quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Os filósofos e os hospitais

Os hospitais não são os lugares favoritos dos filósofos que elaboram sistemas capazes de transformar a realidade num hino à geometria: quando vistos de perto, a doença e o sofrimento abrem fissuras irreparáveis no desenho abstracto do mundo. Os filósofos não sistemáticos, embora sensíveis, como Miguel de Unamuno, ao «homem de carne e osso», também costumam afastar os hospitais do seu leque de preferências. Porquê? Todos o sabemos. Só a filosofia teima em não encontrar cabal resposta.

Countdown para 2 de Março: 2...

Governo de Pedro Passos Coelho (burros) = Cavalo de Troika


Peço desculpa aos dignos membros da espécie Equus a. asinus pela metáfora aviltante...


O cartaz anterior foi feito em Setembro de 2012, numa altura em que eu ainda achava que o n.º 1 do Governo era Pedro Passos Coelho. Face à realidade observável de quem realmente manda (tornou-se evidente que Passos Coelho é um mero poster boy), creio que é de justiça actualizar o cartaz:

Governo Gaspar (burros) = Cavalo de Troika


Nota: Clique nas imagens para obter versões com resolução suficiente para impressão com alguma qualidade.

Trash lovers

De vezes em quando, o Jumbo põe DVDs de filmes em promoção e desperta o adolescente que há em mim. E o consumidor. (E o idiota.) Aparentemente, filmes a um euro são boas aquisições, mas tendo em conta que a maioria deles não vale um chavo, um euro é na realidade um preço exorbitante. Claro que o puto estúpido que eu consigo ser não se importa nada com isso. Um contentor a transbordar de DVDs é uma visão irresistível. Atiro-me a ele como Ali Babá ao tesouro dos quarenta ladrões (o que, como metáfora, nem é assim tão desajustado, se considerarmos a verdadeira natureza do capitalismo e a quantidade de vezes que já murmurei Abre-te Sésamo em frente às portas automáticas do estabelecimento).
Partilho com Vasco Pulido Valente um vício ou um defeito (apenas um dos muitos que ele tem, ok?): tenho demasiadas vezes uma necessidade inelutável de consumir policiais como narcótico, para distracção da vidinha medíocre. O cronista do Público lê policiais eu vejo policias, se os apanho. E filmes de ETs. Sempre que o Jumbo faz as suas feiras de um euro, eu encho uma cesta de DVDs. Depois passeio-os pela loja com a alegria de um adolescente ou de um titular de cartão de crédito da década passada, e de seguida, mais responsavelmente do que estes, devolvo a maior parte dos filmes à proveniência (faço uma triagem mental enquanto me abasteço de mercearia). Saio de lá, ainda assim, com meia dúzia deles, geralmente mais seis do que aconselhariam o bom-gosto e o bom-senso. Nem sempre reconheço para mim próprio o quanto isto é patético. Por vezes trago um Hitchcock ou um galardoado de Cannes para ludibriar a consciência. A comparação com outros prospectores de lixo também me serve de alibi. Ao contrário de alguns tipos que mergulham no contentor como porcos numa manjedoura, numa ânsia de encontrar pérolas que faz transbordar o recipiente, eu vou fazendo a selecção com pinças e torcidelas de nariz, e chego a arrumar o que os outros desarrumam, como se o lixo em montinhos fosse menos asqueroso. Ontem um dos trash lovers estava em franca competição comigo, mas, vendo-me atrasado no meu falso pudor, teve um gesto magnânimo: ofereceu-me uma das suas melhores descobertas. Aquilo começou por me desconcertar (eu estava a tentar passar despercebido, e não imaginava que me pudessem achar camarada numa coisa destas), e de seguida deu-me ares de superioridade. O tipo tinha-me estendido um exemplar de “A Super Patrulha” (“Crime Busters”), com Terence Hill e Bud Spencer, e por alguma razão eu achei, com uma risadinha snob, cretina, que a merda que levava no carrinho de compras se não comparava àquilo.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O interesse da aposta

Pesando ganhos e perdas, Pascal concluiu ser mais vantajoso para a criatura apostar na existência de Deus que na sua inexistência. Acusaram-no de interesseiro. Como se a matéria em análise, indissociável da fé, não fosse ponderada sempre, lá no fundo, sob influência do interesse: creio, se tal se revelar oportuno; descreio, se isso me convier; evito pronunciar-me, se aí residir o benefício. As diversas provas e refutações, essas, são meros rendilhados do santo calculismo que nos move.

Countdown para 2 de Março: 3...

Conselho de Ministros no País das Maravilhas


Só para lembrar (se preciso fosse...) as razões do nosso descontentamento.


Chapeleiro Louco: Vítor Gaspar
Lebre de Março: Pedro Passos Coelho
Gato de Cheshire: Miguel Relvas
Alice: Álvaro Santos Pereira
Coelho Branco: José Pedro Aguiar Branco
Rainha Vermelha: Assunção Cristas
Rainha Branca: Paula Teixeira da Cruz
Lagarta: Paulo Portas
Rato: Pedro Mota Soares
Tweedledee e Tweedledum: Paulo Macedo e Miguel Macedo
Humpty Dumpty: Nuno Crato

Segunda Lei de Newton

Ainda pensa nele com frequência, e alimenta com denodo aquela ideia tola de que um dia se vão encontrar à entrada da ponte. Volta lá todos os sábados, à mesma hora, com a desculpa do trekking. No início imaginava-o a ir até ali nem que fosse uma vez por curiosidade, como se também ele ocupasse os seus pensamentos com ideias daquelas. A literatura dedica-se frequentemente a testar realidades alternativas, a averiguar como seriam as coisas se diferentes opções fossem tomadas, diferentes forças tivessem agido, a conceber novos destinos e desfechos para eventos conhecidos do público ou do autor. Pode dizer-se muitas vezes que um romance é uma variação sobre um tema e que, sendo as variações infinitas, os temas o não são. No caso dela, isto é uma verdade insofismável: o seu único tema é o encontro malogrado.
Acontece que ela não é uma escritora, apenas uma pessoa um pouco perdida, pelo que o exercício ficcional reiterado não lhe traz elogios da crítica, mas a censura branda do psicanalista. Imaginá-lo uma alma gémea, alguém que não resiste um dia a vir até ali interrogar-se sobre que rumo teria tomado a sua vida se tivesse comparecido ao encontro, faz parte da patologia dela e é uma nova motivação para a saída de sábado à tarde. Que se junta à já de si suficiente tendência para remoer frustrações com método.  
Hoje, porém, está prestes a descobrir que as coisas podem mudar. Parou como sempre na entrada da ponte, para consultar o telemóvel e perscrutar o horizonte num gesto ritual, evocativo, fingindo uma pausa para beber água e retomar o fôlego. Sempre pensou que se o encontrasse a meio de uma das suas caminhadas a visão dele seria suficiente para a deter. Mas, porque ela está de momento parada e ele vem com o braço pelo ombro de uma qualquer, o princípio fundamental da dinâmica será demonstrado de forma diferente: quando ela os vê, sente um desejo súbito de experimentar o jogging e sai a correr na direcção da força que emana do casal, mas em sentido contrário à localização deles.
Se a força gravitacional dos corpos pode ser uma boa imagem para descrever o amor, a segunda Lei de Newton pode talvez usar-se com igual propriedade para assinalar a evolução desportiva de uma rapariga magoada.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Para lá dos modelos

Ao criarem o modelo de ser humano que as legitima, e que os seus membros aprovarão como sinal de que há rumos seguros e destinos exemplares, as diversas comunidades tendem a gerir a «sociabilidade insociável», enunciada por Kant, de tal modo que o valor implícito no primeiro elemento da expressão se conserve imune aos eflúvios perversos denotados pelo segundo. Um destes é a solidão intransferível que nos torna errantes; outro, a rebeldia metafísica que nos torna únicos.

Countdown para 2 de Março: 4...

Sacrifícios? Fiz. Faço. farei. Harakiri? Não, Obrigado! Aos membros do Governo: TENHAM JUÍZO!


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Primeira Lei de Newton

O ritmo dos seus passos abranda com a subida, mas não é subida que a faz abrandar. À entrada da ponte pára, como se estivesse indecisa quanto ao caminho a escolher. Mas não está. Olha em volta, mas não há sinal da silhueta dele no horizonte. Consulta o telemóvel, e não tem nenhuma mensagem. Não está segura de querer ter uma mensagem. Podia ser uma do género «Estou atrasado, não demoro», mas também podia ser pior. Um evasivo «Não posso» ou um assertórico «Não vou, foi um engano.» Afinal, as coisas não haviam ficado assim tão claras. Tinham combinado às duas no parque, mas quanta convicção há num «sim»? Ela não lhe mandou nenhum sms a pedir-lhe que confirmasse, temia dar-lhe uma oportunidade de agora responder «não». É mais fácil responder do que tomar a iniciativa. Por vezes também é mais fácil aparecer a um encontro do que dizer-se que não se quer ir a esse encontro. A inércia dos corpos e da vida. Ela deposita nesse princípio da dinâmica as suas últimas esperanças, se tudo o resto falhar. Tem esperança que ele apareça nem que seja para não se dar ao trabalho de faltar.
Consulta de novo o horizonte e o ecrã do telemóvel, mas não há sinal dele, nenhuma das suas manifestações possíveis tem lugar. Apenas a passagem do tempo, assinalada com quatro dígitos que há muito deixaram de ser 14:00.
Então começa a descer o caminho pelo outro lado e os seus passos vão acelerando. Como uma bola que, depois de quase se deter ao chegar ao cume, ganhasse de novo velocidade na descida, a gravidade vencendo o atrito. Em poucos minutos adopta um passo furioso, como o daquelas outras raparigas que vão ao parque para caminhar, gastar calorias em marchas vigorosas, de fato de treino justo, garrafa de água na mão e um tagarelar ofegante. Ao fim de um quarto de hora de caminhada, descobrindo centenas de metros depois prazeres insuspeitados no esforço físico e remoendo o despeito amoroso, consegue-se imaginar a fazer aquilo para o resto dos seus dias: tornar-se viciada em caminhadas e presa a um encontro que não ocorreu. Não é preciso muito: umas sapatilhas com bom piso e um espírito romântico obsessivo, também ele obediente, na sua persistência, à primeira Lei de Newton.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Nevoeiro

De longe, diz uma delas: «Com este nevoeiro, a gente nem se vê!» «Hã?», pergunta a segunda mulher. «Com este nevoeiro, a gente nem se vê!», repete a primeira. «Ora, vê lá tu!», exclama a outra. Também faria sentido declarar: «Com este nevoeiro, a gente nem se ouve!» E aqui é obrigatória a evocação do último poema da Mensagem, adaptado ao presente. Hoje, mais que nunca, Portugal é nevoeiro; mas gastaram-se de todo os sinais do Desejado.

Countdown para 2 de Março: 5...

T-shirt: 'Ich bin ein' mexilhão


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domingo, 24 de fevereiro de 2013

Livros e estantes

Se cresce o número de livros nas estantes, aumenta a consciência de que a maior parte ficará por ler, agudizando-se em simultâneo a omnipresente certeza da finitude. Se o número de livros diminui nas estantes, enfraquece o impulso que nos fazia ver neles o lugar de uma pequena redenção. Daí os leitores notarem, se minimamente compulsivos, que as relações entre os livros e as estantes são mais de insólito e geral conflito do que de beatífica irmandade.

Do «de» e do «da»

Remetendo a questão para o bas-fond, também será legítimo perguntar qual a diferença entre um filho de puta e um filho da puta?

Countdown para 2 de Março: 6...

Ministros dizem: «Muitos pobres cotizados fazem um rico, baby!»


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Coisas de que gosto mesmo

Gosto dos governantes que adoptam medidas ruinosas atrás de medidas ruinosas, e que, perante a oposição popular, vêm humildemente reconhecer que «muitas das [suas] medidas não estão a ser bem comunicadas».

Não é um problema comunicacional, Álvaro! Não há gabinete de comunicação que transforme um cagalhão em cordon bleu.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Revisão antes do sono

Consta que se dormirá bem, para lá de esotéricas vantagens, se se revir mentalmente o ocorrido ao longo do dia, desde o fim até ao início. Mas evocar acontecimentos na ordem inversa obriga a lembrar a sucessão normal de cada um, e isso contradiz o exercício. Parece, então, preferível colocar o dia entre parêntesis, fingindo depois que tal conteúdo “não tem sentido”, do que lançar a mente numa espécie de marcha atrás, sujeita a indecisões e solavancos.

Countdown para 2 de Março: 7...

Sinal: Portugal: PERIGO! País em mau estado

Novo sinal de trânsito, a afixar em todas as fronteiras terrestres, marítimas e aéreas.


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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O protesto mais parvo da história universal dos protestos

falsa factura em nome de Pedro Passos Coelho

Segundo o Público:

Consumidores pedem facturas em nome de Passos Coelho

O feitiço virou-se contra o feiticeiro. Em protesto contra a nova legislação que penaliza com multas até 2000 euros quem não pedir facturas, muitos consumidores começaram a pedir facturas com o número de identificação fiscal de Pedro Passos Coelho. Os dados do primeiro-ministro estão a ser divulgados em SMS e emails que se tornaram virais. As redes sociais estão a propagar o protesto.
[...]
O número de contribuinte do primeiro-ministro não é, contudo, o único que está a ser difundido através das redes sociais. Também o NIF dos ministros Vítor Gaspar e Miguel Relvas estão a ser divulgados e partilhados no Facebook e no Twitter com a sugestão de que sejam usados para o mesmo fim.
[...]
Em teoria, Passos Coelho pode até ser investigado pelas Finanças, por ter gasto um valor superior aos seus rendimentos. Vários serviços do Fisco contactados pelo Correio da Manhã — que dizem estar a par do que se está a passar — admitiram a possibilidade de o primeiro-ministro poder vir a ser alvo de uma investigação das Finanças, uma vez que existem “mecanismos de fiscalização automáticos que disparam quando um contribuinte gasta em facturas mais do que aquilo que declara como rendimento”.


Eis o protesto mais parvo da história universal dos protestos, por (pelo menos) quatro razões:

  1. Estou mesmo a ver Pedro Passos Coelho, Vítor Gaspar ou Miguel Relvas a serem “chateados” pelas Finanças para os fiscalizarem. O primeiro-ministro há tempos dizia que dormia perfeitamente — imagino o quanto a perspectiva de cair sob o martelo do fisco lhe esteja a tirar o sono...
  2. Mesmo que tal fiscalização ocorresse (o que, sabemos bem, nunca acontecerá), estes ministros, tal como quaisquer outros contribuintes “vítimas” de tal brincadeira, conseguiriam safar-se facilmente mostrando que é impossível terem estado em todos os sítios a que respeitam esses milhares de facturas (algumas certamente emitidas quase simultaneamente em locais afastados por dezenas ou centenas de quilómetros).
  3. Se é verdade, como no site «e-faturas» dizem, que o contribuinte final nem precisa (embora possa, como garantia) registar as facturas electrónicas emitidas com o seu NIF, pois terá automaticamente direito ao benefício fiscal quando o comerciante comunicar os dados das facturas que emitiu, então estes protestos só vão garantir que Passos Coelho e outros ministros “afectados” conseguem o máximo de benefício fiscal à custa de terceiros. 250€ (valor máximo) não os aquecem ou arrefecem, mas não deixa de ter piada que um protesto resulte em benefício fiscal para o alvo do protesto.
  4. Se é verdade que há falta de segurança na transmissão dos dados das facturas, podendo um desconhecido não autorizado (com alguns conhecimentos de informática) aceder a informação que viole o direito à privacidade dos contribuintes (onde estiveram, quando, o que compraram...), então este protesto tem também como consequência proteger a privacidade de Pedro Passos Coelho e dos demais afectados: ao emitirem tantas facturas com informação falsa, conseguem soterrar os reais consumos e a localização dos ministros, que efectivamente não se distinguirão dos consumos falsamente atribuídos a eles, pelo que tais informações (as verdadeiras) continuarão no foro privado. É um caso de privacidade garantida pela “multidão”. Passos Coelhos, Relvas e Gaspar agradecem.

Explicar o vazio

Dirá o materialista que a sensação de fome constitui a modalidade primordial do vazio interior e que a impressão da falta de sentido do existir é mero efeito da carência de trigo, feijão e couve-lombarda. Sendo assim, por que motivo tal impressão surge igualmente no espírito logo após o almoço? Porque, responderá o materialista, aquilo a que chamamos espírito se reduz a um aglomerado de sinapses indecisas e de neurónios vagabundos que chegam sempre atrasados às refeições.

Sobre a “obrigação” de pedir factura

Leio no Público:

PCP vai propor fim das multas para quem não pede factura

O PCP quer revogar a norma que estipula multas quem não pede factura ou recibo, e vai apresentar na Assembleia da República uma proposta nesse sentido na próxima semana.
[...]
O PCP vai propor a eliminação “não do dever de pedir factura, mas da coima que penaliza os consumidores que não a queiram” [...]


O PCP está errado: a obrigação de pedir factura devia mesmo ser revogada, não apenas abolida a respectiva coima. Porque tal obrigação, ainda que consagrada na lei, é absurda: a lei que a consagra é abusiva.

Se o comerciante é já por lei obrigado a emitir a factura, por que razão tenho eu de pedir uma coisa que ele já é obrigado a fazer?
Vejamos: a lei já diz que ele pode emitir a factura sem dados do cliente final (pois eu não sou obrigado a dar-lhe os meus dados), e que o facto de eu não pedir factura não é desculpa para ele não cumprir o seu dever da emissão da dita. Se assim é, mais uma vez não faz sentido eu ser penalizado por não pedir factura, até porque a minha omissão/recusa não significa prejuízo para o Estado (a do comerciante, sim).

Mesmo o cenário em que ele pergunte «Quer factura?» e eu responda «Não», também nada configura de ilícito da minha parte. Eu estou simplesmente a dizer que eu não quero a factura — não estou a dizer que quero que ele não emita a factura. Ele que a emita, como é sua obrigação — ainda que sem os meus dados (se eu não os fornecer), e mesmo que eu me recuse a pegar nela ou simplesmente a esqueça no balcão. A factura tem de constar da contabilidade dele, não da minha.

A única situação em que as Finanças têm o direito moral e lógico* de penalizar o consumidor final, nesta questão das facturas, é se este for parte beneficiada em eventual fraude fiscal: se, por iniciativa do cliente ou do comerciante, a não emissão da factura tiver como contrapartida um desconto no preço final pago pelo cliente (por exemplo, o comerciante “não cobra” o valor do IVA se não houver factura a provar que a transacção sequer ocorreu).


* E não meramente legal, porque, repito, a lei actual é abusiva.

Fast food

cavalo de corrida

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Imagens que se quebram

Um miúdo pisa com violência, enquanto corre, o brinquedo abandonado no chão de ladrilhos hexagonais. Instintivamente, suspende o ímpeto daquela espécie de fuga e retrocede a fim de avaliar os danos e, ao mesmo tempo, recolher alguma peça que ainda se ajuste à ideia de se divertir. Também estas imagens são quebradiças, como a ilusão da originalidade, que é sempre a penúltima coisa a perder. E ela perde-se quando se descobre que nada resta já para salvar.

«Grândola devia ser a única palavra da língua portuguesa.»

Manifestação de estrunfes: GRÂNDOLOS UNIDOS JAMAIS SERÃO VENCIDOS! Grandolizemos o Relvas! Gaspar, não! Grândola, sempre!

Não consegui resistir, Rui.

Grândolas de manhã à noite

À direita e à esquerda é agora moda haver quem se incomode com o uso da Grândola como forma de calar políticos. A democracia, o direito de expressão e mais não sei o quê... Vão tomar no cu outra vez! O grande atropelo à democracia, à decência e à dignidade é a manutenção de Relvas no Governo. Enquanto ele lá continuar, enquanto for ministro deste país um tipo que representa os nossos piores defeitos em vez de nos representar, a vida pública portuguesa devia hoje ser feita de grândolas de manhã à noite. Devíamos levantar-nos às cinco da manhã para cantar a Grândola durante as abluções; voltar a ela antes do almoço ou do moscatel; entoá-la nas vésperas com o chá ou a imperial; atacá-la em coro depois do jantar ou do brandy; voltar a ela à hora de regressar a casa, ébrios ou purificados pela missa do galo. Um país que tem Relvas como ministro precisa de ser varrido a grândolas, precisa de um tsunami de grândolas. A palavra-passe para aceder à cidadania portuguesa nestes dias devia ser «grândola». Grândola devia ser a única palavra da língua portuguesa. A qualquer pergunta que nos fizessem nós devíamos responder grândola. O nosso quotidiano devia ser grandolizado. Devíamos amar-nos ao som de Grândola, Vila Morena. Dizer grândola como quem diz amo-te. Dizer grândola como quem diz vai-te foder. Dizer grândola como quem diz tá tudo, vai-se andando, nunca pior, as coisas que costumamos dizer quando não estamos contentes nem tristes. Todos aqueles que não são Relvas ou cúmplices de Relvas neste país deviam enfiar uma polifónica Grândola pelo cu acima do Governo, dos seus acólitos e dos sujeitos do PS que se incomodam com a Vila Morena. E, não dando resultado, a própria azinheira, com todos os nós e toda a rugosidade da sua venerável casca sem idade, deveria ser enfiada pelo cu acima daquela gente.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Prazer em conhecer

A expressão «prazer do conhecimento» parece referir-se, no mínimo, a uma de duas coisas: à emoção estética obtida dos conteúdos teóricos ou ao antegozo ardente dos resultados práticos. Fora de tais benefícios, restará a «dor do saber» de que fala o Eclesiastes. Mas o antigo pessimista não indicou a percentagem dessa dor inevitável — se acaso admitiu a existência de algum prazer contrastante. É igualmente improvável que o faça de modo certo quem opte pelas vias da ignorância.

Voar no paradoxo

Olha, Zé, afinal não é apenas possível buscar o paradoxo — podemos também voar nele:

ICELANDAIR INFLIGHT SURVEY. Question #1 of 1: There is no survey currently running. Agree / Disagree

Fonte: I Love Charts

Era o orgulho dos pais

Era uma moça prendada, que andava sempre na linha. Um dia veio um comboio e colheu-a.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Fluir e reflectir

O incansável fluir da realidade nada parece dever ao insistente “voltar atrás” do pensamento reflexivo. Também este, contudo, integra o fluir incansável, com seus regressos, pausas, hesitações. Enquanto assim medito, reparo na silhueta de um pelourinho desenhada numa das portas de certa viatura. Tento relacionar a imagem que chega com a ideia que surge. O exercício revela-se fatigante. O carro há-de partir, levando a memória do pelourinho. A realidade passa bem sem os breves suplícios do intelecto.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A insistente alteridade

«O que eu pretendo que os outros pensem de mim» constitui uma estrutura mental difícil (até impossível) de satisfazer. Por dois motivos: primeiro, porque esse outro é plural; segundo, porque essa estrutura não é racional. Muitos tentam livrar-se dela rumando a desertos físicos ou a metafísicos ermos. O problema reside no facto de não conseguirem abandonar o outro enquanto renovada medida que lhes faz sombra — ou de insistirem em imaginá-lo enquanto invisível presença que lhes traz luz.

Dar uma por semana (6)

Obtusa: s. f. Fetiche com tampões e pensos higiénicos. [Wackypedia: contributos para um léxico alternativo]

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Minimizar o esforço

Estratégia relevante quando, não se podendo minimizar o trabalho, se procura minimizar o esforço consiste em supor uma dissociação interna entre certa ou alegada entidade imaterial, que permanece em descanso, e a restante engrenagem do eu, na qual se insere o sujeito que labora, física ou intelectualmente. Depois, um indivíduo finge — até se tornar verdade — ser apenas a primeira, observando em repouso o trabalho da segunda. Mas obviamente, para aí chegar, outro tipo de esforço é exigido.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Mera hipótese

Trata-se de uma hipótese a aguardar cuidada investigação, embora se me afigure bastante plausível: qualquer pessoa com uma das características a seguir indicadas tem, inevitavelmente, as restantes duas. Ei-las: ser rigorosamente pontual, sintético no uso da palavra e avesso a sujeitar o semelhante à visualização das eventuais fotografias tiradas durante as últimas férias. Acrescente-se que o detentor de tais qualidades não se limita a respeitar o tempo do outro: sabe honrar a natureza do seu próprio tempo.

Conversa da treta das agências de rating

SOCK PUPPET RA(N)TING. Moody's: *You* fucked up really bad, mister. 'Baa2' to you, and counting down! Standard & Poor's: *I* fucked up?! *You* fucked up!!! Fitch: Ooh, I'm *so* downgrading you both...

Público: «Moody’s corta rating da Standard & Poor’s»


Texto: Fernando Gouveia. Desenho: Matthew Buck. (Parece ter sido desenhado de propósito para o meu texto, mas não foi.)


Versão traduzida (perde-se o trocadilho entre «ranting» (dizer coisas sem sentido) e «rating», mas é a vida...):

CONVERSA DA TRETA ENTRE MEIAS-FANTOCHE. Moody's: *Tu* fizeste merda da grossa, meu. Toma lá 'Baa2', e é só para começar! Strandard & Poor's: *Eu* fiz merda?! *Tu* é que fizeste!!! Fitch: Ui, ó pra mim a desvalorizar estes dois...

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Pausa reflexiva

No centro comercial, as escadas rolantes devem constituir o lugar móvel das pausas filosóficas. Talvez perguntem os que sobem: «De onde vimos?» Talvez, os que descem: «Para onde vamos?» Talvez, ao passarem uns pelos outros, se interroguem: «Quem somos?» Ainda que não formuladas mentalmente, as questões parecem implícitas atrás desses rostos, cuja melancolia é de alto preço. Mas esta acabará por se esbater quando os olhos pousarem, ao fim da escada, na montra que anuncia preços baixos.

E o Oscar da Lógica vai para...

talho de carne de cavalo

Por essa Europa fora há um escândalo com a venda de produtos ultracongelados (hambúrgueres, lasanhas, etc.) à base de carne de cavalo vendidos como se fossem de carne de vaca. Em vez de ir a um supermercado apurar se o escândalo está a afectar a venda de ultracongelados à base de carne picada, uma jornalista da SIC achou que fazia mais sentido ver de que forma a venda de cavalo por vaca afecta negativamente aqueles que vendem cavalo por cavalo.

Pergunto-me se à jornalista em causa lhe falta discernimento, ou se confia que nos falte a nós.


P.S. O título da reportagem, conforme ele surge no site da SIC Notícias, é enganador, por ambíguo: «Governo garante que não há registo de casos de carne de cavalo em Portugal». O que são «casos de carne da cavalo»? É preciso distinguir a venda de carne de cavalo como se fosse de outro animal (o que é ilegal) da simples venda de carne de cavalo (que é legal, se for assumido que é de cavalo). O título não faz essa distinção.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

O número

Um preso recente, intrigado com o facto de os outros se rirem sempre que um deles gritava um número, foi informado de que esses números correspondiam a anedotas, que assim escusavam de ser repetidas por palavras. Quando, porém, ele gritou «63», ninguém se riu. Disseram-lhe que tudo depende da maneira como a anedota é contada. (1) Tal maneira ou se ajusta ao humor do objecto ou traduz uma inépcia que, por vezes, nem sequer é objecto de humor.


(1) John Allen Paulos (s/d), Penso, Logo Rio, Lisboa, Editorial Inquérito, p. 52.

O homem é bicho fodido de se aturar

Os dados dos casamentos e divórcios entre pessoas do mesmo sexo, desde 2010, são claros: os casamentos entre homens (268) representam menos de metade dos casamentos entre mulheres (597), mas os divórcios entre homens (20) são o dobro dos divórcios entre mulheres (10).

Com todas as reservas que as estatísticas de pequenos números nos merecem, vou arriscar uma conclusão: o homem é bicho fodido de se aturar.


Fonte: Público, “A evolução do estado civil em Portugal” (infografia)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

O breve intervalo

Se a mente, no instante imediato ao acordar, revisita de súbito algum episódio da véspera, tende a intuir nele uma realidade desconexa e espectral. Mas ela recompõe-se logo a seguir — e o mundo volta a ganhar os liames que lhe conferem espessura e significado. É como se houvesse uma ilusão de sentido que nos mantém despertos, uma vocação para o absurdo que nos permite adormecer e um breve intervalo para mostrar a convergência de ambas as coisas.

Coerência

bêbedo

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Será que a gente se entende?

Eis a alegadamente última frase de Hegel: «Houve só um que me entendeu e nem sequer esse me entendeu.» (1) Se os conceitos representam o lado íntimo das palavras, aqueles que povoam a mente alheia são inapreensíveis. Constitui, pois, verdadeiro milagre o mútuo entendimento — ou a ilusão disso. Ignorando se me fiz entender, creio que o melhor é aceitar a paródia à referida sentença hegeliana: «Houve só um que me entendeu e a esse não o entendi eu...» (2)

(1) Cf. Pedro González Calero (2009), A Filosofia Com Humor, Lisboa, Planeta Manuscrito, p. 125.
(2) Idem.

Beatas e expressões

Descem a rua com os seus trajes austeros, quase um uniforme, os seus missais seguros com as duas mãos ao nível do ventre e envoltos em rendas, os seus rostos duros, ferozes, até, desenhados a moral e censura. Têm expressões de instrumentos de Deus, prontas para Lhe limparem a casa (e a do padre, Seu representante) ou exercerem a Sua fúria vingadora, mais para isto do que para aquilo. Olhamo-las e imaginamos que o amor a Deus e a obediência à Verdade são a causa de terem rostos que não enganam, que transparecem a condição de cães de guarda da moral.
E no entanto erramos frequentemente no jogo de adivinhar se uma fotografia no JN é de vítima ou carrasco. Não raro os mortos têm cara de vilões e os assassinos expressão sofredora.

Freak show

Saio à rua e vejo um pequeno desfile que num relance me parece um freak show. Um grupo bizarro de rapazes e homens batendo em tambores, liderado por um sujeito a cavalo e seguido em procissão por meia dúzia de junkies de membros magros e rosto desfigurado. O do cavalo manobra no ar um bastão quase invisível de fino e felizmente inútil (o ritmo já é incerto que chegue assim, sem ninguém obedecer à sua marcação errónea). Cavalga como certas figuras antigas de aldeia, costas arqueadas, queixo recolhido no peito, dormitando ou mal equilibrando a bebedeira. Os que o seguem, com as suas idades, estaturas e bombos sem aprumo nem ordem, imitam demasiado bem uma tropa fandanga que tivesse por uniforme os andrajos desenterrados num saque de aldeia miserável. Atrás do cortejo, os heroinómamos das redondezas, embasbacados e marchando como zombies sem destino.
Depois esfrego os olhos e noto que é apenas um desfile de Carnaval, um que não precisou de investir muito nos disfarces para alcançar aquele efeito. É uma ronda dos arredores que desceu à cidade percutindo bombos e causando pasmo aos junkies do bairro e a mim. Ou só a mim: os junkies nem assistem ao triste cortejo, apenas coincidiram na rua no momento do desfile, a caminho dos seus habituais compromissos inadiáveis.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Buscar o paradoxo

Leio na capa de um livro recém-publicado: contém documentos inéditos. Mudemos de assunto. Um afirma que «acredita em Deus», outro que «não acredita», um terceiro dirá que lhe tem «ouvido silêncios impecáveis e isso basta». Só o último percebe que o que está em jogo — o que melhor se ajusta à humana condição — dificilmente será o acto de nutrir ideais redentores ou invectivas ateias, antes o de buscar paradoxos, sem cair na frágil tentação de os resolver.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

O prisioneiro

«O prisioneiro», esclarece Henry Miller, «não é aquele que cometeu um crime, mas sim o que se agarra ao seu crime e não deixa de o reviver». Falta-nos, contudo, a garantia de que alguém hábil a desprender-se «do seu crime» não continue a revivê-lo a um nível inconsciente. Técnicas de meditação ou estratégias de divertimento podem permitir-lhe abrir asas e soltar-se dos cumes do remorso. Estes, todavia, são simulacros de algo mais aflitivo que também levanta voo.

A patanisca gourmet da música

Virgem Suta: Jorge Benvinda e Nuno Figueiredo

Começo com uma confissão, que reconheço vergonhosa, e que certamente abortará qualquer ilusão de autoridade em tudo o que eu disser depois: só há coisa de uma semana sei realmente quem são os Virgem Suta.

O facto é que não tenho televisão, nem rádio. Parecendo que não, isso tem as suas consequências, e nem sempre positivas (que também as tem). Uma delas é que um bom número de músicas e intérpretes surgem, alcançam a fama, definham e desaparecem sem que eu dê sequer conta da sua existência.
Esse é o caso extremo. O mais das vezes até chego a ouvir algumas dessas músicas, ou trechos delas, dada a sua omnipresença: no rádio do carro de um amigo que me dá boleia ou do autocarro que tomo de manhã para o trabalho, na televisão alheia em frente à qual pouso brevemente ou passo de raspão, na banda sonora do ócio consumista ou mirone dos estabelecimentos comerciais. Mas o mais certo é o nome do músico, cantor ou banda não ser anunciado, ou não o ser nos breves segundos ou minutos de audição a que tive direito. (Lembro-me dos longos meses em que, com certa frequência, me cruzava com Pasión de Rodrigo Leão, na voz de Lula Pena, pensando que era de Luz Casal ou outra espanhola compatível com a minha ignorância...)
Viceversamente, há nomes da música, por vezes acompanhados da respectiva imagem, que me são familiares (estão em tudo quanto é capa de revista, noticiário e quejandos), mas cuja sonoridade desconheço totalmente. Incluem-se neste rol Lady Gaga, Paco Alborán, Justin Bieber e Rihanna, entre outros. (Não excluo a possibilidade de já ter ouvido algum tema destes intérpretes, sendo eu incapaz de associá-los mutuamente.)

E assim chegamos aos Virgem Suta. Estiveram na semana passada na minha cidade e, apesar de o nome não me soar totalmente estranho, foi apenas por recomendação de um amigo que fui ao concerto, descobrindo então que já tinha ouvido aqui e ali, ainda que incompletamente, um dos seus temas (Linhas Cruzadas, na versão com Manuela Azevedo).

Digamos que foi uma surpresa. Uma belíssima surpresa — ainda que só possível por mor da já assumida ignorância. (“Descobrir” os Virgem Suta em 2013 inscreve-se na mesma escala de mérito de descobrir o caminho marítimo para a Índia em 1755.)
Fui imediatamente conquistado pela deliciosa mistura de sonoridades pop e popular portuguesa, nalguns casos, com uma mestria inaudita, sobrevoando (sem nunca se molhar) o extremo mais kitsch do espectro: o “pimba” (por exemplo, em Tomo Conta Desta Tua Casa, Vovó Joaquina e Luso Gentleman).
Salvam os Virgem Suta (não apenas os resgatam: coroam-nos de louros, de facto) a excelência e o humor das letras, a sofisticação dos arranjos, com inesperados melódicos, e a personalidade da interpretação vocal de Jorge Benvinda. (Mérito também para o produtor: Hélder Gonçalves, dos Clã.)

Dizem-me que o vocalista do grupo tem, em Beja, uma tasca com toques de restaurante gourmet. Este facto e a música dos Virgem Suta misturam-se na minha cabeça e trazem-me à lembrança Pedro Barroso, responsável pelo restaurante do Armani Hotel Dubai, situado na torre mais alta do mundo, a Burj Khalifa. Em 2010, na inauguração da unidade hoteleira de luxo, o chef português escolheu como iguaria destinada a deslumbrar os convidados da elite mundial... pataniscas de bacalhau com arroz de feijão. Isso mesmo: um dos incontornáveis petiscos de qualquer tasca lusa elevado, pela mestria de Pedro Barroso, aos píncaros da cozinha internacional.

Pela mão de Jorge Benvinda e Nuno Figueiredo, também as sonoridades da música popular — e até popularucha — portuguesa se elevam a outros, mais estratosféricos e requintados, níveis de qualidade: os Virgem Suta são a patanisca gourmet da música.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Dizer não

Saber dizer não, quando naturalmente o não se impõe, é uma virtude. Saber dizer não, quando naturalmente o não se impõe, e evitar quaisquer desculpas movidas pelas exigências do alheio melindre, ou pelo receio do que o semelhante possa vir a pensar, é uma virtude extraordinária. Compreender e aceitar os modos possíveis com que o outro exprime a recusa e manifesta o não, sem perder serenidade nem ganhar ressentimento, constitui um dos princípios de uma vida santa.

Dar uma por semana (5)

Fornecedor. s. m. Profissional do sexo. Fornecer. v. Prestar serviços sexuais. [Wackypedia: contributos para um léxico alternativo]

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Caminhando no fio da navalha da Semântica?

Segundo o DN, Carlos Zorrinho (PS) pediu desculpa ao novo Secretário de Estado do Empreendedorismo por ter dito há dias na SIC Notícias que

[Franquelim Alves] é uma das pessoas que o Banco de Portugal considerou não estar em condições de deter atividades na área financeira.

Segundo o diário, o «Banco de Portugal [...] desmentiu a informação veiculada por Zorrinho», num comunicado onde se lia que

O dr Franquelim Alves não desempenha, desde Novembro de 2008, funções sujeitas a registo no Banco de Portugal.

Eu é que peço desculpa, mas este excerto do comunicado do Banco de Portugal NÃO desmente o líder parlamentar do PS. A declaração do Banco de Portugal é perfeitamente compatível com a afirmação de Carlos Zorrinho. NÃO estou a dizer que Zorrinho está correcto (não faço a mínima ideia), mas se é dessa forma que no Banco de Portugal «desmentem» seja quem for, então está «visto e ouvisto» que têm de ter umas lições de português (e de lógica).

Ou talvez não. Talvez quem redige os comunicados do Banco de Portugal domine bem o português e a lógica — e a técnica de caminhar no fio da navalha da semântica.

O grande equívoco

A «astúcia da razão», pressuposta por Hegel, e a «mão invisível», postulada por Adam Smith, têm por base a lei hedónica da busca do benefício pessoal. Quem na realidade sai favorecido é o todo, com o seu alegado interesse comum. Porém, se as partes se ignoram ao serviço do todo e se este só se reconhece na autoconsciência das partes, deduz-se que, em ambas as leituras, o todo é unicamente um profundo auto-engano à espera de solução.

Nem tudo é repetível

Lá em casa levávamos broncas se numa visita curta a um compartimento ou na passagem por um corredor acendíamos lâmpadas fluorescentes em vez de incandescentes. Estávamos avisados e informados: as lâmpadas incandescentes consumiam mais quando acesas em permanência; as fluorescentes, mais baratas em utilizações prolongadas, custavam caro a acender. Se apenas estávamos de passagem ou íamos entrar e sair, não havia nenhuma boa desculpa para acender lâmpadas fluorescentes. Esse erro agastava sobremaneira o nosso pai, provocando-lhe em certas alturas uma irascibilidade que só viemos a perceber de todo quando soubemos o que era viver com um ordenado que demasiadas vezes não chegava ao fim do mês.
Hoje, num reflexo daqueles tempos, desloco-me pela casa apagando a luz dos compartimentos atrás de mim, mesmo que tencione voltar, enquanto acendo a dos que me ficam no caminho. Por vezes fico às escuras alguns metros, se os interruptores não estão próximos e acho supérfluo iluminar uns poucos passos. Não me perturba este jogo. Como não me perturba ir a pé para o trabalho. O ambiente ganha com isso. Eu gasto menos com isso. Perturba-me que venha a precisar de uma mercearia que venda fiado e não a encontre. Não encontre mercearias de espécie nenhuma. Nem tudo do passado é repetível. No portugalzinho provinciano e comunitário de Salazar era possível levar uma grande lista de compras e dinheiro nenhum na carteira. Os franchises de hoje, mesmo quando apresentam rostos mais simpáticos por detrás da registadora, não têm a mesma confiança na palavra dada. Além de que, suspeito, a companhia da electricidade é hoje mais despida de escrúpulos na hora de definir tarifários.

A humanidade por detrás do culto

Depois do post Mulher a rezar” revisitei, agora com atenção, os nichos religiosos ao fundo da rampa do Calvário de que já falei algumas vezes. Passo ali todos os dias, de carro ou a pé, mas não tinha percebido que o Cristo coroado e flagelado não carrega a cruz (está agarrado a uma coluna) e que do outro lado é a casa de um Santo António com o Menino ao colo, e não de uma Virgem Maria (embora a de Fátima também esteja presente, num altar subalterno aos pés do franciscano).
Espreitei e vi como ardiam velas em latinhas que parecem de refrigerantes, com gravuras no exterior, vi plantas em vasos que dão aos nichos um certo ambiente de estufa, vi as vassouras que diariamente varrem os pequenos compartimentos, as bisnagas com que se borrifam as plantas e a cerâmica ou o barro pintado das figuras, vi na sua mundana caixa de supermercado o rolo de papel de alumínio de onde saem os fundos que protegem os tabuleiros das velas, vi a prosaica caixa dos fósforos que acendem as velas, vi o saco preto reciclável onde se acumulam as latinhas já usadas — vi, enfim, os bastidores de oratórios ou santuários demasiado pequenos para terem resguardados da vista os produtos e os objectos que revelam a humanidade por detrás do culto.
Decerto não veria nada disso se tivesse ido ali apenas para rezar.

Cá se vai andando...

SÉRGIO VAN GOGHDINHO. Cá se vai andando, com a cabeça ao lado da orelha...

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O escriba sem assunto

Redigir textos soltos por obrigação diária — eventualmente auto-infligida — poderá conduzir à tentação de preencher a escassez de conteúdos pelo recurso a estratégias metatextuais: «Hoje, as palavras não ascenderam às águas-furtadas do meu talento.» Assim, ao leitor menos avisado parecerá que o escriba, longe de se achar desprovido de matéria literária, vai sobrevoando incólume, tolhido de alto desencanto, as vãs e frágeis criações das letras. Só resta examinar que imagem lembra o acto de escrever sobre este assunto.

O que está mal muda-se

Franquelim Alves, Secretário de Estado do Empreendedorismo, Competitividade e Inovação

Muita gente manifestou a sua indignação com a nomeação de Franquelim Alves, ex-administrador da SLN (proprietária desse famoso buraco chamado BPN) para Secretário de Estado do Empreendedorismo, Competitividade e Inovação. Variando aqui e ali os pormenores do vernáculo usado, a ideia-base era que o curriculum vitae de tal pessoa era inadequado à assunção de tal cargo.

Permitam-me que discorde, ou melhor, que discorde da perspectiva por que o problema foi observado.

A questão não é que Franquelim Alves não serve para esta Secretaria de Estado. A questão é, isso sim, que esta Secretaria de Estado não serve para Franquelim Alves. Não se mude o homem — mude-se o nome da Secretaria. Chamemos-lhe Secretaria de Estado do Chico-Espertismo, Compadrio o Inovação Contabilística e teremos a pessoa com o curriculum vitae adequado à função.

Eventualmente ou o princípio da incerteza

Obedecendo a um particular entendimento das coisas ou a uma estranha obsessão, os responsáveis pelas legendas no cinema geralmente traduzem do inglês um indubitável eventually por um incerto eventualmente. Por exemplo: as águas de um rio que em inglês vão inelutavelmente dar ao mar, por difícil e longo que seja o caminho, em português não têm garantido esse destino salgado, só eventualmente encontram a foz.
Hoje, num filme que me passou pelo ecrã, a expressão «in the end everybody dies» foi traduzida como «eventualmente todos morrem». Fiquei baralhado. O tradutor teve bizarras dificuldades com a expressão original, procurou uma correspondente em inglês e só então traduziu a ideia (com o erro habitual)? Terá imaginado uma primeira tradução do género «todos acabam por morrer», feito de seguida a retroversão para, sei lá, «everyone eventually dies» e só então se sentiu capaz de balbuciar alguma coisa em português? Ou é na verdade o grémio das legendas partidário do princípio da incerteza até no que se refere à morte?

Afinal havia outra


Ai aguenta, aguenta!

Fernando Ul(tra)rich

Os habitantes do parque: notas para um inventário

O parque não é habitado por gnomos ou outros seres mitológicos, pelo menos que eu saiba. Nem há assim tanta gente que se possa dizer que é do parque. Às horas que o percorro, de dia, lembro-me de um clérigo de uma religião alternativa, com a sua gabardina dois números acima, um saco na mão direita e frequentes olhos no céu; um reformado pesadão de bengala e cão idoso pela trela que tem um pedaço do parque como quintal; um advogado e um pastor alemão com o mesmo ar de poucos amigos, ambos sem açaimo, numa caminhada enérgica antes do expediente da tarde; duas ou três senhoras indistintas e decididas no seu fato-de-treino claro e no seu trekking pós almoço; os habituais funcionários camarários vestidos de verde-almeida e responsáveis pela relva, na parte em que o parque é relvado; um senhor com luvas, protectores de orelhas e eventuais problemas de colesterol ou próstata cumprindo a prescrição médica... Quase todos os outros são meros transeuntes que atalham pelo parque a caminho de qualquer destino alhures, geralmente indiferentes ao caudal do rio, à azáfama da passarada ou ao estádio da floração. Ao final da tarde a fauna aumenta, mas malogradamente outras ocupações impedem-me de lhe fazer o inventário. E às minhas horas da noite já quase não sobra ninguém: um ou outro corredor de calças de lycra, uma ou outra parka com gente anónima dentro.

Há contudo nos últimos tempos um sujeito careca nos seus quarentas que se posiciona durante a hora de almoço numa escadaria com vista para uma das represas. Talvez tenha agora descoberto que aquele é um bom sítio para almoçar. Talvez tenha voltado a fumar e ali, meio camuflado pela vegetação, não o assolem tanto os remorsos nem a censura de familiares ou colegas. Talvez seja vítima de desgosto recente e os olhos com que vê a queda da água não sejam indiferentes à melancólica beleza da corrente. Talvez, enfim, seja apenas um dealer a variar de ponto de distribuição por gosto ou cálculo e o telemóvel lhe trema nas mãos em resultado de um mercado em alta e não de um astral em baixa.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Voltar atrás

Motivo de análise psicológica é a afirmação que seguríssimas pessoas tecem segundo a qual, se voltassem atrás, fariam exactamente as mesmas coisas que até à data terão feito. Sendo, ainda por cima, claro que aquele que atrás voltasse regressaria aí diferente daquele que pela primeira vez agiu, concluiu-se que a personalidade de quem assim fala, se não for dada a ludibriar-nos ou a ludibriar-se, se caracteriza por três aspectos essenciais: nulo arrependimento, rigor matemático e sólida monotonia.

A partir de “Portugal, finis terrae”, de Pedro Rosa Mendes

A Ler tem um novo número nas bancas, mas aquele que é urgente ir comprar, para quem ainda não o fez, é o de Janeiro. Por causa de “Portugal, finis terrae, esclarecedor ensaio de Pedro Rosa Mendes ali publicado. Nenhum português deveria considerar-se informado (ou adulto) sem o ter lido. É um texto escrito em tom vigoroso, porém sóbrio, acerca das origens históricas da crise que vivemos. Informa, alerta e incomoda, não deixa quase ninguém incólume: dos partidos da alternância à «Europa» (grafada com aspas, num interessante paralelismo com o costume de Vasco Pulido Valente), passando pelos EUA. Talvez poupe um pouco, em minha opinião injustamente, os portugueses enquanto povo.
A grande singularidade do texto de Pedro Rosa Mendes, a par da sua opinião informada e da coragem com que ele a expressa, é a independência em relação às instituições e em relação às tendências político-partidárias. Há, à esquerda e à direita, outras pessoas no país que fazem diagnósticos coincidentes, pelo menos em boa parte, mas as suas relações afectivas ou de interesses, o seu comprometimento ou proximidade aos partidos, limitam-lhes a coerência, tornam-nas inconsequentes, inúteis ou perniciosas. O mundo dos comentadores políticos é geralmente um território de canto coral ou onde drapejam bandeiras.
É hoje para mim claro que o futuro português não pode ser construído pelos partidos, estes partidos. Dos municípios ao Governo, o país precisa de um reset, de se reinventar politicamente, e isso não se consegue fazer com gente tão implicada, tão cúmplice, tão presa aos métodos e aos desígnios das facções. Não se consegue fazer com protagonistas que andam pelo país como mercenários a repartir despojos ou por militantes que estão na política tão estupidamente como no futebol.
Não se trata de tirar razão à esquerda ou à direita, de invocar um hipotético centro virtuoso. Não tem nada que ver com esta posição ingénua, igualmente maniqueísta, de consensos pantanosos.
Trata-se de dizer abertamente que os partidos portugueses são cancros na sociedade e que detêm, em doses semelhantes, a culpa da situação que vivemos. (Da culpa que podemos reivindicar como nacional — nunca deixemos a «Europa» de fora disto.)
Como diz Rosa Mendes, «não haveria Passos Coelho sem Sócrates». Mas quem pode verdadeiramente negar que Passos Coelho seria o Sócrates da década anterior e Sócrates o Passos Coelho destes anos se a História lhes tivesse concedido vencer eleições em períodos diferentes? Quem pode jurar, sem hipocrisia ou cegueira, que distingue os Governos por muito mais do que o tempo e as circunstâncias em que lhes calhou governar?
Há decerto elementos no actual Governo que têm as melhores intenções, mas que liberdade lhes deixam ou que trabalho farão que não seja arruinado pelos colegas menos escrupulosos e mais oportunistas? (E mais poderosos.)
Um país não se devia governar, mesmo em tempos de crise, com sebastianistas, revolucionários, salvadores nomeados pelo Presidente ou pelas instituições (nacionais e estrangeiras). Mas também é certo que jamais se governará com a actual classe política.
A democracia ainda não foi destronada do pódio de melhor sistema de governo, e não me parece provado que a democracia representativa tenha os dias contados, que mereça ter os dias contados. Apenas precisa de outros representantes. Precisa de uma faxina.
O problema é que em Portugal é muito difícil formar partidos políticos. Não porque as leis e a burocracia sejam particularmente inexoráveis, mas porque um novo partido em Portugal é sempre considerado uma coisa excêntrica, terá previsivelmente um eleitorado da dimensão daquele que têm os partidos monotemáticos, de âmbito e programa circunscritos a uma ideia e um punhado de simpatizantes que se conhecem pessoalmente.
A vileza dos representantes em Portugal é pelo menos igualada pela estupidez dos representados. O eleitorado português é suficientemente perspicaz para reconhecer um cretino quando vê um — mas é também suficientemente estúpido, ou está suficientemente implicado, para votar de novo nele.
Parecemos condenados a concluir como Pedro Rosa Mendes concluiu o ensaio dele, utópica ou apocalipticamente: «Resta, pois, a rua, morada comum da raiva.» De facto, as possibilidades anteriores à rua, numa escalada de tomada de poder, parecem condenadas ao fracasso. Não se imagina que os independentes bem-intencionados dos anos recentes da política portuguesa possam formar um novo partido, mais sério e competente; não se imagina que esse partido fosse votado, caso pudesse formar-se; mas também não se imagina que os partidos actuais possam gerar anticorpos suficientemente poderosos para debelar a sua infecção interna. Será um problema de imaginação aquilo que nos aflige? Ou de coragem (de fazer e votar diferente)?


* Quem não conseguir comprar a Ler de Janeiro, pode encontrar aqui o ensaio de Pedro Rosa Mendes: http://www.mynetpress.com/mailsystem/noticia.asp?ref4=4%23k&ID=%7B05DAEA92-2ABB-42ED-89ED-7F3F0B378A5D%7D

Mulher a rezar

Antes de virar a esquina e iniciar a rampa do Calvário, há de cada lado da estrada uma capelinha ou pequeno santuário com portão em barras de ferro. De um lado está Cristo carregando a Cruz, do outro uma santa, provavelmente uma das várias manifestações da Virgem. A mulher reza daquele lado. Numa observação menos atenta, não se diria que reza: posição do corpo a três quartos, como quem está de passagem e mal se deteve para uma espreitadela curiosa; sapatos e roupa de sair em passeio; cabelo acabado de lavar no cabeleireiro; a carteira na mão direita, a de fora, exactamente como quando ela se encosta ao vidro de uma montra a passar os olhos pelos saldos ou pela nova colecção. Dir-se-ia visitante, turista, mas a mão esquerda, firmemente agarrada a uma das barras do portão, impregnando-se de ferrugem, segurando-se ali como náufrago à corda salvífica, confirma que reza.

O nome das coisas

bebé em frente à bandeira francesa

O debate, em França, sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a adopção por casais homossexuais entrou no quelho da discussão à volta dos nomes das crianças: que sobrenome(s) seria(m) aposto(s) aos nomes próprios dos petizes?

A lei parece seguir no sentido de que os sobrenomes de ambos os membros do casal figurem no nome da criança, pelo que a Direita francesa se levantou em ruidoso protesto à la Diácono Remédios: «Qualquer dia» temos também os nomes das crianças de casais heterossexuais a serem desfigurados com os sobrenomes das suas mães! Sacré Bleu!

O problema, está bom de ver, não é de machismo, non! Nem sequer de conservadorismo, dis donc! Como explica o deputado Marc Le Fur, o problema é que os nomes de origem portuguesa são «frequentemente longos» (culpa da mãe, évidemment). Num país onde palavras como «professor» e «director» não têm feminino, facilmente se conclui que o problema é esse: o pragmatismo francês tende manter os nomes convenientemente breves, pela “poda” do nome da mãe, e assim deverá continuar a ser!

Pela lógica da Direita francesa, «Valéry Marie René Georges Giscard d’Estaing» é um nome «curto» — porque os quatro primeiros são nomes próprios e os dois últimos vieram-lhe ambos do pai («comme il faut»). São também curtos nomes como «Charles André Joseph Pierre-Marie de Gaulle», «Georges Jean-Raymond Pompidou», «François Maurice Adrien Marie Mitterrand», «Nicolas Paul Stéphane Sarközy de Nagy-Bocsa» («Sarközy de Nagy-Bocsa» provêm-lhe todos do pai...) e «François Gérard Georges Nicolas Hollande», só para citar alguns.

Já «Rui Sá do Ó» (em que o Sá lhe vem da mãe...) é um nome um horror de longuíssimo! Zut alors!

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Rumo definido

Lembram peritos, imitando Séneca: o vento nunca é favorável àquele que não sabe para onde vai. Esquecem que é justamente «quem não sabe para onde vai» que está mais disponível para aproveitar a direcção do vento. Em todo o caso, admitindo a sentença como verdade irrecusável, teremos sempre de clarificar o que significa «saber para onde se vai» — sobretudo quando não nos referimos aos projectos que formam a vida, antes à vida enquanto forma de um projecto.

Uma (outra) verdade inconveniente

UMA VERDADE INCONVENIENTE (Teoria Restrita da Relatividade da Reflexão). Maugrado o secular prestígio da pausa reflexiva, o jovem Albert sabia algo que mais ninguém sabia: que ao pararmos para pensar, temos menos tempo para pensar.

Motivado por um post de José Ferreira Borges.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Suprimir o tempo

Georgia O' Keeffe, Era Azul e Verde, 1960.

Se formos capazes de suspender o pensamento, seja nas suas modalidades concretas, seja nas abstractas, colocando-o fora de jogo ou deixando que dele subsista só um vestígio inoperante, e lograrmos, em seguida, fixar por inteiro a consciência nas sensações, até realizar uma absoluta sinestesia, ficando assim os sentidos, como diz Almeida Garrett, «todos num confundidos», teremos aniquilado o tempo e alcançado uma unidade sem distância nem conflito. Resta naturalmente esclarecer que tipo de consolo isso nos traz.

A guitarra que falava

Por timidez, desinteresse ou incompetência, sempre fui nalguns assuntos um tipo um pouco retardado. Quando a isso se somavam as dificuldades financeiras, eu podia ser bastante neandertal em relação à restante rapaziada. E misantropo.
Um dia no intervalo das aulas um colega quis partilhar comigo a música que ouvia no seu novo walkman. Senti-me honrado, naturalmente, mas também assustado. Sabia que existiam mas nunca tinha experimentado ouvir música numa coisa daquelas. Qual seria a sensação? Como se ajustava o aparelho nas orelhas?
Acontece que o colega não queria apenas que eu ouvisse a música, queria que reparasse como o guitarrista dos Lynyrd Skynyrd fazia falar a guitarra. Eram muitas experiências novas para tão pouco tempo. Walkman. Guitarras que falam. Lynyrd Skynyrd (quem?). Ajustei os auriculares e a primeira coisa que disse ou pensei foi que a música parecia vir de todo o lado, ou estar dentro da nossa cabeça. O colega sorria. Eu ainda não tinha interiorizado a experiência e, por educação, para não abusar da generosidade, já me estava a obrigar a tentar decifrar o que queria ele dizer com uma guitarra que fala. Havia um solo, sim, mas por mais que me esforçasse não entendia nenhuma palavra — e já sabia algumas coisas de inglês. Para mim não havia nada de metafórico no que me fora pedido: eu estava mesmo a tentar ouvir uma guitarra a falar, balbucios que fossem.
Fingindo conhecimento e afectando desinteresse, acabei por dizer que sim, de facto era uma guitarra eloquente, embora não apreciasse muito a música.

(Podia ter contemporizando mais, sido menos herético, dizendo-lhe apenas que «não era sensível ao tema» — se fosse capaz de usar com rapidez a ambiguidade das palavras, de pensar a tempo na utilidade da sua amplitude semântica para uma boa convivência social.)

domingo, 3 de fevereiro de 2013

O Leonhard Euler da (baixa) política nacional

Universidade Lusófona apresenta Miguel Relvas em 'O Senhor Doutor'

Escreve Jorge Buescu no segundo capítulo de O Fim do Mundo Está Próximo? (Gradiva, 2007):

Leonhard Euler (1707–1783) foi muito provavelmente o maior génio matemático de todos os tempos. Foi indiscutivelmente o matemático mais produtivo de sempre, em quantidade e qualidade. [...]
[...]
Euler fez um oceano de contribuições fundacionais para o cálculo diferencial e integral, as equações diferenciais ordinárias e parciais, a teoria dos números, a geometria, a álgebra, a mecânica, a hidrodinâmica, a astronomia, a topologia e a teoria dos grafos.
[...]
Mesmo um cientista de estatura gigantesca fica geralmente imortalizado por uma contribuição central à qual o seu nome fica para sempre ligado: assim falamos na lei de Arquimedes, na gravitação de Newton, na hipótese de Riemann ou na relatividade de Einstein. No entanto, se um matemático se referir no abstracto ao «teorema de Euler», a maior parte das pessoas não saberá qual o ramo da matemática em discussão, tal a esmagadora abrangência e importância do legado científico de Euler.


Faço zapping entre telejornais, folheio os diários e semanários, salto de blogue em blogue — e sou assoberbado por uma omnipresença: Miguel Relvas. Há, associado ao seu nome, escândalos para todos os gostos: assim de repente, temos o caso «Relvas/Universidade Lusófona», o caso «Relvas/Secretas», o caso «Relvas/jornal Público», o caso «Relvas/Passos Coelho/Tecnoforma», o caso «Relvas/Viagens fantasmas»...

Com a devida vénia, peço emprestado e rescrevo um excerto do livro de Jorge Buescu:

Mesmo um político de baixíssima estatura fica geralmente imortalizado por um escândalo central à qual o seu nome fica para sempre ligado: assim falamos no envolvimento de Armando Vara no processo «Face Oculta» ou de Paulo Portas no «Caso Submarinos», no «Caso Fax» de Carlos Melancia, ou no «Caso Costa Freire». No entanto, se um comentador se referir no abstracto ao «Caso Relvas», a maior parte das pessoas não saberá qual o ramo da baixa política em discussão, tal a esmagadora abrangência e importância do legado escandalístico de Miguel Relvas.


Miguel Relvas é o Leonhard Euler da (baixa) política nacional!


P.S.1 Jorge Buescu não nos informa quanto a quem seria o n.º 2 do ranking do mérito matemático. No da baixa política nacional, a “honra” caberia a José Sócrates: casos «Sócrates/Universidade Independente», «Sócrates/Freeport», «Sócrates/Face Oculta»...

P.S.2 A imagem que acompanha este texto foi retirada do magnífico blogue WeHaveKaosInTheGarden, que tem muitas mais jóias de igual quilate (uma boa parte delas protagonizadas pelo nosso Euler politiqueiro).

Botas de autoridade e focinhos de porco

Do filme Platoon retive uma imagem em que certo soldado pontapeia o focinho de um porco (1). Recordei-a enquanto assistia ao vídeo que mostra um agente da GNR, na A1, a desferir um golpe similar. Concluí existirem botas que desejam, por vezes, sentir viva a autoridade que transportam. Focinhos de porco ajustam-se, com vantagem, a tal desiderato, porquanto a contestação do suíno será breve: nem o queixume irá além de um guincho nem o protesto excederá um ronco.


(1) O momento exacto pode ser visto aqui, após o minuto 46 (mais propriamente aos 46 minutos e 15 segundos).

sábado, 2 de fevereiro de 2013

«O sono das maçãs»


Se alguém quiser, como García Lorca, «dormir o sono das maçãs» (1), de que modo exprimirá o resultado? O problema não diz só respeito à natureza dos qualia, ou qualidades sentidas das experiências, mas também ao reconhecimento de que se passou por tal sono. Trata-se de, permanecendo humano, entrar no fruto em causa, imergir na sua inconsciência — e sabê-lo, depois, ao despertar. «Dormir o sono das maçãs» seria aceder, por inteiro e sem distância, ao lugar do inefável.


(1) Federico García Lorca (s/d), Divã do Tamarit, Lisboa, Vega, p. 47.

Uma verdade inconveniente

RESSACA. A velhice nota-se, não nas coisas que não faço, mas nas coisas que não faço a seguir às que faço.

Surviving in Portugal

O Governo lançou há dias o programa Living in Portugal, que pretende promover a venda de imóveis de luxo (acima de meio milhão de euros) a cidadãos estrangeiros.

Segundo um dos vários governantes presentes na cerimónia, a estratégia passa por veicular a mensagem de que Portugal é um bom lugar onde se ter uma segunda residência.

É verdade. Fodido é ter cá a única.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Fechar a conversa

Quando em conversa telefónica, há quem deseje, consciente ou inconscientemente, ser o autor das palavras que fecham o diálogo, repetindo então a fórmula de despedida as vezes necessárias a que isso possa acontecer. O problema surge se o interlocutor seguir idêntico padrão comunicacional. Em circunstâncias do género, é provável que o natural embaraço acabe por se resolver se ambos insistirem num adeus que se renova, mas gradualmente diminuindo o tom, até que este se extinga no silêncio.

Tédio News: o regresso do rural

QUINTA DAS CELEBRIDADES. TVI interpreta à sua maneira recomendação dos deputados da maioria e vai reintroduzir 'reality show' na sua grelha de programação.

Como texto do corpo da notícia recorri a um artigo de Miguel Gaspar (Público). Uso-o aqui sem autorização — mas quase não se consegue ler.

O regresso do “TV Rural”?

Deputados da coligação no governo procuram mais tempo de antena. [Na imagem: dois nabos]

SIC Notícias: «AR debate proposta de PSD e CDS-PP de programa na RTP sobre agricultura»