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segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A necessidade de flanar

Algumas ruas aqui em volta fazem-me por estes dias lembrar Roma, a caminho do Trastevere. Nada nas ruas sem Tibre nem classicismo desta cidade se parece a Roma, excepto as coloridas folhas de plátano coladas ao chão pela chuva. Mas é de Roma que me lembro ao contemplar o que o Outono fez às folhas. O que me teria sucedido de interessante ali, se descontarmos estar desobrigado de horários e compromissos?
O caminhar à noite pela margem esquerda do rio, indagando abstraidamente a corrente rápida e acastanhada, o cruzar a Ponte Fabricio com vaga e preguiçosa curiosidade estética e histórica não estavam balizados por nenhum prazo ou ânsia, não tinham nenhum objectivo que não fosse descobrir algures, sem urgência, uma taberna simpática com preços módicos. E percebo que é isso o que de importante me aconteceu em Roma. Isso, essa suspensão do tempo, do trabalho, da existência social mesmo que misantropa, esse interlúdio da vida quotidiana que deambular por uma cidade estrangeira pode significar.
Há um prazer, uma leveza, um sentimento de eternidade quando se vagueia por uma cidade sem pressa nem destino nem desejos nem gente conhecida. Não é talvez de Roma que me lembro, mas de flanar por uma cidade atapetada de folhas no fim do Outono. Não é de Roma que tenho saudades (que patético seria reclamar-me saudoso de uma capital de fim-de-semana), mas daquela versão de mim que não tinha agenda.

Descubro que sou, por aspiração (e julgo que natureza íntima), uma espécie de flâneur. Um flâneur rústico, pelo menos provinciano, mas um flâneur. Fui-o quando saía de fim-de-semana da tropa e tinha de queimar horas entre estações de Lisboa ou do Porto. Fui, então, um flâneur do Cais do Sodré a Santa Apolónia, de S. Bento a Campanhã, fazendo grandes desvios pré-baudelerianos (no sentido de inconscientes de si), preferindo calcorrear horas a fio as cidades do que passar o tempo de espera em bancos frios e sujos de apeadeiro ou em cafés para cuja cerveja não tinha dinheiro. Fui um flâneur à maneira torguiana (figura que, contudo, me não desperta interesse), pisando em todas as oportunidades o saibro dos caminhos e escalando as rochas dos montes. Fui, a espaços, com certa pretensão walterbenjaminiana, digamos, um flâneur à medida das pequenas terras onde vivi ou procurando erguer-me ao tamanho de algumas das que visitava.

Mas só hoje, ao regressar a casa e aos deveres, ao olhar com nostalgia este tapete de folhas nesta terra que não é Roma, percebo mais intensamente que a felicidade talvez seja não aceitar na vida mais do que solas de sapatos e bilhetes low cost.

Algo que na verdade já devia ter intuído quando em Bruxelas me pus, não sem embaraço, — como aqueles fãs que vão a Paris visitar o túmulo de Jim Morrison — à procura dos sítios por onde andou o narrador flanante de Cidade Aberta, de Teju Cole. Não era uma emulação ou uma excentricidade constrangedora das que por vezes me assolam — era, freudianamente, uma acusação e um apelo. 

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Coisas que não anoto no moleskine (2): em Mainz

Recordo assim de repente Mainz como cidade irmã de outras imaginadas onde o adro fronteiro à gare se reveste de uma anarquia lânguida, vagamente ameaçadora ou repulsiva. Bandos esfarrapados de punks, com as suas repas coloridas e hirtas, chocalhavam quando ali desembarcámos correntes de forçados e constituíam uma pequena multidão de rebeldes ociosos, espalhados no lajeado cinzento e sujo como focas gordas ou tartarugas trazidas pela maré com o lixo a uma praia vulcânica. Sentados ou recostados como romanos em orgia, bebiam e derramavam as suas cervejas enquanto lançavam por rotina insultos aos passageiros que, como nós, ziguezaguevam por entre eles na direcção da paragem de táxis ou dos meandros do centro urbano. Não é um bom cartão-de-visita de uma cidade, mas suponho que ninguém se dá ao trabalho de ir até à Alemanha para acabar a apear-se do comboio em Mainz. O acampamento punk não se monta quotidianamente ali para assediar turistas, creio, mas para chocar os concidadãos burgueses e devotos do trabalho que usam o comboio nas suas idas e vindas diárias para Frankfurt ou para localidades próximas. De resto, a cidade, que até tem os seus encantos, não precisa da estética punk para enjoar os visitantes: tem a cozinha, com salsichas sensaboronas e puré de bata avinagrado, que se serve com um apfelwein menos entusiasmante do que um Fruto Real que tivesse sobrevivido aos anos 80 e decidíssemos por estultícia arriscar beber hoje.

Se contudo o viajante se dá, como nós, ao trabalho de ir até Alemanha para acabar a apear-se no comboio em Mainz, não adianta ir fazer perguntas ao estabelecimento tuga a dois passos da estação: ali deixam de falar português quando descobrem que os entendemos. A alternativa é acreditar no casal simpático que nos aborda mais tarde, vestido para ir ao teatro num fim de dia de Agosto, e que garante ter um quarto vago, se no fim da peça ainda andarmos pelas ruas de mapa na mão e falhos de abrigo. Em Mainz fica-se então a olhar para estoutro cartão-de-visita, um pequeno rectângulo de papel que assegura serem os elementos do casal cientistas numa universidade próxima, e, enquanto se continua a busca por hotel barato, entreolham-se os viajantes perguntando-se se há alemães calorosos ou se um currículo universitário distinto é atributo que os teutões julgam necessitar para seduzir swingers meridionais. Como entretanto escurece de vez naquela parte da cidade com arquitectura vagamente pré-Segunda Guerra Mundial, e como se levanta uma brisa de inquietação e preconceito, os viajantes deixam de se sentir lisonjeados com a ideia de assédio intelectualizado e passam a interrogar-se academicamente o quão sedutor poderia ser Norman Bates para copycats germânicos. A imagem hitchcockiana de uma faca no duche diverte os viajantes — e leva-os a optar por subir um bocadinho a quantia que estão dispostos a despender por um quarto em Mainz. Alojam-se naquele hotel que era antes bom de mais para portugueses temporariamente sem bússola mas permanentemente sem dinheiro, trocando uma aventura literária por um pequeno luxo capaz de aliviar o corpo e a alma. No moleskine anotei o preço do hotel.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Coisas que não anoto no moleskine

Dificilmente poderia viver com a humidade tropical, mas com a chuva e a monção sim. No Vietname usei o tempo todo uma echarpe feminina enrolada e empapada no pescoço e arrastava-me pelo território como um alucinado no deserto, seguro de que se parasse desfalecia ali mesmo. O meu caminhar era como o de alpinistas a 8 mil metros de altitude sem forças, oxigénio e discernimento, mas com aquela motivação ou obsessão prévias que lhes concedem um caminhar de autómato, pondo lenta e lunarmente um pé após o outro, mais como estertores em slow motion de morto do que passadas voluntárias de vivo. Era assim eu naquela latitude, a deslocar-me em linhas rectas entre duas sombras em vez de vaguear turisticamente pela paisagem; a olhar as coisas pitorescas pelo canto do olho enquanto elas iam desfilando a meu lado como noutra dimensão, sem nunca me deter para apreciar pormenores ou comentar particularidades; anunciando com desespero homicida na voz que se parasse para fazer fotos ou me desviasse do caminho da sombra fosse por que razão turístico-imperiosa fosse seria um português suado morto, e não um ocidental vivo enriquecido pela viagem. Descobri que nos trópicos tenho espírito de mula atrelada à nora: caminho porque tenho de caminhar, remoendo pensamentos asininos, obstinados, sem nexo nem finalidade, incapaz de parar depois de me pôr em marcha e impedido pelo jugo tropical de gestos de revolta, de qualquer gesto, aliás, que não seja descolar um pouco a t-shirt do corpo. Mudava de trajectória de vez em quando, é verdade que mudava, se a companhia me reorientava os passos segurando-me pelos ombros como se faz a um bebé ou ao tal autómato com pilhas Duracell e uma versão muito beta de GPS. Por vezes também chocava com postes e paredes, e conseguia inflectir ou contornar o obstáculo com a mesma destreza convulsiva das sondas robóticas em Marte. As primeiras e mais primitivas, que se atolavam à terceira tentativa — não sem o alívio que devem sentir os moribundos finalmente autorizados a fenecer.
Mas é da chuva que queria falar, não de como viro zombie em atmosferas de 30 ou mais graus e 100% de humidade.
Já fui feliz à chuva no Inverno, fazendo jogging ensopado como um náufrago escocês emerso do Loch Ness (e portanto com razões para correr), fazendo trekking com botas encharcadas que emitem barulhinhos ora constrangedores ora estupidamente cómicos como dobragens de filmes porno (mas não suficientemente sugestivos para um escroto alojado em boxers impregnados de chuva e frio), e, se recuar um pouco mais na biografia, também já fui feliz no Inverno chegando como um pito a casa vindo da escola com os pés enfiados em sacos plásticos dentro dos sapatos e pronto para café com leite, torradas, luz de velas e livros de Júlio Verne.
Gosto de apanhar molhas, como se vê, mas como não sou um masoquista indefectível, as minhas melhores molhas são as de Verão. Chuva quente é a minha ideia de Paraíso. Debaixo de borrascas estivais tenho reminiscências do Éden, como se cada cromossoma do meu ADN estremecesse de um prazer herdado de quando a humanidade tinha guelras e dava as primeiras braçadas no aquaworld primordial. Debaixo da chuva de Verão, de virilhas ensopadas, sinto-me feliz, purificado e nu como Adão e Eva. (Não duvidemos que estas figuras bíblicas existiram, só que, ao contrário do que pensa a religião, eram batráquios ou girinos sem nada pudendo a esconder.)
Mas se invoquei o tema chuva foi porque hoje me lembrei, não sei bem porquê, que uma das vezes em que fui feliz estava encharcado até aos ossos na Alemanha. Não encharcado e tremelicante como trabalhador meridional na suja neve teutónica, mas encharcado e esfusiante como vagamundo munido de moleskine e optimismo. Tínhamos descido do castelo de Stahleck, transformado em pousada da juventude e sobranceiro à pitoresca aldeia de Bacharach, por sua vez ancorada à margem do Reno. O Reno é ali o Douro da Alemanha, com os seus curiosos vinhedos de bardos perpendiculares às curvas de nível, mas inebria um pouco mais. Não porque os seus famosos brancos tenham mais teor de álcool, mas porque as suas paisagens urbanas têm menor teor de mau gosto. Fosse como fosse, talvez viéssemos um pouco tocados de Stahleck — tínhamos bebido um copo ou dois enquanto assistíamos a um ensaio da banda da juventude ali hospedada e não nos pareceu loucura caminhar os três ou quatro quilómetros para montante (até ao ancoradouro de onde partia o barco que fazia a travessia para a estação na margem oposta a tempo de apanharmos o nosso comboio para Coblença), mesmo que a chuva começasse a cair com intensidade e os nossos impermeáveis tivessem sido comprados na loja dos chineses que ficava no rés-do-chão do meu prédio em Portugal. Subimos o Reno encharcados e eu feliz, de calções e a chinelar como se a Alemanha ficasse abaixo do Trópico de Câncer, indiferente à distância e à chuva. Recordo-me que fiquei ligeiramente aborrecido quando parou de chover e o barco partiu a horas e vi que o nosso plano se iria cumprir, o que era bom, mas já não, o que era mau, sob uma chuva que aspergia como se os deuses, de luvas e galochas no seu jardim, se entretivessem a irrigar a felicidade dos homens.
Depois disso, fui então feliz à chuva nos arredores de Hué, viajando na traseira de uma motoreta e agarrado ao meu oriental como Leonardo DiCaprio a Kate Winslet (só que ele, o meu oriental, felizmente não largava as mãos do guiador para abrir os braços à proa e era eu quem tirava os chinelos dos apoios e levantava as pernas como se estivesse a vogar cinematicamente num Titanic meridional). Nessa tarde tínhamos ido ver templos funerários e no caminho de regresso havia ao longo da estrada telas de artistas plásticos, uma exposição de arte contemporânea a céu aberto que se afogava por uma hora ou duas e depois secava num instantinho, como tudo ali secava num instantinho excepto o meu suor.
Mais tarde fui ainda feliz à chuva em Roma, a correr para o metro acima da Piazza di Spagna e a ter tempo de achar afinal pequena e banal a Via dei Condotti que o guia dizia ser «a busy and fashionable street».
Em Paris não choveu, e eu que levava um kispo novo à espera de o estrear com o mesmo ânimo pueril e inconfessável de quando, adolescente, vesti em Agosto um kispo em segunda mão — herdado de um primo afastado e a cheirar a essências que não eram o sabão rosa lá de casa —, pela primeira (e última) vez impaciente pelo Inverno, só porque tinha caído uma chuvita de Verão antes da missa.

Levava também, em Paris, o moleskine que me foi oferecido como ferramenta de escritor mas que uso apenas para anotar despesas e coisas práticas.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Considerações sobre o bacalhau

Nunca, na minha vida civil, estou preparado para um aperto de mão. Quando se vive uma existência ensimesmada, o exuberante comércio social que é o aperto de mão surge inesperadamente, de súbito, como uma bala no campo de batalha (nunca estamos preparados para uma bala, nem num campo de batalha, há toneladas de bibliografia a asseverá-lo).
Resulta que a extremidade que estendo em reacção a um cumprimento, mesmo quando o faço de bom-grado, se apresenta geralmente frouxa, é apertada sem chegar a apertar. Nos melhores momentos, naqueles em que não dou choques eléctricos e consigo tempo para invocar o conceito de aperto de mão, estalam-me as falanges e os ossos do pulso no exercício de tentar que o destreinado conjunto se configure na posição correcta. Num ápice a minha mão direita é esmagada sem oposição (quando do outro lado está um culturista ou um operário) ou humilhada (quando acomodada num cumprimento competente, franco). Conheço pessoas assim, cujos bacalhaus me embaraçam, pela assertividade férrea ou pela afabilidade uterina com que acolhem os meus metacarpos. E invejo-as, sobretudo as segundas. Sim, invejo as afáveis. Um cumprimento triturador pode ser involuntário (num madeireiro habituado ao machado), mas é frequentemente exibicionista, uma pueril forma de cotejamento, não raro uma pré-declaração de guerra. Pelo contrário, um aperto de mão afável, acomodatício, ergonómico, envolvente e restaurador como uma massagem é gesto de quem vive em estado de graça. Ou é como a ironia em quem a sabe usar. Um gesto de verdadeira superioridade.
Ah, não ser um desses que levitam enquanto dão apertos de mão; dar mais cinco como quem unge Lázaro ou administra a extrema-unção. Ah, não ter sido bafejado com uma anatomia sociável, mãos como berços em vez de apêndices desajeitados, misantropos. Antes mãos de tesoura — e podia ganhar sossegadamente a vida a podar sebes. Afinal, ninguém estranha a soturnidade num jardineiro.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Problemas de habitação, no centenário de Sarajevo

No Verão de 2012, o jornalista Tim Butcher foi às profundezas da Bósnia-Herzegovina procurar a casa de Gravilo Princip, o assassino do arquiduque Francisco Fernando da Áustria. Quando encontra o que resta dela, pensa:

«Aquilo era uma casa europeia habitada por uma família inteira no início do século XX, mas fazia-me lembrar as choupanas com que me deparava frequentemente na África rural. O princípio era exactamente o mesmo: um chão de terra batida numa habitação construída com paredes de pedra, sob um telhado feito de madeira, colmo ou ramos apanhados localmente. Uma taxa de mortalidade infantil que podia matar seis dos nove filhos da família Princip soava mais a África do que a Europa. O mundo desenvolvido podia desesperar perante os problemas sistémicos da África moderna, mas estar ali, naquele jardim de Obljaj, ensinou-me como grande parte da Europa estivera recentemente em situação similar.»*

Duas décadas depois da morte de Gravilo, a minha mãe crescia numa casa similar à do sérvio-bósnio que serviu de gatilho à Primeira Guerra Mundial. Um compartimento de terra batida para a família, um compartimento adjacente com chão de carquejas para o gado. Como Gravilo, a minha mãe cuidou dos animais em criança, afastou lobos com paus e pedras. Não abateu nenhum arquiduque no final da adolescência, mas um dos seus filhos escreveu um romance onde se fala de «terrorismo inteligente».

Descontada a boutade pateta, há decerto uma maldição sobre domicílios impróprios. Resolver problemas de habitação é talvez um bom exorcismo para casas-assombradas. A Europa devia lembrar-se.  

* A partir do muito interessante excerto de O Gatilho, de Tim Butcher, publicado na LER de Junho.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Janela

A casa onde vivi a infância só tinha uma janela pequena para a rua. Era ali que às vezes nos juntávamos quatro ou cinco dos irmãos, alguns empoleirados numa cadeira, para observar o mundo e as estrelas. No Verão havia o fascínio dos incêndios na serra em frente, e de Inverno o exame minucioso das mesmas encostas à procura de auspícios de neve. Era uma janela paciente, estava disponível se era dia de aborrecer a olhar a cortina de chuva ou se descia a banda numa manhã de Agosto em peditório para a festa. Desenhávamos-lhe nos vidros, à noite, no vapor da respiração ou na geada de Dezembro, caveiras sorridentes cujo efeito dramatizávamos apagando a luz do quarto e deixando que o candeeiro da rua as retroiluminasse e projectasse na parede ou no soalho.
Em certa ocasião, ainda os satélites não tinham rotas que cruzassem o bairro, julgámos detectar movimento numa luz celeste. Já sabíamos distinguir pelo bruxulear estrelas de planetas, mas aquele discretíssimo avançar no firmamento era algo diferente; podia ser, porque não?, um ovni. Mas era um ovni tão lento e circunspecto que apenas sabíamos que se movia aferindo ao longo da noite a distância à linha de cume da serra. Não porque perdêssemos a paciência, mas porque havia outros afazeres, revezávamo-nos na vigilância, e quem regressava ao posto depois de ter ido à cozinha percebia melhor do que os outros o avanço da nave alienígena. Estava claramente mais distante da serra depois de cada ausência.
Hoje é difícil acreditar que coubessem naquela janela tão pequena — além das estações do ano e da fenomenologia meteoro-teratológica, além das grandes tempestades e dos monstros mais assustadores — excitantes visitantes de Vénus com a sua sofisticada tecnologia. Mas cabiam. A revolução coperniciana só tinha roubado movimento ao Sol e a mais nenhum corpo celeste, incluindo os que não identificávamos. Nenhuma lei da física nos impedia de sonhar, e a exiguidade de uma janela não tornava pequena a ambição.
Se agora não conseguimos conceber como se ajustavam e fervilhavam ali tantas cabeças não é porque a janela tenha minguado, é apenas porque as nossas cabeças cresceram na razão inversa da nossa imaginação.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Dilúvio

Há duas relevantes estratégias para superar os embaraços desencadeados pelos silêncios da vida social: uma delas consiste em fazer alusões ao estado do tempo; outra, em tecer comentários ao estado a que o país chegou. Existem, no entanto, fórmulas que as sintetizam a ambas. Eis um exemplo, saído de voz tonitruante: «Isto vai tudo acabar em dilúvio!» Trata-se de uma sentença universal, capaz de corrigir qualquer silêncio. Ao invés do dilúvio — que não permite emendar grande coisa.

terça-feira, 15 de abril de 2014

GPS

Os movimentos parecem indicar tratar-se de mais um yogi, dos que por vezes aparecem no parque, mas a orientação precisa e constante, aquela maneira de encarar um ponto (para mim) indefinido a sudeste, revela outra intenção, outra atitude. Num primeiro impulso, com certa presunção de geógrafo ou de nativo íntimo do curso do Sol em Trás-os-Montes, estou tentando a corrigir-lhe a direcção do olhar, o azimute para onde aponta o rosto. Mas depois reconheço que preciso de consultar outra vez o mapa para localizar Meca, que, na verdade, eu próprio nos últimos tempos ignoro o norte.
Enquanto me debato com a magna questão dos pontos cardeais, dois élderes passam absortos no seu próprio ritual itinerante, ziguezagueante, mostrando como é ubíqua a existência de Deus ou como são múltiplas as maneiras de o Homem se desorientar.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Gel, mães e filhos (2)

Como a mãe do post anterior, talvez a minha não se tivesse importado de me comprar gel recebendo instruções por telemóvel, se houvesse telemóveis quando eu era adolescente e se a mercearia do bairro — onde, família grande, nos abastecíamos a crédito para o mês, num vaivém de sacos que parecia diligência de Noé em véspera de dilúvio —, se a mercearia do bairro, dizia, tivesse a variedade actual de produtos e nós dinheiro para eles.
Sou dos que depois usaram gel e o largaram tarde, quando já corria o risco de ser tomado por deputado de um partido do arco da governação. Não fui deputado e a minha mãe decerto teve disso orgulho: não gostava que andássemos em más companhias.
A verdade é que, tirando o gel, nada mais me qualificava para deputado. Desde novo fui educado para ser humilde e sem ambições materiais. De cada vez que mostrava alguma ambição (uma bola, uma miniatura de tractor, algodão doce num arraial, um Fruto Real ou uma Schweppes, Sugus), recebia a resposta que hoje nos dá o Governo: não há dinheiro. Mas ao contrário do Governo, a minha mãe não o dizia com maldade de velha megera. Doce como era, dizia-o à superfície por vezes com rispidez pré-25 de Abril, mas com um coração de generoso revolucionário partido no peito. Ela que enfrentava a dureza da época como um Salgueiro Maia quotidiano (um que por vezes derramasse umas lágrimas).
Não lhe deve ter sido fácil negar-nos permanentemente os desejos. E tinha de o fazer em várias frentes (éramos seis, com interesses que variavam entre os dos que usavam chupeta e os dos que começavam a fumar). Mas depois ficou certamente contente por ver que os seus meninos lá medraram como Deus deixou — mantendo-se fiéis à linhagem: empenhados e humildes.
Por (triste) sorte, já não se dará conta de que neste país a humildade e o empenho se continuam a pagar mal e a castigar forte. Mesmo que em algum momento se tenha usado gel. Ou por causa disso.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Comportamentos desviantes

Reconhecemos uma alma gémea quando alguém que entra no shopping, depois de puxar para si a grande porta envidraçada, volta a fechá-la e de novo a abre apenas para confirmar que, sim, a porta faz um barulho cómico, humanóide, que apetece ouvir outra vez. Depois da breve pausa na frivolidade do mundo, ele entra e eu saio, sorrindo ambos de portas que adoptam comportamentos desviantes.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Aparências

1.

São meia dúzia em volta da mesa de pedra junto ao rio. Geralmente a mesa é usada, em tardes de furo ou gazeta escolar, para umas festas de álcool, para enrolar e partilhar uns charros. Os grupos exclusivamente femininos são talvez menos frequentes, mas lá está a atitude semiclandestina, lá estão os risinhos langorosos e cúmplices, os corpos dobrados em tenda conspirativa sobre o centro da mesa. E no entanto, quando se abre um pouco a corola de adolescentes primaveris, o que aparece a ser transaccionado ali no meio é um banal frasco de verniz de unhas, como num cliché da Ragazza.

2.

O rapaz vem de praticar desporto, calções, t-shirt suada, cabelos molhados, sweatshirt atirada sobre um ombro. As três raparigas aproximam-se entre embaraçadas e conspirativas, com segredinhos e empurrando-se umas às outras. Cortejam-no. De saia ou vestidos coquetes, alguma pintura no rosto, parecem saídas da mesma edição da Ragazza atrás referida. Ou de um quadro mais antigo, de um que tenha fixado a óleo uma tarde bucólica no parque. Porém a oralidade trá-las de volta ao futuro. Tendo talvez sido contrariada, uma delas abandona a discrição, a corte vintage, e dispara à colega um sonoro «vai-te foder, caralho», que o rio devolve em eco. O rapaz não parece sentir que se tenha desfeito o encanto, continua a atrasar o passo e a controlar a distância e os risinhos pelo canto do olho.

3.

Pequeno gangue, vêm subindo a rua. Cortes de cabelo, roupas, calçado, balanço do corpo, tudo de acordo com o modelo rebelde sem causa, vulgo arruaceiro. Param de súbito a conversar animadamente, ruidosamente, belicamente, ocupando metade da via de trânsito e todo o passeio. Os carros ultrapassam-nos em pequeno e conformado slalom. Os peões contornam-nos por fora, como vítimas de bullying fugindo à palmada nas costas. A descer a rua, avanço a direito com a inércia e uma vaga intenção de reivindicar o meu direito a um vector no passeio. Estendo o braço para abrir alas e o distraído rapaz à minha frente estremece de susto, como se acabasse de ser abordado por um assaltante. Desvia-se, cordial, e eu continuo caminho, a rir-me do ridículo. Do meu ridículo.

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Notas de viagem

Não sendo, nem em sonhos, um viajante imparável, tenho ainda assim no cadastro um número simpático de milhas aéreas e muitos quilómetros de alcatrão peninsular.
E contudo são insuficientes. Não me arrependo da eventualidade de ter vivido nos últimos anos acima das minhas possibilidades, mas arrependo-me (um pouco retoricamente, concedo) de não ter tentado poupar para estourar em mais viagens.
Até há um mês arrependia-me também de não ter levado um Moleskine nas expedições que fiz. Achava que as notas me seriam úteis nos posts e livros que ambicionava escrever.
Estava errado. As viagens são úteis — as notas não.
Em primeiro lugar, o mesmo carácter pudendo que me impede de sociabilizar com facilidade inibe-me de escrever sobre as minhas viagens. Pelo menos de escrever textos especificamente sobre as viagens.
O único Moleskine que tive (e tenho) foi-me oferecido há mais de três anos e tem três quartos das páginas intactas. Recentemente levei-o para Paris, mas foi inútil. Em nenhum momento dos dias que entretanto passaram senti qualquer vontade (ou senti o à-vontade) de o abrir para escrever fosse que género de texto fosse.
Em todo o caso, não seria de muita utilidade: apontei escassas observações e mesmo essas me parecem fúteis.
Na verdade, o que aproveito literariamente das viagens não surge por invocação e não poderia ficaria registado no período em que acontece. A identificação (e gradação) da importância das coisas é um exercício posterior. É mais tarde, por vezes bastante mais tarde — e involuntariamente, quase inconscientemente —, que as experiências das viagens surgem e se revelam úteis.
É como a vida: não sabemos que parte dela pode mais tarde ser romanceada, caso contrário vivê-la-íamos como uma ficção vigiada e seria portanto depois inverosímil, inutilizável, falsa, rebuscada, artificial, sem proveito. Não é durante a viagem que detecto o material literário (ou apenas com interesse narrativo): ele atropela-me um dia, no jogging, na caixa do supermercado, no trânsito, no duche. E então, sim, deveria correr para o Moleskine, para que à noite, iluminado pelo ecrã, não perdesse nada da ideia.

Creio que as notas tomadas durante uma viagem me seriam úteis se as pudesse tomar em modo inspirado, se pudesse viajar como um paciente Cézanne em frente a uma paisagem. Infelizmente, as minhas excursões são demasiado curtas (orçamento oblige) para que me possa dar ao luxo de agir como um escritor em viagem, sorvendo demoradamente. A única coisa que posso fazer — e isso é mais útil do que notas — é manter olhos e ouvidos bem abertos o tempo todo. Passar pelos sítios e pelas pessoas como um aspirador diligente, com grande poder de sucção. Um Hoover topo de gama ao serviço do detalhe e das sensações. E depois confiar na memória, esse departamento de arquivo e síntese de fábulas do cérebro humano.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Regressar a casa


(clique)

Escrevi anteontem para uma apresentação de Os Idiotas em Vila Pouca de Aguiar um texto a que chamei erradamente “Regresso a casa”. Erradamente porque para regressar a casa tinha na verdade de recuar 25 anos e não dez, 33 quilómetros e não 27. Não li o texto, mas insisti nos equívocos passando uma boa parte do tempo a falar do livro errado, do Hotel do Norte. Talvez seja da época, do toque de recolher à família que se ouve entre os jingles do comércio natalício. Por isso, ou por outras razões igualmente (con)sanguíneas, devo ter achado que esta era a altura de apresentar a minha obra sobre as Pedras Salgadas e não a minha obra sobre Portugal.
E assim não hesitei em alimentar mais equívocos, reduzindo ambos os livros (como voltei agora a fazer) a meros postais ou crónicas de territórios delimitados, regiões demarcadas do autor. A catalã residente no Alentejo Natàlia Tost a pretender que Os Idiotas se traduza para outras línguas, e eu a confundir a minha cartografia mental com a minha cartografia geográfica.

Parece-me que não há mal nenhum em publicar crónicas territoriais ou de época, mas devia ter-me lembrado que não escrevi monografias. Suponho que, por exemplo, o livro de Bruno Vieira Amaral As primeiras coisas não é bom por ser um levantamento sociológico de um bairro, mas por ter criado o Bairro Amélia a partir de matéria humana não exactamente circunscrita. Analogamente, o Hotel do Norte nunca existiu senão na minha imaginação (alimentada, naturalmente, de memórias, experiências, testemunhos, mas também da filmografia e da biblioteca eclécticas que fui instalando nas dobras do meu cérebro — e mais fundo, nos interstícios da alma, considerando a eventualidade de ter uma).
Não precisavam de ter demolido o verdadeiro Hotel do Norte, como fizeram, para que eu pudesse defender que ele é a minha fantasia. Um escritor não precisa de álibi nem de apagar impressões digitais, ou de fazer desaparecer provas, para cometer os seus crimes literários. O edifício podia permanecer que o livro continuaria a existir numa realidade alternativa e com fundações mais devedoras à mecânica quântica do que à velhinha, previsível e mensurável física de engenheiros civis, arquitectos e pedreiros.

Se me encomendassem (como aliás deviam) uma monografia sobre Pedras Salgadas, a “rainha das termas”, temo que seria desonesto da minha parte aceitar o serviço. É que não há uma correspondência absoluta entre aquele pedaço de território e o que eu frequento nas minhas visitas à terra. Por vezes julgo, ao passear no parque, que me passeio entre fantasmas, tal a quantidade de imagens e silhuetas que cada recanto, cada edifício, cada árvore espoleta. Mas depois de pensar no assunto, descubro, como no filme The others, que o fantasma sou eu. Não precisava de haver nevoeiro como havia para que o meu vulto no crepúsculo de hoje fosse espectral, deambulando solitário por entre o que resta ali de passado e o que se construiu de futuro. O hóspede de uma das eco houses que veio fumar para o alpendre não deu pela minha presença na vereda senão por um leve arrepio na espinha. Ele não estava a invadir mais o meu território do que eu o dele. Ou vice-versa. Na verdade, coexistimos em universos paralelos. Tal como é um universo paralelo aquele onde eu entro quando desço à cave da velha casa da família (e aos níveis mais subterrâneos do meu ser) e descubro os objectos familiares com que ficciono aquilo que antes confundia com recordações. Se me perguntarem onde eu estava em determinado dia de há trinta anos, talvez eu tenha um álibi convincente, mas ele é necessariamente forjado. Literariamente forjado.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O fosso entre o cais e a viagem

  1. Numa estação de metro duas mulheres seguram um objecto à frente da cara e dedicam-lhe olhares penetrantes. Uma lê, a outra lê-se. A primeira segura um espelho, a segunda, um livro. É legítima a confusão sobre quem faz o quê.
  2. Numa estação de metro duas mulheres seguram um objecto à frente da cara e dedicam-lhe olhares penetrantes. Um espelho e um livro. Ambas lêem, mas só uma avança para lá do frontispício, e não é seguro afirmar qual delas o faz.
  3. Numa estação de metro duas mulheres seguram um objecto à frente da cara e dedicam-lhe olhares penetrantes. A do espelho reforça o rouge, a outra enrubesce numa passagem de As Cinquenta Sombras de Grey.
  4. Numa estação de metro duas mulheres seguram um objecto à frente da cara e dedicam-lhe olhares penetrantes. O espelho e o livro são arrumados em bolsas idênticas quando por fim a composição chega e uma voz avisa para o fosso entre o cais e a viagem.

domingo, 1 de dezembro de 2013

O querer do eu

Reconhecia-o Lily Tomlin: «Sempre quis ser alguém. Agora vejo que devia ter sido mais específica.» Sublinhou, todavia, Kierkegaard que o eu desespera quando não quer ser ele próprio; se o quiser ser, acontece-lhe o mesmo. Trata-se de um modo original de conjugar o verbo «querer»: eu quero, tu queres, ele quer, nós desesperamos… Buda conseguira já uma fórmula para erradicar a doença: o eu não existe. Desde há 2500 anos que tentamos, em vão, ser mais específicos.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Melancolia

Diz a Wikipédia que é «um estado psíquico de depressão com ou sem causa específica» e se caracteriza «pela falta de entusiasmo e predisposição para actividades em geral». Não parece a descrição da minha patologia. Se é certo que a maioria das actividades em geral me parecem repulsivas quando me inclino para ouvir “Gallows” em loop, a verdade é que nestes momentos sinto um grande entusiasmo literário. Os frívolos dirão que literatura não é actividade, e terão a sua razão terrena. Mas quem se interessa por actividades quando tem as CocoRosie a sussurrar-lhe ao ouvido canções de assombramento, uma pilha de livros à distância de um braço e disposição para reescrever o mundo em vários tomos? Quem se interessaria por um emprego, uma comunidade, um país ou um planeta se pudesse simplesmente permanecer arrebatado?

A única parte triste da melancolia é termos de desligar a música, fechar os livros e ir picar o ponto nessa coisa a que chamamos vida adulta e responsável.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Infinitude

Nicolau de Cusa defendeu algumas teses sobre o infinito — onde coincidem os opostos — usando argumentos bastante persuasivos. Sem esforço, ele demonstra, por exemplo, que num círculo infinitamente grande a circunferência equivale à tangente: «curvo» e «recto» não se distinguem. Ora o infinito fica longe: deve ser exorbitante o preço do bilhete. Daí que o pensamento, para não abandonar a finitude, aceite facilmente o que lhe dizem acerca desse algo indefinido que, mudo e remoto, nunca deixou pistas.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Ciclo existencial

Vem n’A Náusea e gera tédio: «Todo o existente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por acaso.» Poderia dizer-se o contrário e nem assim se perderia eficácia: «Todo o existente nasce com motivo, prolonga-se por vigor e morre por decreto.» À nudez do absurdo persistente opor-se-ia a capa do destino irrevogável. Embora fecundo e enfático, o axioma de Sartre presta homenagem ao desencanto: nasceu sem ilusões, prolonga-se por teimosia e morrerá por excesso de evidência.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Perder tempo

Uns vinte anos depois de ter pousado a viola-baixo, dei por mim na última madrugada a assistir online a lições sobre matérias prementes como walking bass lines, slap e the secret triplet (admirável técnica), ministradas por um tal Scott Devine. Não tenho qualquer intenção (ou esperança?) de voltar a pegar na guitarra e as tarefas que nos próximos tempos me esperam não convivem bem com este diletantismo fora de horas. Acresce que, tirando certas facetas parvas do emprego, todas as tarefas que me esperam têm a particularidade de serem prazerosas — ou necessárias, úteis e prazerosas — e envolvem livros.
Porquê então esta tendência para a perda de tempo? Racionalmente, não comungo da definição de liberdade expressa no poema de Fernando Pessoa (Ai que prazer / não cumprir um dever. / Ter um livro para ler / e não o fazer! / Ler é maçada, / estudar é nada. / O sol doira sem literatura.)
Emocionalmente, também não, já que o meu prazer mistura o sol, a brisa, o rio, a bruma, danças, flores, música e luar (passo as crianças) com livros.
É isto uma manifestação de irreprimível curiosidade? De fome de conhecimento? Ou uma forma velada de descer à franca humanidade dos que passam os serões e as décadas vendo novelas, futebol ou reality shows como se não houvesse outro sentido para a vida?
Vou por esta prova de fraqueza, da minha iniludível pertença ao género humano. Uma parte de mim também desiste a espaços perante o absurdo de uma existência efémera. Para quê fazer um gesto que nada muda se podemos ficar simplesmente à espera?

Ou talvez não, talvez isto seja apenas um problema de gestão da curiosidade. Lembro-me agora que depois dos vídeos, já se descarregavam as hortaliças no mercado, ainda fui perceber a razão por que o baixista Devine tocava com luvas. Distonia Focal, descobri, uma doença neurológica que afecta um músculo ou conjuntos de músculos e causa espasmos involuntários. O uso de luvas de seda (terapêutica chique, de ambivalente delicadeza) altera a sensibilidade e engana os neurónios avariados, bloqueando as contracções.

Descoberta útil, não? Não?

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Embirrando com a leitura

Na forma como cita parece revelar-se algo do carácter (ou da formação) de um autor. Leio um ensaio onde as fontes francesas são citadas em francês e as italianas, russas, alemãs e mesmo as anglo-saxónicas são-no em português (quando não também em francês).
Talvez o autor tenha optado por citar as suas fontes na língua em que as leu, é um critério. E, nesse caso, estamos perante um afrancesado, por formação e/ou por afinidade cultural.
Com a minha mania de imaginar biografias, decidi tratar-se de um pavão vaidoso do seu francesismo, do seu domínio da língua de Sartre. Como não tem idade para ser um ex-expatriado ou para se ter formado no tempo em que quase toda a gente em Portugal era culturalmente afrancesada, decido também que viveu em França, nasceu ali, talvez filho de emigrantes orgulhosos da sua (dele) carreira académica.
Assim tomado por esta animosidade ficcionalmente refocalizada, decido que os livros citados no ensaio têm edições portuguesas, que o autor não aplica às fontes francesas o critério que geralmente aplica às russas e às alemãs (citando-as em português) por presunção, gosto ostentatório. E encontro então explicação para a forma arrevesada como escreve o seu ensaio, num português engalanado e hirto: é prosa de calça vincada e gola alta, ou enrolada num cachecol parisiense. Não exactamente elegante — apenas afectada.