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sábado, 21 de novembro de 2015

Por que assumi as cores da França,
mas não as do Líbano ou do Mali

Por que razão é que, na própria noite dos ataques de Paris, espontaneamente, alterei a minha imagem de perfil no Facebook para as cores e o símbolo da França (que ainda mantenho e manterei por tempo indeterminado), mas não tive igual gesto relativamente a, por exemplo, o atentado bombista em Beirute ou a mortífera toma de reféns num hotel em Bamako?

Racismo, preconceito — é do que me tentam convencer algumas publicações partilhadas por amigos e por desconhecidos. Há, parece, mortos de primeira, de segunda e de terceira; há até um «mapa mundi trágico» — dizem-me, apontando um dedo acusador, tentando impor-me um sentimento de culpa ou de vergonha.

Se essa é a intenção, falharam redondamente. Porque a verdade é que um mapa mundi trágico — simplesmente, ao contrário do que os autores daquele pensam, esse mapa mundi é pessoal, não é global: cada pessoa tem o seu próprio mapa mundi trágico (e no meu a Nova Zelândia está a vermelho).

Começo por deixar claro que, ao assumir as cores da França, mais do que solidarizar-me com os mortos e as suas famílias, pretendo solidarizar-me com a França.
Porque, se o atentado na França é uma tragédia de dimensão humana (morreu gente, e não foi pouca), é acima de tudo uma tragédia civilizacional: foi um ataque à ideia de França, ao modo de ser e estar na vida do povo francês (e, por extensão, do Ocidente), foi um ataque a uma certa ideia de sociedade aberta, liberal e laica.
Já um ataque ao Líbano ou ao Mali, o que significa para mim, em termos identitários? Nada, admitamo-lo sem medo. Vistos do ponto onde me situo (e sem esquecer as implicações geopolíticas), tais ataques são quase exclusivamente tragédias humanas. E essas — na França, no Líbano ou no Mali —, tendo vitimado (tanto quanto sei) pessoas que desconheço, são-me sempre algo abstractas, não cravam tão fundo as unhas na pele do sentimento.

Dito de outra maneira, a razão pela qual faço “luto” pelos atentados na França, mas não pelos no Líbano ou no Mali, é a mesma pela qual temos direito a licença por luto se nos morrer um irmão emigrado há anos na Austrália, mas não temos igual direito quando morre o vizinho do quinto esquerdo. Ou a razão pela qual vamos ao funeral do nosso ex-professor primário, mas não ao do ex-professor da escola de (digamos) Trigaches, terra cujo quase nada que sabemos se deve à Wikipédia. O que não quer dizer que o ex-professor de Trigaches não mereça um belo funeral, com grande assistência e sentidas manifestações de pesar — da parte de quem o conheceu e dele se sentia próximo. Idem, mutatis mutandis, para o Líbano e o Mali.

Países há muitos, uns mais próximos geograficamente, outros mais distantes — e, mais importante ainda, uns mais próximos culturalmente, sociologicamente, outros mais distantes (tão distantes, alguns, como se de outra galáxia se tratasse).
Há países que nos são irmãos, há outros que são apenas os vizinhos do quinto esquerdo, e há os que são de Trigaches, professores ou não.
Fingir que isso não é assim, assumir as cores do Líbano ou do Mali só para aparentar uma identificação que não se sente, que não se pode realmente sentir, é hipocrisia. Na melhor das hipóteses, é reflexo sem valor, como o da beata que vai aos velórios de desconhecidos por desfastio.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Não, não sou Charlie Hebdo

Durante uma boa parte da minha vida adulta escrevi textos críticos e satíricos de pendor social ou político. Antes tinha feito cartoon (é verdade), primeiro como argumentista, depois, por desistência do parceiro, também como desenhador. Não eram grande coisa, os meus cartoons, tanto no traço como no humor. Embora aquilo me desse bastante gozo, não sei se haverá algum por que possa sentir qualquer ponta de orgulho. Guardo parte deles na garagem, mas há mais de uma dúzia de anos que não lhes toco. Quando o fizer, provavelmente o papel de jornal desfaz-se-me nas mãos e não me parece triste nem injusto que isso aconteça. Inicialmente assinava-os com pseudónimo, mais por timidez e insegurança (ou por consciência não assumida da sua mediocridade) do que por receio de represálias. Mas em algum momento devo ter percebido (finalmente) que, medíocres ou não, era cobardia não assinar os desenhecos e passei a fazê-lo. O mundo, acertadamente, não se comoveu com o gesto, a Terra não alterou a sua órbita.
Quando passei para as colunas de opinião, em publicações próprias ou alheias, a ironia e a irrisão acentuaram-se. Ganhei os meus primeiros inimigos para a vida, mas quase todos inimigos cordiais e até afáveis, devo dizê-lo.
Por ocasião do III Congresso de Trás-os-Montes e Alto Douro, se não estou em erro, escrevi para o extinto Semanário Transmontano, onde era na altura cronista regular, um texto a ridicularizar sarcasticamente o evento e as suas pretensões e o director resolveu publicá-lo em letra gorda na primeira página. O jornal foi distribuído no Congresso e eu resolvi aparecer no local, com suposta heroicidade, para dar a cara pelas minhas palavras (ou talvez deva dizer honestamente, para recolher os louros pela boutade). De novo com justiça, a nata transmontana ali reunida não deu pela minha presença: não houve vaias, assobios, ameaças à integridade do escriba petulante e traidor. Só o meu ego saiu ferido.
De resto, tirando ocasionais reacções frouxas, a minha intervenção cívica através da crítica e da sátira pareceu-se demasiado a um passeio bucólico pelos bosques. Só a espaços senti ter despertado algum ódio atávico, geralmente vertido em colunitas azedas, algumas convenientemente anónimas, e apenas em duas ocasiões as reacções ao que escrevi traziam implícitas ameaças de consequências. Numa noite de vitória eleitoral de uma facção que eu satirizara nas minhas crónicas, um militante mais eufórico ofereceu-me o seu olhar de pura raiva hooligan e perdigotou palavras de exemplares democraticidade e fair play (confirmando, aliás, involuntariamente, o que eu escrevera sobre a seita, mas isso ele jamais poderia perceber). Pela mesma época, certo figurão resolveu informar uma audiência (não apenas privada, infelizmente para a sua honra) que os meus escritos eram razões suficientes para ele mexer cordelinhos e conduzir-me ao desemprego. Deve ter-se sobrestimado ou arrependido, porque continuei empregado.

É por este triste currículo que me sinto obrigado a confessar ter sentido uma certa vergonha a acompanhar a minha comoção com a morte dos cartoonistas e jornalistas do Charlie Hebdo. A afirmação Je Suis Charlie que pus como foto de perfil no Facebook é sincera na sua solidariedade, mas é simultaneamente cabotina, equívoca. Não, não sou Charlie. Eu não tenho a bravura, a grandeza daqueles homens. Eu não escrevo textos nem faço desenhos corajosos como os daquelas pessoas que morreram em Paris. Eu não vivo a um passo da ameaça terrorista. As minhas actividades e as minhas opiniões não me expõem a perigos quotidianos potencialmente fatais. Poderia passar os dias, aqui neste canto da periferia europeia, a republicar cartoons sobre cretinos e fanáticos muçulmanos, católicos, judeus, hindus e nacionalistas e provavelmente morrer de velhice, cirrose ou de um AVC — não com balas ou bombas.
Mas sobretudo não sou Charlie porque com os anos tenho demasiadas vezes cedido à inércia e à preguiça e deixado de me rir — rir ironicamente, sarcasticamente, ferozmente, acintosamente, publicamente — das pequenas iniquidades e dos pequenos ayatollahs que neste país também frutificam. A minha resolução de ano novo deveria ser a de voltar a rir às gargalhadas com certa regularidade. Enquanto isso não acontecer, vou ali trocar a foto do Facebook por uma igualmente solidária mas menos pretensiosa.

domingo, 25 de agosto de 2013

Baile copular

A churrasqueira no Verão põe uma esplanada e música em colunas. A música que as colunas debitam é muito obviamente destinada a atrair ouvidos emigrantes, convidando-os a gastar parte das suas economias do ano nuns grelhados à maneira. No entanto, de forma menos óbvia, a música que se ouve não está acertada com o repertório pimba actual, há uma décalage, ou talvez uma nostalgia de quem foi emigrante no seu tempo. A estética dominante é a de Linda de Suza, o nacional cançonetismo da diáspora dos setenta, uma ou outra música tradicional. A emoção em vez do trocadilho e da alusão sexual obsessiva. E isso é quase comovente, quase desclassificamos como foleira a música que da esplanada abaixo da janela vem trazer ao nosso próprio jantar pequeno-burguês memórias de romarias e bailaricos, de quando disfarçávamos de subversão a afinal indisfarçável adesão ao ímpeto bailador, o de colar ao nosso um ritmado corpo feminino, na evocação ou antecâmara dos prazeres sensuais que é na realidade o baile*.

* E, no sentido desta exegese, o slow era a antecâmara do sexo tântrico.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O nome das coisas

bebé em frente à bandeira francesa

O debate, em França, sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a adopção por casais homossexuais entrou no quelho da discussão à volta dos nomes das crianças: que sobrenome(s) seria(m) aposto(s) aos nomes próprios dos petizes?

A lei parece seguir no sentido de que os sobrenomes de ambos os membros do casal figurem no nome da criança, pelo que a Direita francesa se levantou em ruidoso protesto à la Diácono Remédios: «Qualquer dia» temos também os nomes das crianças de casais heterossexuais a serem desfigurados com os sobrenomes das suas mães! Sacré Bleu!

O problema, está bom de ver, não é de machismo, non! Nem sequer de conservadorismo, dis donc! Como explica o deputado Marc Le Fur, o problema é que os nomes de origem portuguesa são «frequentemente longos» (culpa da mãe, évidemment). Num país onde palavras como «professor» e «director» não têm feminino, facilmente se conclui que o problema é esse: o pragmatismo francês tende manter os nomes convenientemente breves, pela “poda” do nome da mãe, e assim deverá continuar a ser!

Pela lógica da Direita francesa, «Valéry Marie René Georges Giscard d’Estaing» é um nome «curto» — porque os quatro primeiros são nomes próprios e os dois últimos vieram-lhe ambos do pai («comme il faut»). São também curtos nomes como «Charles André Joseph Pierre-Marie de Gaulle», «Georges Jean-Raymond Pompidou», «François Maurice Adrien Marie Mitterrand», «Nicolas Paul Stéphane Sarközy de Nagy-Bocsa» («Sarközy de Nagy-Bocsa» provêm-lhe todos do pai...) e «François Gérard Georges Nicolas Hollande», só para citar alguns.

Já «Rui Sá do Ó» (em que o Sá lhe vem da mãe...) é um nome um horror de longuíssimo! Zut alors!

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

«Obélus, par Toutatis, redeviens Obélix. Ça urge!»

Gérard Depardieu a vestir o traje tradicional da Mordóvia

Depois de abraçar esfuziantemente Vladimir Putin e de jantar com ele, Gérard Depardieu, já com o novo passaporte russo no bolso, voou para a república russa da Mordóvia, região tristemente famosa pelos campos de concentração do tempo de Estaline e onde ainda hoje o duro sistema prisional russo é o principal empregador. (Nadezhda Tolokonnikova, uma das Pussy Riot, cumpre pena de prisão aqui.)

Na Mordóvia, com o actor devidamente paramentado, foi-lhe oferecido o posto de ministro da cultura. (Os jornais não dizem se Depardieu aceitou, mas como os 13% de imposto sobre os rendimentos são válidos em qualquer parte da Rússia, é pouco provável que o novo súbdito de Putin tenha interesse em passar mais do que umas horas nas franjas da Sibéria...)


Ver assim Depardieu, a fazer triste figura com as prebendas do tirano russo, traz-me à lembrança aquela cena de Astérix e Obélix contra César (1999) em que Obélix, disfarçado de legionário romano (“Obélus”), vai sendo lentamente seduzido pelas ofertas do escroque Lucius Detritus (Roberto Benigni). O problema, claro, é que Gérard Depardieu não é o infantilmente inocente Obélix, nem basta gritar-lhe «Obélus, par Toutatis, redeviens Obélix. Ça urge!» para o resgatar.


Notícia na BBC: