Mostrar mensagens com a etiqueta Lógica. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Lógica. Mostrar todas as mensagens

domingo, 13 de julho de 2014

Um postal e a falaciosa Aposta de Pascal

postal: «e se de facto DEUS existir?»

Num expositor destinado a folhetos promocionais e afins, na Universidade do Minho, deparo-me com um postal que, remetendo-nos para um site, questiona: «e se de facto DEUS existir?».
O postal não tem remetente, mas a ausência de selo levará o observador sagaz a concluir que terá sido o próprio Criador a fazer o envio: de que outra forma, se não por intervenção divina, teria um postalito desfranquiado chegado ali? (Deus, tal como os craques de futebol e outras majestades, refere-se a si mesmo na terceira pessoa.)

manuscrito no verso: «Paciência!»

No verso do postal alguém deixara já a sua lacónica resposta: «Paciência!»


A questão «E se Deus existe?» foi posta, e respondida, pelo grande matemático e filósofo (etc.) francês do séc. XVII, Blaise Pascal. Dizia ele: Se Deus não existir, é irrelevante se sou ateu ou crente, pois, esteja certo ou errado, nada de transcendental existe; mas se Deus existe e eu for crente, tenho muito a ganhar (salvação eterna), enquanto se for ateu terei tudo a perder (danação eterna). Seguindo este raciocínio, numa espécie de cálculo daquilo a que a teoria económica chama função de custo, Pascal concluía que a melhor jogada era acreditar em Deus. Este “argumento” ficou conhecido como “Aposta de Pascal”.

O problema da Aposta de Pascal é que é uma falácia. De facto, várias falácias.

É, desde logo, uma falácia teológica. Pascal não acredita, de facto, que Deus existe: não tem uma fé no sentido exacto do termo (crença sem provas), nem sequer tem uma convicção fruto de qualquer análise e ponderação das eventuais provas a favor e contra a existência de Deus. A opção pascalina é estratégica, economicista, interesseira. Ora, sendo Deus omnisciente como (em geral) o pintam, esse Deus saberia que a fé e a devoção de Pascal não eram verdadeiras, mas calculistas. Um deus interessado, não na mera aparência, mas no que nos vai na alma (chamemos-lhe assim), condenaria por isso o pseudocrente/contabilista encarnado pelo filósofo francês.

A Aposta de Pascal — e a mentalidade subjacente ao postalito — corporiza também uma falácia lógica, concretamente, uma falsa dicotomia. Se os ateus estão certos (há várias estirpes de ateus, mas por simplicidade centremo-nos nos que negam totalmente a existência de entes divinos), então os crentes estão errados — mas se os ateus estão errados, não podemos dizer que então os crentes estão certos. Não há apenas uma concepção do divino; qual concepção, qual fé, é (nesta situação hipotética) a correcta?
Os ateus até podem estar enganados, mas, simultaneamente, também os crentes: o(s) verdadeiros(s) deus(es) pode(m) ser diferente(s) daquele(s) em que esses crentes acreditam. Há muitas maneiras de estar errado.

Daqui resulta a terceira falácia da Aposta de Pascal: vergonhosamente para alguém cujos contributos na área da Probabilidade lhe deram direito a emprestar o seu nome a uma distribuição, esta é, precisamente, uma falácia probabilística. Há uma tal profusão de concepções do divino (do monoteísmo estrito e do pseudomonoteísmo cristão, em especial católico, passando pelo deísmo e maniqueísmo, ao politeísmo clássico e ao xamanismo, culminando no politeísmo extremo — mais de 300 milhões de deuses! — do hinduísmo), cada corrente de pensamento dividindo-se frequentemente em subcorrentes cujas mútuas diferenças, não raro pentêlhicas, assumem proporções cósmicas, que a probabilidade de a nossa concepção em concreto ser a correcta é, por assim dizer, infinitesimal.
Como afirma Richard Dawkins no livro The God Delusion (erradamente traduzido em Portugal como A desilusão de Deus), todos somos ateus em alguma medida, pois negamos a verdade dos deuses dos outros (na Antiguidade os judeus e os primeiros cristão foram precisamente acusados de ateísmo) — os crentes no Deus judaico-islamo-cristão simplesmente suspendem a sua postura crítica um deus cedo demais...

Se atendermos ainda, como em geral é afirmado, a que Deus (ou o divino) é insondável, transcende o entendimento humano, então devemos ainda considerar a possibilidade de que, apesar da sua espectacular diversidade, nenhuma concepção teológica alcançou arranhar sequer a superfície da natureza divina: podemos estar todos errados!
Esta, de resto, é a suprema falácia teológica (pelo menos das religiões monoteístas mais importantes): ao mesmo tempo que afirmam a inefabilidade de Deus, as religiões digladiam-se, não raro literal e dasapiedadamente, à volta de certezas irredutíveis quanto aos desígnios divinos (o que Deus quer ou não quer, quem ama e quem odeia de morte).

manuscrito no verso: «Se calhar existe, mas é diferente daquele em que tu acreditas e nem sequer gosta de ti!»


O lacónico «Paciência!» no verso do postal despontou em mim um giocôndico sorriso, mas, como se vê por estas linhas, eu tendo a ser mais palavroso. Um milagre fez materializar-se na minha mão a providencial esferográfica com que escrevinhei o meu contributo...

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Costume alternativo

Eu costumo dizer que não gosto da expressão «eu costumo dizer que». Estruturalmente, sendo usada para o sujeito se citar a si mesmo, ela não anuncia nada de novo. Aprecio, ao invés, a expressão «eu costumo calar que», se pronunciada só assim, sem complementos — directo, indirecto, oblíquo ou contrafeito — que a tornem vacilante, ineficaz. O que habitualmente se cala tende para o infinito: «eu costumo calar que» promete silêncios robustos; «eu costumo dizer que» antecede frouxas epifanias.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

A aranha

No alfarrabista, abrindo um dicionário de filosofia, deparo com minúscula aranha aninhada no pequeno desvão feito por um grosso marcador de livros. Aguardo, para ver o que acontece. O animal não tarda a mover-se: atravessa a teoria do silogismo, galga premissas, vence conclusões, abeira-se da margem, despenha-se no intervalo que separa dois volumes fechados. Parece buscar o sentido da sua existência entre a lógica de Aristóteles e os livros que nunca lerá. Como qualquer um de nós.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O anel e a invisibilidade

Conta-o Platão: Giges, pastor ao serviço do soberano, achou um anel de ouro. Voltando o engaste para a parte interna da mão, tornava-se invisível; rodando-o para fora, tornava-se visível. Que fez? Seduziu a rainha, matou o rei e tomou o poder. Perante o cenário, ter-se-á de admitir que a causa da invisibilidade é plural: está presente no anel, mas também no dedo e no acto giratório. Só desta forma se assegura a conveniente invisibilidade do próprio anel.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Excepções

Segundo Gottlob Frege, uma «afirmação de existência» reduz-se à «negação do número zero». Nesse caso, o número zero fica desprovido de existência. Se há, todavia, excepções a atazanar a regra, outras há susceptíveis de pacificar o autor. Entre as memórias que expõe, ela insere esta sentença disjuntiva: «Ou hei-de estar calada ou a contar misérias.» Dizendo-o, nem cumpre requisitos de mudez nem narra exemplos óbvios de infortúnio. Eis, portanto, uma regra libertadora — excepção involuntária de si mesma.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A outra lógica

Ele supunha ser a vida a conclusão de um argumento cujas premissas se desconhecem. Ela julgava-a um conjunto de premissas que não levam a qualquer conclusão. Através de inflamada lógica, juntou-os o destino. Mas cada um só via no outro o que ele próprio achava da vida. Volvido quase um ano, disse o homem: «É preferível concluirmos.» Ela retorquiu: «Claro. Também não me faltam premissas.» Fora aquele o único argumento válido após uma série intensa de falácias.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Repetição e contradição

Para evitar contradizerem-se, muitos gostarão de academicamente o repetir: «Quem não se repete contradiz-se.» Por sua vez, Cardoso Pires entende que o maior pânico do escritor, à medida que avança na idade e no trabalho, «é desconfiar que já leu aquilo em qualquer lado — dele». Portanto, ou o escritor demanda subterraneamente a contradição ou há modalidades de «não repetição» que nada encerram de contraditório. Eis o jogo entre o «mesmo» e o «diverso», cujas regras convém desconhecer.

sábado, 7 de setembro de 2013

Falhas

Passo de um manual de lógica para o Livro Tibetano dos Mortos. O primeiro tenta definir, com exactidão, as formas válidas de pensar a vida. O segundo procura descrever, com ênfase, o que iremos achar após a morte. Mas ambos terão falhas. Cada morto representa um caso. Cada vivo inaugura um paradoxo. Deve, pois, existir algo que as «quatro figuras do silogismo» não abarcam e as «quatro nobres verdades» do budismo não contemplam: um caos rigorosamente impartilhável.

domingo, 21 de julho de 2013

O intelecto, a imaginação e o Universo

Se for infinito, o Universo não se adequa ao intelecto; se for finito, não se adequa à imaginação. Ora o Universo ou é finito ou é infinito. Logo, ele é inadequável à imaginação ou ao intelecto. Pouco preocupados com isso, garantem vários redactores de livros de auto-ajuda que «o Universo conspira a favor do indivíduo». Eis uma tese cuja defesa, para ser minimamente honesta, exigirá sempre um esforço violento do intelecto e um empenho tremendo da imaginação.

domingo, 28 de abril de 2013

Cartão e raposa, paradoxo e dissonância

Num dos lados do cartão lê-se que a afirmação escrita no lado oposto é falsa; neste, lê-se que a afirmação do lado contrário é verdadeira: uma asserção estabelece a falsidade daquela que a avalia como verdadeira; outra decreta a verdade daquela que a avalia como falsa. Tal cartão, misturando o falso e o verdadeiro, sintetiza o conflito da raposa da fábula, dividida entre o verdadeiro apetite por uvas maduras e a falsa convicção de as achar verdes.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

As duas* falácias de João Miguel Tavares

O “argumento” de João Miguel Tavares em defesa da dupla Reinhart & Rogoff — admitindo que se trata mesmo de uma tentativa de argumento e não a mera exploração de um nicho de mercado editorial (há que mungir a teta do pluralismo) — enferma de dois erros, duas falácias.

A primeira falácia é a do apelo à autoridade (a que já se referiu o Rui), uma das mais divulgadas formas de fugir ao assunto. Não podendo negar o erro fundamental no artigo que tão convenientemente deu sustentação “científica” à sanha anti-estado social, João Miguel Tavares desvia as atenções, tentando ofuscar-nos com os alegados méritos prévios da dupla de economistas. Como se o assunto em debate fosse o direito ou não de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff conservarem os doutoramentos em Economia que certamente têm...

A segunda falácia é a ignorância da natureza não linear do discurso humano. Quero com isto dizer que a “lógica” de João Miguel Tavares (de que o erro de Reinhart & Rogoff num artigo de 26 páginas é nada comparativamente à excelência da sua opera magna de 512 páginas) só seria válida se o discurso humano — de uma simples frase às obras completas de Platão ou Pál Erdős — pudesse ser aproximado a um sistema linear, o que não acontece.

[Abro aqui um parênteses para quem não sabe o que é um sistema linear. De uma forma simplificada, um sistema é linear se a magnitude de um efeito for (directa ou inversamente) proporcional à magnitude da causa que lhe deu origem: pequena causa, pequeno efeito; grande causa, grande efeito. Por exemplo, o controlo de velocidade de um automóvel é um sistema linear: carregando a fundo no acelerador aumenta-se mais a velocidade do veículo do que se carregando menos; idem, mas com efeito inverso, para o pedal do travão.
Já a verdade de uma expressão lógico-matemática não segue um padrão linear. Consideremos, por exemplo, a seguinte proposição verdadeira: «1111111111 > 0». Alterar 10 dos 14 caracteres (71% do texto) da proposição, transformando-a em «9999999999 > 0», ou suprimir-lhe 9 caracteres (64%), ficando «1 > 0», não tem qualquer efeito em termos de verdade: as novas inequações são também verdadeiras; já alterar um único e muito específico carácter (7,1% do texto), «1111111111 < 0», arruína completamente a verdade da proposição resultante.
Também o discurso humano, nomeadamente a verdade que ele poderá encerrar, não se comporta como um sistema linear. A diferença entre dizer «Em mil novecentos e trinta e nove, a Alemanha Nazi de Adolf Hitler invadiu a Polónia» e dizer «Em mil novecentos e trinta e nove, a Alemanha Nazi de Adolf Hitler não invadiu a Polónia» não é um erro de uns meros 4,8% ou 6,25% (conforme se considerem caracteres ou palavras, respectivamente) — aquele «não» a mais faz toda a diferença entre a verdade e a mentira. Pura e simples.]

Assim sendo, e voltando à lógica furada de João Miguel Tavares, o erro de Reinhart & Rogoff não é apenas um erro de 26/(26+512) = 4,8% no contexto da sua obra (admitindo, por simplicidade, que a dupla apenas escreveu o artigo e o livro referidos).
O erro implica a diferença entre as medidas de austeridade que vêm sendo adoptadas basearem-se num resquício que seja de cientificidade (nunca tendo as conclusões do estudo, ao contrário do que nos quiseram convencer, tido a unanimidade entre os economistas, mesmo antes da descoberta dos erros de palmatória), ou serem simplesmente a implementação acientífica e até anticientífica de um programa ideológico.


* Não tendo lido o artigo de João Miguel Tavares (não comprei o jornal e a versão online é reservada a assinantes), a minha contabilidade de falácias restringe-se às existentes na sua invocação do calhamaço de 512 páginas como “argumento” de defesa de Reinhart & Rogoff.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

O paradoxo do 1 de Abril

Os dias internacionais, mundiais, comemorativos, etc., servem, entre outras coisas, de alerta para a necessidade de corrigir atitudes erradas. O dia dos enganos, contudo, parece alimentar a ilusão de que nos restantes só temos atitudes certas. Ele acaba também por reforçar o «paradoxo do mentiroso»: se alguém afirma «Hoje é dia de enganos», expressa uma proposição simultaneamente verdadeira — se hoje é de facto o dia dos enganos — e falsa — se não há mais que enganos neste dia.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

E o Oscar da Lógica vai para...

talho de carne de cavalo

Por essa Europa fora há um escândalo com a venda de produtos ultracongelados (hambúrgueres, lasanhas, etc.) à base de carne de cavalo vendidos como se fossem de carne de vaca. Em vez de ir a um supermercado apurar se o escândalo está a afectar a venda de ultracongelados à base de carne picada, uma jornalista da SIC achou que fazia mais sentido ver de que forma a venda de cavalo por vaca afecta negativamente aqueles que vendem cavalo por cavalo.

Pergunto-me se à jornalista em causa lhe falta discernimento, ou se confia que nos falte a nós.


P.S. O título da reportagem, conforme ele surge no site da SIC Notícias, é enganador, por ambíguo: «Governo garante que não há registo de casos de carne de cavalo em Portugal». O que são «casos de carne da cavalo»? É preciso distinguir a venda de carne de cavalo como se fosse de outro animal (o que é ilegal) da simples venda de carne de cavalo (que é legal, se for assumido que é de cavalo). O título não faz essa distinção.