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domingo, 18 de maio de 2014

Zombies

O zombie é uma criatura idêntica a nós, excepto no irrisório facto de se achar desprovida de consciência. Embora exteriormente vivo, o morto-vivo está intimamente morto. Por conseguinte, ninguém sabe (salvo por analogia) o que é ser ou sentir-se zombie. Isso torna tal entidade um enigma indecifrável, um constrangimento lógico — e até uma aberração metafísica. Não admira que o Pentágono tenha um plano de acção contra um eventual ataque de zombies. Criaturas assim paradoxais são rigorosamente imprevisíveis.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

A aranha

No alfarrabista, abrindo um dicionário de filosofia, deparo com minúscula aranha aninhada no pequeno desvão feito por um grosso marcador de livros. Aguardo, para ver o que acontece. O animal não tarda a mover-se: atravessa a teoria do silogismo, galga premissas, vence conclusões, abeira-se da margem, despenha-se no intervalo que separa dois volumes fechados. Parece buscar o sentido da sua existência entre a lógica de Aristóteles e os livros que nunca lerá. Como qualquer um de nós.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Esperas

No tocante às esperas, quatro fases — variando as idades em que ocorrem — marcam a vida do pessimista. A uma primeira, em que tudo se espera dele, segue-se aquela em que o próprio admite: «Não esperem grande coisa de mim.» Já na terceira fase, em diálogo consigo, o pessimista declara: «Não espero nada de ti.» Por fim, dirá simplesmente: «Não espero.» Depois, é claro, irá embora. Um optimista passa exactamente pelas mesmas etapas. Mas distrai-se com mais facilidade.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

As cinzas e o inconsciente

Meliantes terão tentado roubar as cinzas de Freud. Usurpar cinzas alheias é uma forma ilusória de ganhar poder sobre as latentes cinzas próprias. Usurpar as do fundador da psicanálise é uma estratégia sinuosa de dominar as forças do inconsciente. Não se trata de matar segunda vez o mensageiro, antes de sequestrar o que sobrou dele. Freud daria, para o sucedido, uma explicação melhor. Talvez os ladrões, numa espécie de círculo hermenêutico, andassem justamente à procura dessa explicação.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Fórmula redentora

Célebres poemas de David Mourão-Ferreira, «Escada sem Corrimão» sintetiza os absurdos da vida, «Ladainha dos Póstumos Natais» analisa os efeitos da morte. Cada um a sua, ambos organizam as duas metades do caos que em herança universal nos coube. Se lhes acrescentarmos o legítimo devaneio, obteremos uma fórmula aparentemente redentora: «Há-de vir um Natal e será o primeiro a trazer um corrimão à escada em caracol» — só que nessa altura já não existirá escada para o receber.

domingo, 17 de novembro de 2013

Coerência

Hoje é o Dia Mundial da Prematuridade. Por uma questão de coerência, a efeméride deveria ter sido celebrada ontem.

sábado, 16 de novembro de 2013

O túnel

Sugere-o Rousseau: a instituição da propriedade privada — e dos estragos inerentes — deu-se com aquele espertalhão que, tendo cercado um terreno, disse: «Isto é meu!» Alguns ingénuos acreditaram nele. O resto é conhecido. No entanto, a origem do problema deve ser muito anterior. Certo australopiteco passou por uma experiência de quase-morte. Obviamente viajou ao longo de um túnel pessoal e intransmissível. Ao regressar do transe, exclamou: «Esta caverna é minha!» Referia-se ao túnel. Mas todos entenderam outra coisa.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

A bagagem

Embora ao afirmá-lo ninguém tenha entrado ainda na barca de Caronte, poucos evitam fornecer conteúdo à expressão «O que se leva desta vida». Seria, claro, excessivo sustentar que dela «nada se leva»: pelo menos alguns átomos integram a bagagem. Mas acrescentar a isso a feijoada, a cerveja, o festim, as leituras, as viagens, as meditações, etc., constitui um mero exercício de auto-justificação. Sabendo-o, os deuses eventuais não nos censuram: eles apreciam o lado humorístico das nossas existências.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

O absurdo

Há cem anos, Albert Camus entrou num mundo «privado de ilusões e de luzes». Estrangeiro de alma, acabaria por reconhecer que a vida é absurda. Tal conclusão mostra-se promissora: livra-nos da maçada de perguntar pelo sentido último e pelas causas primeiras. Ironicamente, no interior da lúcida revolta, não caminhamos sós: «Um homem que se torna consciente do absurdo fica-lhe ligado para todo o sempre.» Se preferirmos, até que a morte os separe. Ou os una em definitivo.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Ciclo existencial

Vem n’A Náusea e gera tédio: «Todo o existente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por acaso.» Poderia dizer-se o contrário e nem assim se perderia eficácia: «Todo o existente nasce com motivo, prolonga-se por vigor e morre por decreto.» À nudez do absurdo persistente opor-se-ia a capa do destino irrevogável. Embora fecundo e enfático, o axioma de Sartre presta homenagem ao desencanto: nasceu sem ilusões, prolonga-se por teimosia e morrerá por excesso de evidência.

sábado, 2 de novembro de 2013

Lugar desconhecido

Periandro de Corinto pediu a dois homens que se encontrassem, algures, com um terceiro e o matassem e enterrassem; ordenou a quatro que assassinassem e sepultassem os anteriores, e requisitou um bando para fazer o mesmo àqueles quatro. Periandro — que era o terceiro — deixou assim desconhecida a sua derradeira morada. Como se, por natureza, ela o não fosse já. «Assear as campas» personaliza o que a estatística despreza; mas não torna menos incógnito o lugar da morte.

sábado, 19 de outubro de 2013

«Meditatio mortis»

Recomendarão os sábios que se medite na transitoriedade da existência, focando o pensamento em sepulturas anónimas, lápides quebradas, memórias desfeitas, galáxias implodidas. Isso, todavia, cansa: vai-se demasiado longe e o horizonte repete-se. Há um processo mais eficaz e que envolve menos gasto energético. Bastará permanecer quieto como a urze e matutar: «Eu sou este exacto instante. Acabou.» Claro: ainda resta o instante seguinte. Mas esse é unicamente a sombra do anterior: nunca se espera dele grande coisa.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O som e o agoiro

Foco a atenção no grasnar madrugador de um corvo e não detecto aí razões que justifiquem para esse animal o estatuto de «ave agoirenta». Ouço o «Ah!» com que se expressa admiração, o «A» com que desponta o alfabeto e o «Há» com que se afirma a existência. Os sinais da morte exterminadora parecem ausentes deste auroral crocitar. A menos que nos estejamos a referir à «morte» num sentido esotérico ou iniciático. «Não é assim, corvo?» «Ah!»

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Já cá faltava a hagiografia borgesiana
(ou «Alguém lhe explique os documentários da National Geographic»)

Um amigo meu comentou assim as reacções nas redes sociais à morte de António Borges:

metade dos tugas adora cuspir na campa de qualquer um que tente ensinar-lhe aritmética e berra que a aritmética é faxista e inconstitucional...

As receitas económicas de António Borges — homem da Goldman Sachs, organização com responsabilidades criminosas no colapso económico e social em que nos vamos afogando — são uma tentativa de «ensinar aritmética» aos Portugueses na mesma medida em que o objectivo da chita é ensinar a gazela a correr.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Marcante e inabalável

Cavaco Silva enviou publicamente condolências pessoais à família do falecido economista António Borges. No texto, o Presidente da República considera-o «uma personalidade marcante da vida pública portuguesa», «um dos economistas mais brilhantes da sua geração», que «teve, ao longo de décadas, uma influência profunda em gerações de estudantes das melhores escolas de economia e gestão». Realça ainda a «firmeza inabalável das suas convicções».

Quanto à inabalabilidade das convicções de António Borges, discordo de que possa ser considerada uma qualidade: as convicções devem ser abaladas — quando os factos as contradizem. Coisa que, efectivamente, não ocorreu com o extinto economista ultraliberal. (Nesse sentido, infelizmente, Cavaco tem razão.)

Quanto ao brilhantismo do académico e à influência profunda que teve em gerações de estudantes de economia e gestão, calar-me-ei — para deixar o estado do país falar.

Por fim, o epíteto de «marcante». Terá sido, admito-o. Também a Pneumónica o foi.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Os dois dias

Porventura desejoso de exibir ataraxia estóica, alguém afirmará que o dia da sua morte «será igual aos outros, apenas mais curto», esquecendo de referir o do nascimento (ou o da concepção, se buscamos rigor), frequentemente ainda mais curto que o da morte. Aquele que cessou de recear a Ceifeira mencionará os dias primeiro e último com imparcialidade. Talvez sejam ambos absurdos — e os restantes os imitem. Contudo, até nisso verá mero detalhe quem ascendeu a imperturbáveis cumes.

sábado, 17 de agosto de 2013

Silêncio

Pergunto-lhes se têm «ódio ao silêncio». Um dos alunos esclarece que, para silêncio, bastará quando estiverem «debaixo dos torrões, na companhia dos mudos». O enunciado é violento. Tornar-se-ia, contudo, mais suportável se o moço optasse por expressões como «sob o solo», «junto aos incapazes de grito ou asserção». Preferiu, no entanto, os «torrões» pesados e a «mudez» contrafeita. Entendo a aparente escolha. O medo irreflectido do silêncio, inseparável do terror da morte, não permite eleger palavras brandas.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Palavras e silêncios

Terão sido estas as últimas palavras de Jane Austen: «I want nothing but death!» Por sua vez, Rousseau descreve-nos os meandros da agonia de certa mulher cujos derradeiros vocábulos, precedidos de sonoro traque, foram os seguintes: «Femme qui pète n’est pas morte.» Se houver ainda lucidez para compor a frase final da vida, uns decidem manter a solenidade, outros resolvem quebrar o protocolo. Só a morte persiste em não dizer qual dos dois exercícios mais lhe agrada.

sábado, 6 de julho de 2013

A origem do conflito

Aos defensores da teoria da reencarnação coloca-se o problema de saber em que momento a velha alma se introduz em novo corpo. Três hipóteses: por altura do acto fecundante, ao longo da gestação ou pouco antes do nascimento. Embora metafisicamente implausível, a terceira conjectura é, psicologicamente, a mais reveladora. Com efeito, ela fornece uma explicação radical para os nossos desajustes e conflitos internos: o facto de a alma dar entrada num corpo que se encontra de saída.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Olhar fixamente

«Nem o Sol nem a morte se podem olhar fixamente», assegura La Rochefoucauld. Impõem-se dois eventuais contra-exemplos. Terão sido estas as últimas palavras de Goethe: «Luz, mais luz!» Talvez ele estivesse a olhar fixamente uma espécie de sol. Nos derradeiros instantes, Fernando Pessoa conseguiria ser menos poético: «Dá-me os óculos…» Talvez ele quisesse olhar fixamente a própria morte. Mas convém não omitir, em nome da transparência, que o primeiro era um romântico e o segundo um fingidor.