sexta-feira, 8 de maio de 2015

Patranhas à Moda do Porto

Vejo no Público online uma notícia sobre os supostos 600 anos das Tripas à Moda do Porto e penso: apesar de não serem publicações científicas, os jornais deviam fazer um esforçozinho de não se limitarem a propagar histórias da carochinha. A tradição de que as Tripas à Moda do Porto estão ligadas à conquista de Ceuta não passa de um mito.

O formato (não a temática concreta) do mito das tripas é típico, encontrando-se em muitos pontos do país: para enobrecer uma tradição local — seja uma romaria, uma procissão ou, no caso do Porto, uma receita culinária —, a tradição ou algum “etnólogo” militante inventa uma patranha patriótica, ou, pelo menos, uma história que temporalmente coincida com um momento importante (positiva ou negativamente) da história de Portugal: Batalha de Ourique, Aljubarrota, Ceuta, chegada à Índia, descoberta do Brasil, domínio filipino, Restauração, Terramoto de 1755, Invasões Francesas... Desta forma, mesmo que por mera coincidência temporal, a humilde tradição local é dignificada: já não é relevante apenas para as gentes da aldeia (ou, neste caso, da cidade do Porto) — é, de alguma forma (e, no caso das tripas, de uma forma clara), relevante para todo o país.

A verdade sobre a origem das Tripas à Moda do Porto é muito mais simples — e muito mais humilde. É também bastante clara.

Durante séculos, as únicas pessoas que comiam regularmente carne eram as classes abastadas: nobres, média e alta burguesia, algum clero. O resto da população era, por ausência de alternativas, basicamente vegetariana. Mesmo os servos que criavam os animais domésticos não os comiam: a carne era para os seus senhores.
(É por isso que, em inglês, palavras como “cow”, “calf”, “sheep”, “pig” e “deer” — designando os animais vivos — são de origem anglo-saxónica, enquanto palavras como “beef”, “veal”, “mutton”, “pork” e “venison” — designando a carne desses animais — são de origem francesa: após a conquista normanda, só os senhores feudais normandos — que falavam francês — comiam carne; o servo saxão que tratava dos porcos e guardava as vacas nunca punha o dente num desses animais depois de morto.)

No caso do Porto, a origem culinária das tripas não é menos clara: os criados dos ricos, tal como o resto do povo, não incluíam carne na sua dieta. Até que alguns desses criados pousaram os olhos num subproduto da preparação das refeições dos patrões: as tripas, que iam para o lixo. E eis como, com um pouco de imaginação e tempero, o que estava destinado a ser o desperdício das classes abastadas se tornou o banquete das classes despojadas que para aqueles trabalhavam.

Com o tempo, a fama das tripas foi-se espalhando, chegando inclusivamente à mesa dos ricos. Tal fama, que elevava o prato a símbolo de toda uma cidade, requeria uma origem mais nobre: entra em cena o costumeiro fabricante de patranhas patrióticas (provavelmente apenas nos séculos XVIII ou XIX). Rebusca nos compêndios de História um momento elevado na cronologia nacional (quase de certeza, muito anterior à receita original das tripas) e, como num passe de mágica, voilà! Sai uma historieta edificante, digna de orgulho, pronta a engolir — mais facilmente do que as próprias tripas.