Os movimentos parecem indicar tratar-se de mais um yogi, dos que por vezes aparecem no parque, mas a orientação precisa e constante, aquela maneira de encarar um ponto (para mim) indefinido a sudeste, revela outra intenção, outra atitude. Num primeiro impulso, com certa presunção de geógrafo ou de nativo íntimo do curso do Sol em Trás-os-Montes, estou tentando a corrigir-lhe a direcção do olhar, o azimute para onde aponta o rosto. Mas depois reconheço que preciso de consultar outra vez o mapa para localizar Meca, que, na verdade, eu próprio nos últimos tempos ignoro o norte.
Enquanto me debato com a magna questão dos pontos cardeais, dois élderes passam absortos no seu próprio ritual itinerante, ziguezagueante, mostrando como é ubíqua a existência de Deus ou como são múltiplas as maneiras de o Homem se desorientar.
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terça-feira, 15 de abril de 2014
GPS
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Rui Ângelo Araújo
quinta-feira, 28 de novembro de 2013
Entre o ser e o não-ser
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José Ferreira Borges
O objecto foi ideado por George Lichtenberg: uma faca sem lâmina, à qual falta o cabo. Representá-lo exige quatro momentos: primeiro surge a faca; de seguida, esvai-se a lâmina; depois, dissolve-se o cabo; por fim, usando-se o próprio objecto, efectua-se um corte que separa a «faca ainda presente» da «já ausência de faca». Trata-se, portanto, de um objecto que origina intervalos mentais: um alívio para os pensadores; uma bênção para os torturados; uma inutilidade para os idiotas.
sábado, 28 de setembro de 2013
Dia de reflexão
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José Ferreira Borges
Diz-se que num acto de reflexão o pensamento se dobra sobre si mesmo. Hoje, consta, é «dia de reflexão». Talvez a manhã se dobre sobre a tarde e vice-versa. Talvez a atmosfera se encha de questões filosóficas: «Quem somos?», «Donde vimos?», «Para onde vamos?» — e outras de análogo teor antropológico. Talvez os cidadãos menos introspectivos sejam por elas arrastados para exercícios que os colocam entre a vertigem e o abismo. Mas amanhã já terão esquecido o susto.
sábado, 14 de setembro de 2013
Introspecção
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José Ferreira Borges
Auguste Comte negava-lhe valor científico: na introspecção, o sujeito observador coincide com o objecto observado. E «ninguém pode estar à janela para se ver passar na rua». Tese plausível, frágil argumento: embora coincida com o objecto, o sujeito não coincide consigo próprio. Se a introspecção carece de rigor, é justamente pelo facto de, na vida mental, ser possível estar à janela e ver-se passar na rua — ou passar na rua e ver que se está à janela.
quarta-feira, 12 de junho de 2013
Reflexão urbana e decadente
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José Ferreira Borges
Perto do centro geométrico da cidade, recordo a sentença ouvida há pouco, fórmula de um mundo a desintegrar-se: «Isto está mau — e vai piorar!» Em simultâneo, um gato fita-me desde a porta entreaberta de uma casa a ameaçar ruínas. Também me demoro a fitá-lo. Para evitar aborrecimentos, o animal decide afastar-se. Atravessa a rua, que finge conhecer bem. Coxeia nitidamente. Perto do centro geométrico da cidade, os movimentos dos gatos imitam, sem esforço, os pensamentos dos homens.
terça-feira, 14 de maio de 2013
O lugar das dúvidas
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José Ferreira Borges
Era acérrimo seguidor do cepticismo de Pírron. De nada estava certo, nem sequer disso mesmo. Esse esquema intelectual conduzia-o a intoleráveis regressões ao infinito. As suas dúvidas tinham adquirido vida própria e adejavam em seu redor como abutres em torno de um cadáver. Dispunha, no entanto, de uma «verdade póstuma», que escolheu para epitáfio: «Aqui descansam as minhas dúvidas.» Enganara-se. Após a morte, elas rumaram aos espaços vazios. Nenhuma dúvida, por natureza, conhece a plenitude do repouso.
segunda-feira, 18 de março de 2013
Confusões
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José Ferreira Borges
Há alturas em que decidimos ver a alegada grandeza de um desafio na quantidade de tempo que perdemos a antecipá-lo. Depois de ultrapassada a experiência, de revogados os escolhos, e se a sensatez ainda fizer parte do que somos, percebemos que, afinal, não existia «grandeza» alguma e que na circunstância a que chamávamos «desafio» projectáramos unicamente o medo do desconhecido ou o desejo de extinguir o tédio que nos invadira o corpo em momentos de nula exaltação.
sábado, 16 de março de 2013
O sentido
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José Ferreira Borges
Declarou Vergílio Ferreira: «O ponto mais alto da sabedoria é ver que nada no Universo faz sentido. E que esse não-sentido tem o sentido de o não ter como se o tivesse...» (1) A afirmação, rebuscada, abre a porta à crítica e a janela ao devaneio: «O ponto mais alto da sabedoria é ver que tudo no Universo faz sentido. E que tal sentido não tem o sentido de o ter, e até seria irrelevante se o tivesse...»
(1) Vergílio Ferreira (1993), Pensar, 4.ª ed., Lisboa, Bertrand Editora, p. 52.
terça-feira, 12 de março de 2013
Privilégios
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José Ferreira Borges
Atingir uma verdade pela qual se justifique viver continuamente entusiasmado, imune ao tédio e a outras perversões, é um privilégio concedido a poucos. Verosímil se afigura que tais seres, no pico do seu existencial arrebatamento, desfrutem de instantes de felicidade tão altos e preciosos que sintam ganas de abraçar, uma a uma, as suas próprias células. Dir-se-á que, tarde ou cedo, ilusórios se hão-de revelar os frutos. Mas a essa nefasta conclusão só chega o amargurado pensamento.
domingo, 3 de março de 2013
Filosofias da salvação
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José Ferreira Borges
As principais filosofias da salvação — incluamos aí, por exemplo, o estoicismo, o gnosticismo, o budismo e formas alternativas de abrandar o pessimismo — não pretendem gerar no discípulo a ideia segundo a qual ele perderá tudo e em si mesmo é nada, mas sim a consciência de que ele nunca teve realmente nada e de que o acto de proceder em sintonia com isso o fará sentir-se tudo — ou, pelo menos, contente por acordar e satisfeito por adormecer.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013
Imagens que se quebram
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José Ferreira Borges
Um miúdo pisa com violência, enquanto corre, o brinquedo abandonado no chão de ladrilhos hexagonais. Instintivamente, suspende o ímpeto daquela espécie de fuga e retrocede a fim de avaliar os danos e, ao mesmo tempo, recolher alguma peça que ainda se ajuste à ideia de se divertir. Também estas imagens são quebradiças, como a ilusão da originalidade, que
é sempre a penúltima coisa a perder. E ela perde-se quando se descobre que nada resta já para salvar.
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
Prazer em conhecer
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José Ferreira Borges
A expressão «prazer do conhecimento» parece referir-se, no mínimo, a uma de duas coisas: à emoção estética obtida dos conteúdos teóricos ou ao antegozo ardente dos resultados práticos. Fora de tais benefícios, restará a «dor do saber» de que fala o Eclesiastes. Mas o antigo pessimista não indicou a percentagem dessa dor inevitável — se acaso admitiu a existência de algum prazer contrastante. É igualmente improvável que o faça de modo certo quem opte pelas vias da ignorância.
terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
Fluir e reflectir
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José Ferreira Borges
O incansável fluir da realidade nada parece dever ao insistente “voltar atrás” do pensamento reflexivo. Também este, contudo, integra o fluir incansável, com seus regressos, pausas, hesitações. Enquanto assim medito, reparo na silhueta de um pelourinho desenhada numa das portas de certa viatura. Tento relacionar a imagem que chega com a ideia que surge. O exercício revela-se fatigante. O carro há-de partir, levando a memória do pelourinho. A realidade passa bem sem os breves suplícios do intelecto.
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
A insistente alteridade
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José Ferreira Borges
«O que eu pretendo que os outros pensem de mim» constitui uma estrutura mental difícil (até impossível) de satisfazer. Por dois motivos: primeiro, porque esse outro é plural; segundo, porque essa estrutura não é racional. Muitos tentam livrar-se dela rumando a desertos físicos ou a metafísicos ermos. O problema reside no
facto de não conseguirem abandonar o outro enquanto renovada medida que lhes faz sombra — ou de insistirem em imaginá-lo enquanto invisível presença que lhes traz luz.
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013
Pausa reflexiva
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José Ferreira Borges
No centro comercial, as escadas rolantes devem constituir o lugar móvel das pausas filosóficas. Talvez perguntem os que sobem: «De onde vimos?» Talvez, os que descem: «Para onde vamos?» Talvez, ao passarem uns pelos outros, se interroguem: «Quem somos?» Ainda que não formuladas mentalmente, as questões parecem implícitas atrás desses rostos, cuja melancolia é de alto preço. Mas esta acabará por se esbater quando os olhos pousarem, ao fim da escada, na montra que anuncia preços baixos.
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013
O breve intervalo
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José Ferreira Borges
Se a mente, no instante imediato ao acordar, revisita de súbito algum episódio da véspera, tende a intuir nele uma realidade desconexa e espectral. Mas ela recompõe-se logo a seguir — e o mundo volta a ganhar os liames que lhe conferem espessura e significado. É como se houvesse uma ilusão de sentido que nos mantém despertos, uma vocação para o absurdo que nos permite adormecer e um breve intervalo para mostrar a convergência de ambas as coisas.
terça-feira, 12 de fevereiro de 2013
Será que a gente se entende?
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José Ferreira Borges
Eis a alegadamente última frase de Hegel: «Houve só um que me entendeu e nem sequer esse me entendeu.» (1) Se os conceitos representam o lado íntimo das palavras, aqueles que povoam a mente alheia são inapreensíveis. Constitui, pois, verdadeiro milagre o mútuo entendimento — ou a ilusão disso. Ignorando se me fiz entender, creio que o melhor é aceitar a paródia à referida sentença hegeliana: «Houve só um que me entendeu e a esse não o entendi eu...» (2)
(1) Cf. Pedro González Calero (2009), A Filosofia Com Humor, Lisboa, Planeta Manuscrito, p. 125.
(2) Idem.
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013
Buscar o paradoxo
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José Ferreira Borges
Leio na capa de um livro recém-publicado: contém documentos inéditos. Mudemos de assunto. Um afirma que «acredita em Deus», outro que «não acredita», um terceiro dirá que lhe tem «ouvido silêncios impecáveis e isso basta». Só o último percebe que o que está em jogo — o que melhor se ajusta à humana condição — dificilmente será o acto de nutrir ideais redentores ou invectivas ateias, antes o de buscar paradoxos, sem cair na frágil tentação de os resolver.
domingo, 10 de fevereiro de 2013
O prisioneiro
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José Ferreira Borges
«O prisioneiro», esclarece Henry Miller, «não é aquele que cometeu um crime, mas sim o que se agarra ao seu crime e não deixa de o reviver». Falta-nos, contudo, a garantia de que alguém hábil a desprender-se «do seu crime» não continue a revivê-lo a um nível inconsciente. Técnicas de meditação ou estratégias de divertimento podem permitir-lhe abrir asas e soltar-se dos cumes do remorso. Estes, todavia, são simulacros de algo mais aflitivo que também levanta voo.
sábado, 9 de fevereiro de 2013
Dizer não
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José Ferreira Borges
Saber dizer não, quando naturalmente o não se impõe, é uma virtude. Saber dizer não, quando naturalmente o não se impõe, e evitar quaisquer desculpas movidas pelas exigências do alheio melindre, ou pelo receio do que o semelhante possa vir a pensar, é uma virtude extraordinária. Compreender e aceitar os modos possíveis com que o outro exprime a recusa e manifesta o não, sem perder serenidade nem ganhar ressentimento, constitui um dos princípios de uma vida santa.
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