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sábado, 10 de maio de 2014

Memorial da neve

Aos oito anos, memorizei a «Balada da neve» de Augusto Gil. Na altura, colhi das nove quintilhas uma impressão situada entre a ampla nostalgia e a pequena catástrofe. Hoje, examinando o arquivo, reparo que os versos ainda constam. Inteiros. Alvíssimos. Poemas fixados na infância e prolongados no tempo terão, decerto, relevantes efeitos existenciais. Trazer a neve, em redondilha fácil, talvez engendre plácida frieza. Entretanto, porém, inevitável, a memória recolhe outras estrofes — que não batem assim tão levemente.

sábado, 3 de maio de 2014

Na sombra da gaveta

Trata-se de um volume de poesia, já antigo, de autor obscuro. As folhas, por abrir, reclamam espátula. Do frontispício, no entanto, salta um rectângulo intencional, porventura com estatuto de marcador, no qual se lê, escrito a vermelho, o seguinte aforismo probabilístico: «Talvez este livrinho te faça perder o medo de desenterrar teus versos da gaveta.» Mensagens assim ressumam ambiguidade e algum excesso: não sabemos se o poeta confia exageradamente no nosso talento, se desconfia demasiado do seu.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Apenas o eco

Adolescente ainda, li num jornal estes inolvidáveis versos de Fernando Echevarría: «Estamos tão sós como se haver o mundo / fosse o eco somente de o haver.» Nos recessos do inconsciente, devo ter deduzido, na altura, que o mundo se encontrava suspenso entre o ser e o nada. Mais tarde, abordando o soneto que os integra, notei irrelevância ou quebranto nos restantes doze. Há versos nascidos para formarem dísticos intocáveis — e serem o eco irremissível um do outro.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O impulso e a metáfora

David Mourão-Ferreira conclui certo poema aludindo às «espadas de amor» que se cravam «no teu ventre». (Ante)ontem, na Rússia, após discussão sobre os méritos literários da prosa e da poesia, um adepto de poesia esfaqueou mortalmente um apreciador de prosa. No caso do poema de Mourão-Ferreira, adivinha-se facilmente que impulso humano guiou a criação da metáfora. Já no segundo caso — sem sonegar a intervenção de Baco — dificilmente se imagina que desumana metáfora presidiu à concretização do impulso.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Fórmula redentora

Célebres poemas de David Mourão-Ferreira, «Escada sem Corrimão» sintetiza os absurdos da vida, «Ladainha dos Póstumos Natais» analisa os efeitos da morte. Cada um a sua, ambos organizam as duas metades do caos que em herança universal nos coube. Se lhes acrescentarmos o legítimo devaneio, obteremos uma fórmula aparentemente redentora: «Há-de vir um Natal e será o primeiro a trazer um corrimão à escada em caracol» — só que nessa altura já não existirá escada para o receber.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Começo

Fernando Pessoa julgava — ou assim o pensou ao escrever determinado verso da Mensagem — que «todo o começo é involuntário». Mas tal verso deve ter sido involuntário — porque lhe surgiu, dádiva dos deuses, para começo de um poema. A sentença, pressupondo uma leitura providencialista da história, parece colidir com outra, que destaca a livre iniciativa do indivíduo: «Tudo o que é voluntário é começo.» Aceitemos as duas ideias como quem aceita o Universo: todo o começo é contraditório.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Momentos líricos

Um candidato a poeta dá a ler uma composição sua a sazonado diplomata. Embora não aprecie os versos, o auxiliador de talentos esforça-se — talvez inconscientemente — por captar momentos líricos bem conseguidos. Depois dirá ao principiante vate: «Achei sobretudo belíssima a expressão x.» A «expressão x» serviu-lhe de refúgio: cumpriu nela a expectativa estética, não contentável no geral do poema. O aforismo de Lavoisier ganha, neste contexto, outra figura: muito se cria, tudo se perde, nada se transforma.

domingo, 18 de agosto de 2013

Poemas do outro lado

Leio o Parnaso de Além-Túmulo, colectânea de poemas que o médium Chico Xavier psicografou de espíritos de cinquenta e seis vates, incluindo o de Antero de Quental. Chego à conclusão, porventura errónea, de que a alegada existência após a morte, embora preserve algum talento dos poetas, uniformiza estilos, dilui inquietações, impõe clichés. Talvez o «nosso mundo» seja fútil, sombrio, ilusório e tolo. Mas — até prova em contrário — só mesmo «deste lado» é que Antero «interroga o infinito».

ANEXO

Para uma eventual comparação, seguem-se dois sonetos. O primeiro foi escrito por Antero de Quental, naturalmente quando ainda estava vivo. O segundo foi supostamente ditado pelo espírito de Antero (já liberto do cárcere terreno) ao médium Francisco Cândido Xavier, fazendo parte de um conjunto de 19 composições, de igual estrutura, integradas na referida colectânea:


Evolução

Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pacigo...

Hoje sou homem — e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade...

Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.

Antero de Quental

Depois da morte

Depois de extravagâncias de teoria,
No seio dessa ciência tão volúvel,
Sobre o problema trágico, insolúvel,
De ver o Deus de Amor, de quem descria,

Morri, reconhecendo, todavia,
Que a morte era um enigma solúvel,
Ela era o laço eterno e indissolúvel,
Que liga o Céu à Terra tão sombria!

E por estas regiões onde eu julgava
Habitar a inconsciência e a mesma treva
Que tanta vez os olhos me cegava,

Vim, gemendo, encontrar as luzes puras
Da verdade brilhante, que se eleva,
Iluminando todas as alturas.

Francisco Cândido Xavier

quinta-feira, 16 de maio de 2013

O vendedor de metáforas

Vendia metáforas. O pregão esconjurava lugares-comuns: «Metáfora fresquinha!» Cada caixa encerrava, em papel, um exemplo daquela figura de estilo. Certo dia, já fraco o negócio, um cliente, poeta medíocre em busca de fama, recebera uma caixa sem nada dentro. Insatisfeito, voltou-se para o vendedor, erguendo o objecto à altura dos olhos: «Não vejo aqui metáfora nenhuma!» O outro, que o conhecia bem, retorquiu: «Isso não me surpreende.» E, após essa data, optou pela venda exclusiva de ironias.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Desapontamento

Quando criança, ouvi várias vezes um sacerdote dizer, em subversivas homilias, que só os poetas haveriam de «salvar o mundo». Na altura, eu achava a ideia irrepreensível. Hoje, porém, árido e prosaico, julgo que o que necessita de ser salvo, neste contexto, é a expressão «salvar o mundo»: falta-lhe a redentora nitidez. Como se tal não bastasse, inúmeros são os poemas que me reconduzem ao tédio e devolvem ao bocejo. O padre, esse, já morreu. Foi assassinado.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Os veículos do Parnaso

Condutores que apreciassem versos podiam alugar «veículos do Parnaso». Tratava-se de carros que seguiam à frente e cuja retaguarda exibia um ecrã onde surgiam estrofes ajustadas à preferência de quem solicitara o serviço. Em tal circunstância, a velocidade máxima permitida era menor que a expressa na lei geral, pelo que o exercício ajudava a reduzir os índices de sinistralidade. Verificavam-se excepções quando o leitor, ao volante, confundindo o literal e o metafórico, resolvia entrar dentro do poema.