com total indiferença a “nova” música dos U2 (indiferença não, um tédio assassino) e com bastante curiosidade a da Sinéad. “Take Me To Church” entusiasma, raios!, apesar do final fraco e de a imagem da cantora, pareceu-me, não ter escapado ao Photoshop, ou ao equivalente em vídeo ou maquilhagem.
Nos últimos anos, sempre que calhava cruzar com Sinéad O’Connor no Youtube, assistia com certo embaraço (e desapontamento) a entrevistas um pouco constrangedoras de uma senhora de meia-idade desnecessariamente gorduchita, notoriamente aborrecida e até ressentida por estar a dar entrevistas ou a apresentar canções, quezilenta, a responder com dissertações esotéricas ou implicativas, desagradáveis, a questões banais sobre a sua música. O anjo que conhecêramos quando adolescentes lamentavelmente desaparecera sob o diagnóstico de distúrbio bipolar que Sinéad um dia revelara de si mesma. A cantora careca — pensava eu, definitivo —, envelheceu mal.
Mas o adulto que agora somos compreende na pele isso de envelhecer e aprecia novos fôlegos do talento, mesmo que breves e isolados, quando os ouve. Era este o meu espírito quando, espevitado pelo vídeo, fui espreitar o álbum completo (“I’m Not Bossy, I’m The Boss”), disposto a perdoar aquilo do Photoshop. Mas eis que, junto com várias outras canções bem inspiradas, no lugar de um anjo caído deparo com uma gloriosa Fénix. (Depenada, é certo — mas neste particular quem esperaria outra coisa?)
Os vídeos de entrevistas e concertos que agora me surgem nos lugares cimeiros do Youtube mostram uma Sinéad O’Connor coberta de hieróglifos e Cristos de Cecilia Giménez, sim, mas de novo elegante, simpática, comunicativa, assertiva, aguerrida, coerente, bem-disposta, exibindo empatia com o público e os entrevistadores. A interpretar com gosto as suas mais recentes canções e a emocionar o público e os voyeurs do tube.
A Wikipedia diz que a cantora já há uns anos tinha desmentido o seu próprio diagnóstico de distúrbio bipolar, mas isto não me parece credível. Por definição, o novo momento da cantora desmente-o, aliás. O que me parece é que, para bem de todos os fãs, finalmente alguém acertou na medicação. Passem a receita ao Bono.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Os homens sobre as mulheres

Noto como intelectuais, escritores e homens afins se assemelham ao cidadão comum no que se refere a considerarem as mulheres uma coisa à parte (ainda que não exactamente, ou não sempre, com um intuito discriminatório).
Quando denunciam a seu espanto, a sua estranheza, a sua admiração, a sua permanente perplexidade com as mulheres parece-me que estão, com frequência, a revelar o quão pouco ou distantemente convivem com a variedade feminina.
Não há isso de as mulheres serem assim ou pensarem assado. As mulheres não são um grupo homogéneo, como os homens o não são. Não são mais agrupáveis entre si do que com homens. É possível agregar pessoas por graus de afinidade psicológica, mas disso não resulta que tenhamos mulheres aqui e homens ali.
Quando Pedro Mexia escreve que «o gosto das mulheres nem sempre é compreensível, mas raramente é infundado» não está (e ele sabe disso) a falar das mulheres, mas de algumas mulheres, daquelas que lhe são próximas, física, intelectual, ou, diria, oniricamente.
Quase tudo o que os escritos masculinos sobre mulheres dizem pode ser aplicado com propriedade — e não necessariamente com promiscuidade — a uma quantidade não desprezível de homens. As mulheres são apenas, tradicionalmente, convencionalmente, o outro mais confortável para a discorrência masculina. (Não raro são o biombo de outro outro, mas isto já é derivar.)
Séculos de confessionalismo masculino sobre as mulheres resultaram nisso a que também se chama poesia, uma espécie de obscurantismo de divã que, em obediência a uma teoria institucional da arte (masculina, naturalmente), foi como arte validado.

O apêndice marital

É tristemente irónico que Siri Hustvedt, escritora de talento, erudição e densidade intelectual, com obra e reflexão sobre preconceito de género, seja apresentada em Portugal como esposa de Paul Auster. Percebo o atractivo comercial da informação, mas, quatro livros depois — o penúltimo intitulado “Verão Sem Homens” e o último versando sobre «os preconceitos que imperam no mundo da arte» — quatro livros depois, perturba que a D. Quixote continue a incluir nas badanas o apêndice marital. Quantos escritores masculinos são apresentados como maridos de não sei quem? Eu, se fosse a Siri Hustvedt, mandava passear a D. Quixote no próximo livro. Se a editora não consegue vender-lhe as obras pelo mérito ou se os portugueses não as compram senão pelo popular marido, não a merecem. E, claro, não a entendem.