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sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Esperar sentado no Banco de Portugal

O post que publiquei anteontem lembrou-me porque é que o Banco de Portugal não tem condições para funcionar bem: o seu quadro de pessoal nunca está completo. Há ali sempre uma vaga a precisar de ser preenchida por ex-governantes.
Creio que seria muito mais simples para a instituição e para o país se o BdP, em vez de estar sempre à espera que mais alguém se demita ou seja demitido, pusesse anúncios de emprego.

A não ser, claro, que aquelas vagas sejam apenas para os estagiários de São Bento que aguardam entrada no Goldman Sachs ou filiais. É justo que o Banco tenha permanentemente no orçamento uma verba para entreter a espera de Suas tirocinantes Excelências.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Lapso duplo

Constato: as respostas dos dois testes equivalem-se na perfeição. Pormenor relevante: nenhum dos alunos se lembrou de colocar o nome no espaço reservado para o efeito. Lapso que Freud explicaria sem rodeios: na inconsciente profundeza, qualquer um deles recusou assumir a autoria daquilo que sabia não ser da sua lavra. Deve, pois, ter existido uma cábula comum, ou certo influxo verbal divino, partilhado com rigor, ou uma intervenção do Inefável, que estende o esquecimento sobre os nomes.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Duas perguntas

A questão encontra-se no poema Domingo de Manuel da Fonseca: «Que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre como se fosse uma festa?...» Acrescente-se-lhe outra, igualmente encomendada à esfera dos enigmas, colhida em Stevenson, n’A Ilha do Tesouro: «Se jamais se viu um espírito com sombra, como haverá um que faça eco?» Mora aqui a resposta à sinuosa angústia anterior: «Aos domingos, se te faltar inclinação gregária, torna-te espírito: não deixes eco nem emanes sombra.»

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O anel e a invisibilidade

Conta-o Platão: Giges, pastor ao serviço do soberano, achou um anel de ouro. Voltando o engaste para a parte interna da mão, tornava-se invisível; rodando-o para fora, tornava-se visível. Que fez? Seduziu a rainha, matou o rei e tomou o poder. Perante o cenário, ter-se-á de admitir que a causa da invisibilidade é plural: está presente no anel, mas também no dedo e no acto giratório. Só desta forma se assegura a conveniente invisibilidade do próprio anel.

domingo, 13 de outubro de 2013

Insuportáveis extremos

Os Monty Python criaram um sketch sobre uma anedota letal: ninguém poderia ouvi-la e, entendendo-a, continuar vivo. A causa da morte seria, portanto, o superlativo humor, com as reacções orgânicas inerentes. Segundo a tradição bíblica, ninguém pode ver Deus e continuar vivo, embora parece ter havido excepções. Aqui, talvez a causa da morte seja a infinita seriedade. Sem o equilíbrio dos dois extremos de seriedade e humor, não restariam pois condições para a existência de vida sublunar.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

As duas manhãs

Escreve-o Bernardo Soares: «A manhã do campo existe; a manhã da cidade promete.» Deve, por conseguinte, haver algures entre o campo e a cidade um ponto de fusão das duas manhãs. Será o lugar adequado aos que apreciam sínteses e convergências. Pode, no entanto, haver igualmente um ponto de omissão, um ponto onde a manhã do campo não «existe» e a manhã da cidade não «promete». Será esse o espaço ideal dos que preferem margens e silêncios.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Divisões e separações

Escoto Erígena dividia a natureza em quatro partes. Duas são a «natureza criadora e incriada», que é Deus, e a «natureza não criadora e incriada», que o é também. (Deixemos as sobrantes.) Ora o exercício de cindir o divino aguça o humor que permite suportar o humano. Durante um jantar, alguém questionara o filósofo acerca do que separava um Escoto («Scot») de um bêbado («sot»). Sentado do outro lado da mesa, Escoto terá respondido: «Apenas esta mesa.»

domingo, 14 de julho de 2013

Duplo movimento

Com a sua «revolução coperniciana», Kant atribuiu ao sujeito um papel activo: ele «mexe-se» rumo ao objecto, impondo-lhe intuições amplas e estruturas firmes. A ideia revelar-se-ia mais fecunda se integrasse a leitura contrária: o objecto «em demanda» do sujeito. Não seria arremedo de visão ingénua, antes evocação de escuta sazonada. Para observar as formas de um penedo, convém que de algum modo nos movamos. Para olhar as feições que a nuvem toma, importa que saibamos estar quietos.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Para autores potenciais de livros de auto-ajuda

Quem tencione escrever um livro de auto-ajuda deve basear-se nos ditames «Pensa positivo!» e «Agarra o instante!», banir de todo a análise crítica e adoptar um discurso convencional, onde não faltem «energias» e «visualizações». Para redigir um segundo livro de auto-ajuda, importa suprimir a tentação de inovar relativamente ao primeiro. Leitores fiéis de literatura do género chegam mesmo a temer irrupções inquietantes de originalidade eventual. Em vez de tal coisa, esperam só que a «ajuda» se repita.