Mostrar mensagens com a etiqueta Microcontos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Microcontos. Mostrar todas as mensagens
domingo, 1 de dezembro de 2013
O permanente
Publicada por
José Ferreira Borges
Filósofos de diferentes culturas decidiram, um dia, rumar ao desconhecido, buscando «Aquilo que permanece». Venceram montes, desceram ribas, calcorrearam desertos, suportaram tempestades — até que o descobriram. Em seguida, procuraram dar-lhe nome. Surgiram várias propostas, nenhuma consensual: Infinito, Uno, Deus, Espírito, Eternidade, Nirvana, Totalidade, Ser, Essência, Verdade, Substância, Absoluto, Universo, Consciência, Tao, Ain Soph, Brahman. Após longas horas, alguém se lembrou de lhe chamar «Nada». Registou-se um acordo pleno. E todos, em uníssono, soltaram este aforismo: «Nada permanece.»
sábado, 23 de novembro de 2013
Memórias
Publicada por
José Ferreira Borges
Não desejava partilhar as suas memórias, embora quisesse libertar-se da sombra delas. Decidiu então redigi-las em pleno ar, à altura dos olhos. Num amplo terreno, onde se erguiam duas árvores, passava dias a agitar o indicador direito, enchendo o espaço de parágrafos invisíveis. Volvido um tempo, os raios de sol, persistindo nas copas das árvores, deixaram de tocar aquele chão. Densas de desespero, as lembranças escritas teciam uma nuvem incorpórea que a luz era incapaz de atravessar.
quarta-feira, 20 de novembro de 2013
Sono aplicado
Publicada por
José Ferreira Borges
O volume que, em geral, inseria debaixo do travesseiro onde dava descanso ao cérebro acolhia a Constituição. Outros, no entanto, igualmente de pendor jurídico, tinham ali lugar em noites próprias. Estudante de Direito, acreditava que, dormindo com os livros sob a cabeça, receberia por osmose inconsciente o saber aí expresso. Se alguém lhe perguntava a razão daquela atitude, justificava-se de um modo que o defendia da acusação de preguiçoso: «Enquanto sonho, gosto de estar acima da lei.»
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
Fingimentos
Publicada por
José Ferreira Borges
Procurou conhecer e experimentar por dentro todos os movimentos esotéricos e religiosos. Mas o seu grande projecto era o de alcançar um perfeito estado de desencanto e de cepticismo. Tal desiderato lançava-lhe sobre as vivências espirituais doses de fingimento de que nunca viria a libertar-se. Antevendo o fim, apressou-se a abandonar dogmas, crenças, técnicas, rituais. A tarefa revelou-se impraticável. Conseguiu apenas supor-se desencantado e céptico. Também a sua morte, por afinidade, não passou de um completo fingimento.
segunda-feira, 14 de outubro de 2013
As vias da paciência
Publicada por
José Ferreira Borges
Vivia impaciente. Mas, descobrira-o, a impaciência era uma característica alterável, embora teimosa, dos pensamentos que a governavam. Procurou curar-se mediante uma caminhada diária, à mesma hora, seguindo um percurso fixo. Notou então que os conteúdos mentais, apesar de rebeldes, aderiam a pontos específicos do itinerário. Volvido um tempo razoável, decidiu efectuar o trajecto com o espírito vazio e receptivo. Nessa altura, apercebeu-se do regresso dos pensamentos exteriorizados. Vinham tranquilos e obedientes. Tinham-se habituado a esperar por ela.
quinta-feira, 3 de outubro de 2013
A outra lógica
Publicada por
José Ferreira Borges
Ele supunha ser a vida a conclusão de um argumento cujas premissas se desconhecem. Ela julgava-a um conjunto de premissas que não levam a qualquer conclusão. Através de inflamada lógica, juntou-os o destino. Mas cada um só via no outro o que ele próprio achava da vida. Volvido quase um ano, disse o homem: «É preferível concluirmos.» Ela retorquiu: «Claro. Também não me faltam premissas.» Fora aquele o único argumento válido após uma série intensa de falácias.
segunda-feira, 30 de setembro de 2013
A intervenção secreta de Ariadne
Publicada por
José Ferreira Borges
Almejava esquecer um passado atroz. Decidiu convertê-lo em narrativa. Ocultou-a num ficheiro com palavra-passe. Criou outro. Guardou aí essa palavra-passe. Num terceiro, alojou a do segundo. E assim sucessivamente, rumo ao olvido. Chegado ao milionésimo sétimo, logrou esquecer os dolorosos tempos. Mas também o sentido daquele exercício. Clicou então — gesto fortuito — em «Colar». O vocábulo «fio» adveio à página, garantindo-lhe acesso ao ficheiro anterior. Reentrara no labirinto. Sem o saber, foi avançando em busca de si próprio.
sexta-feira, 27 de setembro de 2013
Fusão
Publicada por
José Ferreira Borges
Anos de meditação tornaram-no capaz de se fundir na Unidade, como açúcar mascavado em chá de alecrim. Se pressentia aborrecimentos ou pequenas catástrofes, pumba, fundia-se na Unidade. Mas uma percentagem de si permanecia imune à fusão: o indicador direito. Este mantinha-o ligado à pluralidade, apontando-lhe os caminhos de ida e volta. Certo dia, ficando o nariz a substituí-lo, também tal dedo foi conhecer a Unidade. Regressou transbordante de ideais: passou a apontar caminhos a toda a gente.
quarta-feira, 25 de setembro de 2013
Espelhos
Publicada por
José Ferreira Borges
Um poeta da Geração d’Orpheu entrou numa casa de banho pública, onde existia um espelho capaz de fixar imagens e palavras. Retirou do bolso um espelho mais pequeno e fez aquele jogo de reflexos que anula simetrias. Proferiu, em simultâneo, um verso: «Eu não sou eu nem sou o outro.» O espelho maior assimilou tudo. Desde então, se alguém, mirando-se a ele, perguntasse «Quem sou eu?», obtinha esta resposta: «És dois espelhos — ou “qualquer coisa de intermédio”.»
quinta-feira, 19 de setembro de 2013
Os objectos inefáveis
Publicada por
José Ferreira Borges
Naquela feira vendiam-se apenas objectos inefáveis. Em rigor, não se tratava de objectos completamente inefáveis: deles se dizia que eram «inefáveis» e que eram «objectos». De resto, como de Deus para os místicos, de tais objectos só se falava mediante negações: não tinham cheiro, cor, som, peso, volume, forma, nada. Quem os adquiria, geralmente a preços indizíveis, espalhava-os pela casa ou por caminhos habituais. Constituía mesmo um sagrado imperativo tropeçar em objectos inefáveis — para alcançar indescritíveis quedas.
quarta-feira, 18 de setembro de 2013
A realidade bruta
Publicada por
José Ferreira Borges
Achava que a escrita devia exprimir apenas «o real nu e cru». Decidiu mesmo aprender estenografia, para que nenhum pormenor lhe escapasse nem tivesse tempo de reflectir. Em esplanadas, confiava ao papel «a existência bruta». Uma tarde, a caneta esbarrou com excremento de pomba. A matéria fecal interrompeu-lhe uma frase em que, transgredindo a norma abstracta, opinava sobre gestos concretos. Pensou: «Se a realidade pune desta forma um delito menor, ela deve ser implacável com os dissidentes.»
domingo, 1 de setembro de 2013
Frases
Publicada por
José Ferreira Borges
Naquele país, os cidadãos — graças a um sistema informático de controlo mental — recebiam à nascença as frases que iriam dizer, e podiam livremente repetir, durante a vida. O conteúdo e o número variavam entre indivíduos, consoante os pátrios interesses. Estar ligado ao «sistema» (todos os sentiam) era tão instintivo como respirar. Não havia asserções melancólicas, embaraçosas ou contestatárias. De modo obviamente consensual, assim se definia «ser humano»: um amontoado bípede de frases implumes, com umbigo e narinas.
sábado, 24 de agosto de 2013
O avançado instante
Publicada por
José Ferreira Borges
O país era carrancudo. Mas ele descobrira dentro de si um pensamento que invariavelmente lhe punha alegria no espírito e euforia na alma. Tratava-se do seguinte: «Este instante é o mais avançado da nossa história.» Durante anos fixou-se em tal asserção, repetindo-a centenas de vezes, ao longo dos dias, em jeito de mantra. Daí resultou tornar-se uma criatura esfuziante: cantava entre sisudos, ria entre infelizes. Desiludidos, muitos comentavam: «Este indivíduo é o mais atrasado da sua geração.»
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
Técnica radical
Publicada por
José Ferreira Borges
Para os pensamentos que julgava «inadequados», e que os livros de auto-ajuda qualificavam de «negativos», descobrira, finalmente, o auspicioso antídoto. Ao farejar-lhes a indesejada proximidade, imaginava-se vítima de decapitação rápida. Isso traduzia-se, em termos biológicos, no corte providencial dos canais percorridos pelos fluxos menos sensatos com que a alma atazana o corpo. Mas aquela representação mental — que, apesar de mórbida, ele achava «amplamente adequada» — acabaria, graças à sua força e persistência, por torná-lo vítima de decapitação efectiva.
quarta-feira, 31 de julho de 2013
Conclusões
Publicada por
José Ferreira Borges
Subindo o escarpado monte, reflectia metafisicamente: «O caminho é único; o ponto de chegada, absoluto.» Atingido o topo, e observando outras possibilidades ascensionais, concluiu: «Os caminhos são diversos; o ponto de chegada, único.» Ao descer, contemplando os múltiplos lugares do sopé, mudou de perspectiva: «Os caminhos são inumeráveis. Os pontos de chegada também.» A certa altura desequilibrou-se, caiu e foi a rebolar desamparado. Surgiu-lhe então esta ideia: «Os caminhos são circulares e não levam a lado nenhum.»
terça-feira, 23 de julho de 2013
O estatístico e o moralista
Publicada por
José Ferreira Borges
Conta-se que certo estatístico, viajante frequente de avião, se sentia apreensivo ao fazê-lo, por causa das ameaças de bomba. Mas concluiu que a probabilidade de haver uma a bordo era escassa e a de haver duas era mínima. Passou então a levar uma consigo. Também certo moralista se sentia prisioneiro do remorso desencadeado pelo único erro grave que cometera. Pensou melhor e concluiu que seria libertador poder transitar entre dois remorsos. Decidiu então cometer outro erro grave.
segunda-feira, 22 de julho de 2013
Estátuas singulares
Publicada por
José Ferreira Borges
Naquele país, as estátuas dos humanos não possuíam cabeça, faltava-lhes o tronco e dos membros pouco era visível. O pedestal exibia a inscrição e, no topo, um baixo-relevo. Ao atingirem a idade adulta, todos os habitantes recebiam o convite para que tirassem o «Eterno Rasto», o documento onde se registava a configuração do pé. Quem pela celebridade o merecesse teria, após a morte, a pegada sobre a peanha. Dizia-se: «O rasto é tudo, o resto é nada.»
sábado, 20 de julho de 2013
segunda-feira, 1 de julho de 2013
O tesouro
Publicada por
José Ferreira Borges
Convencera-se, na infância, de que era um tesouro. Haveria de manter tal crença a vida inteira. Ela traduzia-se na sua resistência a tomar opções que envolvessem algum risco ou lhe franqueassem o íntimo. «Deve resguardar-se o que é precioso», pensava. Aos poucos, sonhos e devaneios impuseram-se-lhe como única dimensão tolerável da realidade. Após a morte, converter-se-ia em tesouro definitivo. E, à semelhança do que acontece à maioria dos tesouros, ninguém hoje sabe onde ele se encontra enterrado.
domingo, 26 de maio de 2013
Aversão
Publicada por
José Ferreira Borges
Sempre depois de fornecer os dados para as facturas, murmurava: «Odeio expor-me!» Não raro, em diálogos e monólogos, dizia: «Detesto converter-me em palavras!» Muitas vezes, no seu facebook, declarava: «Irrita-me que me obriguem a transformar-me em assunto!» A t-shirt que vestia com frequência mostrava ao mundo a seguinte mensagem: «Abomino revelar-me!» Deixou uma carta de suicídio junto a um diário que mantinha há anos. Nela podia ler-se que a repugnância em falar de si se tornara insustentável.
Subscrever:
Mensagens (Atom)