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terça-feira, 7 de junho de 2016

Avaliar pelas aparências

Há um concurso num canal de televisão onde a determinado passo os concorrentes escolhem pessoas na rua para responderem por eles a uma pergunta esperando que falhem, já que só assim ganharão o seu punhado de euros. E os concorrentes lá se põem a avaliar pelo aspecto os transeuntes para ver qual dá garantias de ser ignorante, saloio, rústico, néscio, retardado — incapaz, na opinião deles, de acertar a resposta, como convém. E, claro, há risinhos quando o preconceito e o estereótipo parecem confirmados pela realidade, quando o escolhido não sabe a resposta. Não há contudo os mesmos risinhos de patética condescendência e superioridade quando o objectivo é que alguém acerte a resposta e, apesar de escolhido pelo seu ar de adequada urbanidade, falha. Também não há este tipo de risinhos quando o próprio concorrente, tão à vontade para avaliar alguém pelo seu aspecto, falha.

Por mim, se algum dia estivesse suficientemente tonto para ser concorrente, escolheria para acertar as respostas todo o transeunte que mudasse de passeio à mera vista da comitiva televisiva. Se é para julgar pelas aparências, este parecer-me-ia um excelente indicativo de inteligência. E escolheria para falhar as respostas todo aquele que tivesse ar de concorrente do programa, incluindo o apresentador. Grandes probabilidades estariam do meu lado. 

sábado, 9 de janeiro de 2016

Cortesãos de esquerda

A esquerda também tem os seus cortesãos, a quem as baixezas da democracia incomodam. Eduardo Pitta, no seu blogue, escandaliza-se com a permeabilidade de coador furado do Tribunal de Contas, no que se refere a filtrar candidatos às presidenciais, e vai daí faz birra e não assiste a nenhum debate, talvez boicote mesmo as eleições.

Eu também me escandalizo com o facto de ter havido 7.500 portugueses que subscreveram a candidatura de Tino de Rans. Para humor e nonsense ficaria bem mais aliviado (entusiasmado, na verdade) se 7.500 portugueses tivessem subscrito uma candidatura de Manuel João Vieira. Seria uma indicação de que alguns dos nossos compatriotas distinguem a sátira da anedota, a inteligência da brejeirice. Seria uma indicação de que uma quantidade apreciável de portugueses, se não se importa com o governo da pátria, é pelo menos criteriosa no que concerne à derrisão da pátria.

Contudo, não creio que as assinaturas e o mau gosto de uns tantos (lembro que o sistema é Democracia) poluam as assinaturas que habilitaram outros candidatos, até aos meus olhos mais apresentáveis. Elogio, aliás, o estoicismo e a polidez com que estes aceitaram todos os debates. De resto, só vejo os debates que quero e voto igualmente em quem quero. Se por alguma razão paranóica ou hipocondríaca eu temesse contágios bacteriológicos da ralé por simples contacto com o boletim de voto onde aparecem tão vis figuras, procuraria desde já umas luvas de cirurgião que dissessem bem com a minha toilette de 24 de Janeiro. Eduardo Pitta, não querendo da sua tribuna ajudar a esclarecer o eleitorado, pode cobrir da mesma forma os seus apêndices e poupar o país ao seu pedantismo e ao seu paternalismo. Portugal não são aqueles 7.500, 15.000 ou 22.500 portugueses que ele como eu execra. (Embora às vezes pareça, é certo.)

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

A timidez e o ‘piropo’

Numa conversa alheia a que assisto no Facebook como numa esplanada de café, com a mesma indiscrição semi-involuntária, alguém, uma mulher, diz de si mesma:
«Eu sou um típico caso de pessoa tímida, não gosto muito que olhem para mim, mas sei que isso é um defeito (…)»
Esta confissão e autocrítica associam-se a um conjunto de argumentos contra a penalização das propostas importunas de teor sexual (por preguiça designadas como ‘piropos’), um processo que a mesma mulher, jovem e com formação, considera promovido por «feminazis» (fêmeas ao que parece com vontade de controlar os homens).
É sintomático que alguém venha criticar este aditamento legislativo ao artigo 170.º do Código Penal considerando um defeito a sua própria timidez (ou seja, o seu mal-estar com a importunação). É sintomático porque, apesar do tom de bravata no resto do discurso, denuncia uma cultura de submissão, afinal o terreno fértil onde o comportamento intrusivo tradicional, sem respeito pela individualidade e pela sensibilidade do outro, se permite dominar, com direitos de cidade superiores, por supostamente a extroversão, incluindo este tipo de extroversão opressor, ser a condição ‘normal’, a condição das pessoas sem defeitos.

Não, cara facebookiana desconhecida, a sua timidez não é um defeito, é uma característica, aliás comum, que cabe a todas as outras pessoas respeitar. Defeito é a incontinência do ‘piropo’ importuno. Defeituoso é o caracter de todos aqueles que acham legítimo importunar outras pessoas com seja que tipo de pensamento ou desejo lhe vai na cabeça ou nas partes.

Teria sido necessário legislar sobre isto? Eventualmente não. Se os tímidos não achassem defeituosa a sua timidez e os importunadores tivessem suficiente educação e carácter para controlar a sua líbido excessiva. Mas se as vítimas nunca tivessem de recalcar a sua condição e os opressores jamais oprimissem, todo o Estado de Direito, com todos os seus códigos, toda a sua artilharia legislativa, seria pouco mais do que uma redundância, não?

Existem várias formas de uma sociedade prevenir comportamentos perturbadores da integridade alheia sem necessidade de recorrer ao braço pesado da Lei. A censura familiar e social pode ser uma delas. Quando esta falha, talvez devêssemos apreciar haver no país capacidade legislativa independente da vox populi. Se a vox populi prefere defender o direito de alguém a ser grunho (ou pior do que isso) contra a liberdade do outro, talvez aqueles que elegemos, numa democracia representativa, tenham o dever de se elevar acima da miséria moral e aprovar leis que defendam os tímidos do despotismo da ‘normalidade’.

Crise da imprensa: os meus contributos

A minha relação com a imprensa no último ano não tem contribuído nada para a sua saúde económica. Deixei de comprar o Público quando me incutiram a sensatez de considerar um euro e sessenta e cinco dinheiro a mais para um jogo de Sudoku (só comprava ao fim-de-semana, o baixo nível de dificuldade dos jogos de segunda a quinta não era estimulante). A única outra razão que me fazia (e faz) comprar o jornal era o suplemento Ípsilon. Há alguma possibilidade de entusiasmo e fascínio nas artes que não encontro no quotidiano político e social do país, na sua nefasta e maçadora previsibilidade. Sem me atrever a uma reflexão como a da Alexandra Lucas Coelho, julgo que, se o jornal diminuísse drasticamente o número de páginas e colunistas dedicados à vidinha e transformasse em caderno diário o Ípsilon, o número de compradores aumentava. Não subestimem a quantidade de pessoas que se está nas tintas para o futuro de Paulo Portas e dispensa a redundância de quotidianamente lhe darem as mesmas más notícias sobre o seu próprio futuro. Há, apesar de tudo, mais efervescência e diversidade na literatura, no teatro ou na música do que na vida da república. Desta, um resumo mensal dificilmente deixaria de fora qualquer novidade. Aliás, um almanaque anual ao género do Borda d’Água, com as suas tabelas de ciclos e reiterações e os mesmos provérbios e mezinhas, seria suficiente periódico nacional.

segunda-feira, 9 de março de 2015

100 Homens, 100 Preconceitos

A campanha "100 Homens, Sem Preconceitos – Um Passo pela Igualdade" (que fotografou cem homens em saltos altos) é decerto bem-intencionada, mas é simultaneamente estúpida, porque assenta num estereótipo — ou seja, num preconceito, dos tais que tenciona combater.
Imaginem que a Máxima, a revista promotora da campanha, convidava cem homens a experimentarem enfaixar as suas extremidades inferiores como durante dez séculos muitas chinesas tiveram de fazer em nome da “beleza”. Com “pés de lótus”, como com saltos altos, a revista haveria de registar o mesmo género imbecil de comentários masculinos — «isto é muito difícil!» ou «agora damos ainda mais valor às mulheres!» — e as mulheres estariam igualmente mal defendidas. E mal definidas.
A maior dificuldade das mulheres não é caminhar em 'stilettos', claro; já insistir em definir a feminilidade pela forma aguda do tamanco não facilita certamente, quotidianamente, a vida a muitas delas.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A Morada da Sabedoria

Na passada 2.ª feira, em ambiente de festa à entrada da biblioteca da UTAD, preparava-se o dispositivo para a matrícula dos novos alunos desta Universidade. A equipa era composta por vários estudantes, alguns doutores e professores. Havia um percurso sinalizado por fitas vermelhas e brancas, entre cadeiras e mesas alinhadas e música cuidadosamente seleccionada para o efeito.
Entre outras sonoridades igualmente melodiosas, o Bacalhau Caralho ecoava no hall de entrada do bastião do conhecimento, da arte, da investigação, dos valores académicos e humanistas por excelência.

domingo, 22 de junho de 2014

Elogio da impassibilidade

O suspense, a expectativa, os sustos, a angústia, as frustrações de assistir a um jogo de futebol têm uma certa equivalência aos prazeres da melancolia. Com a diferença de que no futebol ninguém suporta perder e na melancolia isso está implícito. Tive estes pensamentos enquanto antecipava gostosamente uma noite de mortificação em frente à TV, mas amigos muito mais ligados ao futebol do que eu dizem-me coisas como: «hoje, torcer pela selecção é mais ou menos como torcer pelos banqueiros, torcer por um negócio de outros que circunstancialmente são nossos compatriotas e usam as nossas cores». Postas as coisas nestes termos, se assistir ao jogo, fá-lo-ei de modo clandestino, anelando patrioteiramente (e por traição de classe) a vitória e reconhecendo maior justeza social na derrota.
Devo confessar ainda que a derrota me é mais conveniente também porque tenho ouvidos sensíveis e uma certa aversão estética a desfiles de carros buzinando inglória e jactantemente, como limusinas em Adis Abeba.
Ah, que saudades de sermos o povo melancólico que às vezes dizem sermos, impassível na vitória como na derrota.

sábado, 14 de junho de 2014

Diagnóstico

Vi agora mesmo um cartoon que pretendia representar o individualismo e na verdade representa o egoísmo. Dizem que os portugueses estão mais individualistas. É mentira. Os portugueses estão é mais egoístas. Só pensam em si, mas não pensam por si.
Os portugueses não estão (nem são) individualistas, não se afirmam senão em grupo, não têm iniciativa própria nem reclamam liberdade individual. Os portugueses são tão individualistas quanto carneirinhos em rebanhos. Amam o pastor por síndroma de Estocolmo e o cajado por morbidez do espírito.

(Que o dicionário confunda individualismo com egoísmo é um arcaísmo idiota, que ignora a Renascença e toda a filosofia subsequente.)


sexta-feira, 13 de junho de 2014

Profissão de (pouca) fé

Há quem ponha águias, gnomos, leões, sereias, querubins, senhoras-de-fátima ou cristos-redentores. O kitsch na estatuária doméstica não tem limites e o jardim de uma vivenda é, para mal da vizinhança, propriedade privada.
Mas se o jardim se transforma em horta, por força do “ajustamento”, o que passa a ser um cristo de braços abertos ali plantado? Uma confissão de impotência ou um aggiornamento? Talvez uma resignação: na impossibilidade de expulsar os vendilhões do templo, o filho de deus gosta de se saber útil a espantar os pardais do quintal. É isso ou o desemprego.

[Visto mas não fotografado, ao contrário desta outra aparição, que teve direito a post e foto:]

O fanico de Cavaco

Aprendi a certa altura que não se goza com as características físicas das pessoas. O debate público é acerca de ideias ou actos, não de deformidades. Uma corcunda ou um penteado ridículo não transformam em mentira ou erro as afirmações de quem os padece. A beleza e a feiura, como a saúde e a enfermidade, a inteligência ou a mediania, não fazem boas ou más pessoas.
Caricaturar o outro a partir dos seus defeitos ou padecimentos físicos é, portanto, recurso dos pobres de espírito ou daqueles a quem escasseia talento para mais. É humor que as tascas aceitam (porque aceitam tudo), mas delas não devia sair.
Dito isto, se me parece errado desejar que o fanico de Cavaco Silva seja consequente, não vejo por que a ocorrência (a quase queda) não possa ser invocada em frases irónicas sobre o seu mandato enquanto presidente ou sobre o regime que ele representa. Podemos desejar a máxima saúde para o cidadão Cavaco Silva — mas agradecer que ele a vá gozar por muitos anos longe de Belém.

De resto, depois de, por exemplo, a sua tirada sobre a reforma que aufere, a empatia que as pessoas eventualmente sintam pelo ser humano que ele é será sempre mérito da bondade delas — nunca efeito dos actos dele.
Cavaco, devemos reconhecê-lo, é um homo sapiens — não um santo. Tem direito a misericórdia — não devoção.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Bombos

[Para os patriotas que se entusiasmaram com o post anterior]

Observando desfiles populares noutras paragens geográficas, somos forçados a concluir com melancolia que, como povo, nem para descer alegre e ritualmente as ruas temos jeito.
As formações “musicais” mais requisitadas para arruadas nesta zona do globo são as de Zés Pereiras, ou equivalentes. O facto de serem constituídas apenas por percussionistas não seria um mal, se colmatassem a falta de instrumentos melódicos e harmónicos com virtuosismo técnico, variedade e complexidade rítmicas, originalidade de composições, brilho coreográfico, ousadia e destreza física ou elegância de trajes.
Mas não. A popularidade destas formações dá-se provavelmente porque, não necessitando de ponta de génio ou talento, são baratas — e sendo baratas são a desculpa adequada para instituições medíocres e desinteressadas de chamar talento ou génio para as suas cerimónias e festividades.
Acresce que para instituições e um povo do calibre dos nossos, o talento, mesmo que só para o fagote ou a gaita-de-foles, é um distintivo de “elite”, essa ameaça à mediania fundacional da pátria.


P.S. Além dos bombos, o único instrumento que a raça genuinamente ama (pela sua democraticidade, ou seja, por qualquer burro poder tocá-lo) é o triângulo (ou ferrinhos), esse objecto que só em mãos brasileiras ganha qualquer relevância musical.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Deixem o pimba em paz? As artes e o público

À saída do espectáculo DEIXEM O PIMBA EM PAZ (uma reinvenção brilhante de Filipe Melo e Nuno Rafael a partir do hegemónico repertório pimba) alguém registou duas reacções dos espectadores: a dos que gostaram porque os novos arranjos eram música genial e a dos que gostaram porque dava para reconhecer as cantigas originais.
Estas reacções do público parecem demonstrar que é possível fazer arte consensual, ou mesmo arte de qualidade para uma imensa maioria. Dar-se-ia assim razão a Filipe La Feria, que terá dito na noite dos Globos de Ouro que «o segredo das casas cheias é o talento».

Mas é precipitada a conclusão sobre a consensualidade — e, claro, está infelizmente errada a afirmação laferiana. Se voltarmos às reacções daquele público, vemos que o que agradou aos mais exigentes (ou menos engajados no género) foi apenas a magnificência dos arranjos, a sua qualidade de coisa nova e boa em si mesma, e o que agradou aos fãs das canções originais foi uma certa resiliência da coisa pimba, o conforto da sua permanência no novo objecto artístico. Não há exactamente nisto um consenso estético.

Posição diferente, e mais perspicaz (ou honesta), da de La Feria tem um espectador do Theatro Circo, que, indignado, se queixava há dias na página de Facebook daquela sala que «tudo o que fuja 1 milímetro ao mainstream (quase) não tem público».

A recepção das artes, para a maioria das pessoas, tem muito menos a ver com méritos artísticos de criadores e intérpretes do que com factores externos, como a psicologia de massas. É muito menos uma questão artística do que sociológica, cultural (no sentido de educação, tradições, costumes, hábitos, rituais, valores, ideologia, preconceitos, imaginário, etc.). O espectador português não vai em massa aos espectáculos por interesses estéticos. Ou, dito de outro modo, a estética das multidões não é artística, mas, digamos, étnica, identitária, gregária. O espectador que integra grandes plateias vai aos espectáculos em busca de entretenimento, e vai também para se inscrever no grupo, se incluir no ritual, se saber parte da encenação social da comunidade, poder dizer também fuitambém estivetambém vi, também sou, faço parte. É o mesmo impulso emulador que leva o turismo de massas ao Algarve, ao Brasil ou ao resort na República Dominicana. Não é necessariamente a qualidade das praias que o leva ali, mas o conforto e a excitação de ir onde todos vão, de pisar onde os outros pisaram, de não ficar para trás, de não ser excluído, de não ser aquele que não foi, não esteve, não viu, não fez parte, aquele que não é. Um local ou um espectáculo são declarados objectos «de excelência» para um colectivo pelo mesmo mecanismo gregário que junta as pessoas em volta da Selecção Nacional em dia de vitória (antigamente era também na nave da igreja em dia de terramoto), ou que as põe a vestir em cada estação roupa igual sem lhe chamar farda ou uniforme.

Malgré La Feria, o talento artístico, portanto, tem pouco a ver com a presença massiva do público nos espectáculos — assim como a ausência do público não é geralmente uma posição estética ou crítica em relação a um espectáculo. No tempo de Shakespeare, ou na Lisboa de Garrett, o público ia em números significativos ao teatro, mas isso não significa que gostasse ou percebesse mais de teatro do que o público de hoje. Significa sobretudo que isso era o que a comunidade fazia com naturalidade naquela altura. Ia-se ao teatro, era o rito social. (E já então as pateadas e as aclamações conseguiam frequentemente não corresponder ao mérito das peças.)

Estas considerações não levam à conclusão de que o público é inepto, mas à de que, aglomerado em multidões, o seu critério se dilui, se transfere da apreciação estética para a aprovação social — e à de que é susceptível de manipulação, mais ou menos consciente ou maquiavélica. Talvez ainda haja encenadores ou produtores que contratam claques para aplaudir as suas peças ou patear as dos adversários, mas o campeonato já não se joga aí. As rivalidades entre criativos são, aliás, deste ponto de vista, ridículas: os criativos (se usarmos o termo também para adjectivar a classe) estão infelizmente todos do mesmo lado: o lado dos sem público (para dramatizarmos um pouco a coisa). Clássicos ou contemporâneos, apologistas do texto ou da performance física, indefectíveis do sentido ou niilistas absolutos, conservadores ou ferozes experimentalistas — não depende dos criativos ter espectadores às centenas ou moscas nas suas salas (continua a dramatização). A afluência em massa de espectadores não se fará pelo brilhantismo do que se apresenta no palco mas pela particularidade de o local, o espectáculo, ou algum seu protagonista terem sido eleitos instrumentos de inscrição social. As pessoas aparecerão numerosamente se sentirem que vão ali, divertir-se, é certo, mas sobretudo receber a bênção da inclusão, ser ungidas de visibilidade e aceitação, aparecerão se ali lhes for dada existência, uma existência de corpo celeste que orbita e depende da sua estrela. Este género de espectador, o género que pode constituir plateias numerosas, aparece num espectáculo um pouco como um concorrente no Big Brother: à espera de ser premiado por existir ou estar. Percebe-se que um e outro mantenham uma boa relação.

Um espectáculo que tenha uma figura do tal mainstream, famosa (famosa por exemplo pela sua proverbial falta de dons) corre muito mais o risco de esgotar do que um que tenha várias pessoas apenas talentosas. Mas isto continua a não ser suficiente para classificar o público de inepto, porque em rigor ele não está neste contexto a exercer função de público, não de público de artes. A sua atenção não está virada para o objecto artístico, mas para o comércio social. O público aparecerá para testemunhar o fenómeno, coleccionar a memória da experiência, sentir que não ficou de fora do rito — não para fruir uma melodia, um texto, uma interpretação.

Não sendo necessariamente inepto, o público que apenas funciona em massa também não é, todavia, curioso. E também isso explica a sua ausência de tantos espectáculos, como referia o espectador lá em cima. Este público não dá o benefício da dúvida a um espectáculo que ainda não tenha sido visto e aprovado por centenas ou não tenha em si os elementos que garantem essa aprovação, os elementos da previsibilidade (ou seja, um cúmulo de repetições e clichés). Este público não vai por sua iniciativa espreitar um jornal, um site, um cartaz ou um palco onde o que esteja em causa seja um espectáculo novo e não um espectáculo aclamado. O que naturalmente traz um problema para autores ou espectáculos ainda não sancionados por uma multidão, mesmo que excelentes.

Não estando disposto «a pagar para ver», a arriscar num espectáculo ou artista desconhecido, não procurando realmente experiências estéticas mas catarse social, e sendo incapaz de gerir o seu próprio cânone sem o submeter à validação geral, este público tende a confundir critérios estéticos com atributos não artísticos. O «renome» de um artista (cuja origem o público não investiga e cujo prazo de validade não verifica) substitui os seus dotes vocais ou coreográficos, a sua inspiração a cada novo trabalho; o género praticado por um par de vedetas é, por sinédoque, uma coisa boa, mesmo que os demais praticantes sejam medíocres; a «visibilidade» mediática é alvará superior ao diploma do conservatório, à opinião da crítica especializada ou ao arbítrio individual, pessoal; uma grande quantidade de visualizações ou testemunhos «promete» que a experiência será positiva e suspende desde logo o juízo próprio, garante por isso a posterior ratificação.

O segredo das casas cheias não é, portanto, o talento, mas o ter-se bafejado o objecto com o hálito saturado das multidões ou com o seu sucedâneo laboriosamente preparado pelos alquimistas de serviço.

E os alquimistas de serviço não são os criativos. Quem hoje manipula o público, para retomar a prática oitocentista referida atrás, não são os directores ou os donos das companhias. A «inscrição social» que alguma arte pode proporcionar e que a faz ser procurada por multidões, na sua freudiana necessidade de unção e integração, não está nas mãos dos criadores artísticos, mas nas dos media, sobretudo nas da TELEVISÃO. O pimba não sairia do relativo anonimato das feiras e romarias de província, como o fandango e a chula, se a televisão e Herman José não se tivessem apaixonado por ele. (Em contrapartida, também Filipe Melo e Nuno Rafael não teriam tido provavelmente vontade de aplicar o seu génio a material tão insípido e monótono se ele se tivesse mantido circunscrito.)

A televisão não é só the drug of the nation — é para as massas o árbitro da elegância. Ninguém pode esperar que o público seja massivo no teatro se o teatro está ausente da televisão.
E a influência da televisão é tanto maior quanto as elites, duma maneira ou doutra, participam dela.

Os GLOBOS DE OURO (como noutra dimensão os Oscares) são reconhecidamente um miserável Panteão das Artes, são uma cerimónia de pechisbeque de onde a crítica, o juízo estético e tantas vezes o mero bom gosto estão ausentes. Contudo, uma boa parte dos que não reconhecem autoridade à cerimónia passa a noite a acompanhá-la, pela TV, pelo Facebook, pelo Twitter, por sms, pelas informações de amigos. Esta elite de excluídos dos Globos (excluídos porque não foram convidados ou auto-excluídos porque os desprezam) fica de fora a gozar ao detalhe o acontecimento ou a odiá-lo como a um amor antigo — e participa assim do mecanismo de entrosamento ou coroamento social que ele constitui, porque a caricatura, o insulto ou o ressabiamento mal disfarçado entram no metabolismo do monstro, fazem-no crescer.

Os Globos de Ouro servem para ungir os premiados não necessariamente pelo seu mérito, mas pela conveniência que o acto acarreta. Conveniência para o canal. Alguns prémios são apenas a confirmação do critério (encontrar o premiado que valide a ideia, o conceito que se quer valorizar). Outros, frequentemente, são atribuições que, numa inversão de funções, procuram garantir notoriedade ao próprio programa e ao canal, procuram inscrevê-los socialmente. O árbitro quer definir o que é elegante — e quer que os elegantes lembrem a todos quem é o arbitro.

É esta espécie de tautologia que está na origem do afunilamento pimba das televisões. (Repare-se que pimba já não é apenas aquele género musical brejeiro e uniforme, é uma forma de estar, um amarfanhamento social que faz, por exemplo, com que se torne difícil distinguir, pelo lado do público, um concerto de Tony Carreira de um de Abrunhosa.) A existência de audiências fragmentadas por gostos, interesses ou divergências estéticas seria perigosa e dispendiosa para os canais televisivos. Perigosa porque estimularia mais o zapping, dispendiosa porque exigiria mais conteúdos, mais formatos, mais inventividade, mais inteligência, mais talento. O pimba não é necessariamente ou apenas uma simpatia natural dos proprietários e directores de canais — é o fruto do seu esforço para impor pelo facilitismo a marca e lucrar mais com menos investimento. O gosto único é, talvez, do ponto de vista das televisões, menos uma ambição ideológica do que um instrumento de economia. Em todo o caso, faz sempre parte de uma estratégia de poder.

E falar de poder remete-nos para o ESTADO. Que papel o Estado há-de reservar para si nesta relação difícil entre público e artes?
Antes de mais, o Estado deveria definir se lhe interessa ter um papel. Atendendo a que já não há mecenas (os mecenas, como se sabe, eram o Estado na Antiguidade Clássica e na Renascença, já que de uma forma ou de outra viviam dos rendimentos que obtinham do povo), atendendo a estas circunstâncias, eu diria que sim, que ao Estado interessa ter um papel, mas eu sou um antiquado, um conservador. Tomemos o estado de direito, por exemplo. O estado de direito é uma coisa dispendiosa, não dá lucro, mas é talvez a maior conquista civilizacional da humanidade. Nenhum governo, por mais bruto que seja, se atreveu (para já) a considerar o estado de direito obsoleto ou a achar que o ministério público e os tribunais deveriam ser privatizados, financiados pelos que os demandam, sem qualquer participação do Estado. Ora, as artes e o direito caminharam, historicamente, ombro com ombro. Dialogam intimamente, do ponto de vista filosófico. A capacidade de abstracção, o sentido crítico, o debate, a independência de raciocínio e de opinião, a criatividade, a imaginação, tudo isto que nos trouxe ao século XXI são características que a humanidade apurou com o tempo e que de algum modo foram também estimuladas, potenciadas, exercitadas pelas artes. Seria um pouco pretensioso (e perigoso) da nossa parte achá-las agora dispensáveis.

O Estado, de forma activa ou por interposta legislação, com maior ou menor convicção, é (tem de ser) o garante último da biodiversidade, da preservação da memória, dos direitos das minorias e da alternativa democrática. Se não tivermos outras ideias para as artes, diria que no mínimo devemos encaixá-las nestes conceitos, tê-las em conta do ponto de vista ecológico (criando «reservas territoriais» onde elas possam medrar), do ponto de vista social (garantindo um rendimento de sobrevivência para intérpretes e espectadores, podendo estes ser providos em géneros pelos primeiros), do ponto de vista histórico-patrimonial (desenvolvendo uma política de «património vivo» para salas de espectáculos e galerias) e do ponto de vista político-filosófico (assegurando a possibilidade de propostas alternativas e o direito democrático à livre escolha, à escolha livre de proselitismos televisivos).

Ironias à parte, que tipo de reflexão deve o Estado fazer sobre as artes e o público? Perante a constatação de que não vão multidões ao teatro, uma reflexão sobre artes não deveria concluir que o teatro deve ter menos apoios (nem aumentar o IVA dos bilhetes). Do mesmo modo que aos governos preocupa a abstenção (pelo menos envergonham-se de confessar que não preocupa), devia preocupá-los a ausência de público no teatro. A qualidade de uma democracia sai talvez prejudicada se as pessoas não votarem, mas a qualidade do voto sai prejudicada se as pessoas não tiverem uma relação íntima com as artes e o pensamento informado e crítico que elas estimulam. Uma reflexão sobre artes, portanto, debruça-se sobre como levar mais público ao teatro.

Um governo não é um canal de televisão. Não pode ter como objectivo uniformizar a sociedade para melhor a governar e para governar mais barato. Governar mais barato pode ser uma triste necessidade, não uma aspiração. Daí que a um governo que queira ser realmente útil não possa deixar de se colocar duas questões: como levar mais público às artes (ou seja, ao pensamento crítico) e como (que é quase o mesmo) contrariar o proselitismo pimba das televisões.
A resposta à segunda questão passaria por açaimar ligeiramente, legislativamente, as TVs, mas isso é certamente pouco democrático e pouco liberal.
A resposta à primeira questão, que a prazo também responderia à segunda, reside em grande parte no ensino, essa instituição que o Estado (para já) ainda controla.

Com a entrada do ministro Crato, um intelectual que quase toda a gente estimava, o ENSINO ficou ainda mais de costas voltadas para as artes. (Foi assim com este governo, transformou desde o início pessoas interessantes em factótuns da política bulldozer.) Mas em rigor não é o actual ministro que deve ser culpado por o ensino não educar as crianças para as artes, para a estética, para a literatura, para o pensamento crítico. O mal é antigo. Na ausência de uma boa política institucional, as escolas foram deixadas à livre iniciativa (o que só por si não é um mal e em muitos casos teve resultados positivos) e essa ausência de enquadramento conduziu geralmente ao voluntarismo. A ênfase passou em poucas décadas de levar acriticamente os miúdos ao teatro, por exemplo, de os deixar enfiados e contrariados durante uma hora numa plateia a ver o que quer que fosse, para a originalidade de os levar directamente para o palco, ainda mais acriticamente e com frequência sem qualquer relação com a sua vocação. Há hoje no país centenas ou milhares de crianças que estiveram mais vezes num palco (calorosamente ovacionadas, e por isso induzidas em erro, pela família e os amigos) do que numa plateia, e em tantas das ocasiões em que estiveram na plateia estiveram a ver e a aplaudir sem critério crianças como elas. O equívoco tem as suas raízes antigas no pensamento muito esquerdista e igualitarista de que todos temos talento, todos temos criatividade, todos temos um poeta ou um bailarino dentro de nós. Depois foi continuado pela bigbrotheriana ideologia, ainda mais «democrática», de que todos temos direito à fama, mesmo que não façamos absolutamente nada para a merecer. A televisão, claro, contribui fortemente para isto, com as suas chuvas de estrelas, os seus inesgotáveis programas de talentos, e, não raro, os seus shows para macaquinhos de imitação.

Como resultado desta soma de equívocos — nem todos conscientes ou mal-intencionados, conceda-se — temos hoje grandes fragmentos geracionais que não sabem distinguir o mérito, o talento, a criatividade, a originalidade. Que não conhecem a história das artes nem têm com elas qualquer relação intelectual ou de afecto. Que «detestam» figadalmente o que não conhecem (e é quase tudo) e idolatram qualquer frivolidade que se pareça longinquamente com o «talento» e o gosto promovido pelas TVs.
Há muitas excepções a este cenário miserável, mas o ensino não devia viver apenas de iniciativas individuais (e difíceis, desprezadas) de professores esclarecidos e esforçados.

As artes no ensino não são importantes porque, na tal perspectiva laferiana, podem assegurar «casas cheias» no futuro (as estatísticas são outro equívoco), não é esse o ponto. A formação artística que o ensino pode e deve proporcionar não deve estar necessariamente focada em criar «públicos» (isso será um resultado natural) nem em criar artistas (a vocação não se incute). Prioritárias a isso tudo são a sensibilidade, o espírito crítico, a capacidade de abstracção, a autonomia de pensamento e o conhecimento, para os quais as artes são um veículo útil.

As artes não se fruem sem uma boa parte de individualidade, de concentração, de existência intelectual própria e capaz de se alhear dentro de si mesma pelo período de um andamento musical, de um monólogo, de uma sequência coreográfica, de um capítulo de um livro. Infelizmente as escolas não favorecem isto (que por natureza não é fácil) e o resultado é termos já hoje uma ou duas gerações que não se imaginam fechadas numa sala por uma hora sem poder conversar e gritar, sem trocar sms, sem fumar um cigarro ou beber um copo. As salas de cinema renderam-se a esta forma de estar e a própria Hollywood produz há muito filmes que não exigem atenção permanente ou perspicácia. Nos teatros, os espectáculos de massas são geralmente as comédias, os musicais ou os concertos, produções, que, se não dão para o cigarrito e a mini, sempre permitem a interacção na plateia e com o telemóvel durante as representações.

Face a tudo o que ficou dito, o maior paradoxo é que talvez nunca como hoje Portugal tenha tido nas artes tanta gente talentosa, criativa, cosmopolita, com bom gosto e formação sólida. Enquanto nação, não estamos à altura dos nossos actores, bailarinos e músicos. 

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Dilúvio

Há duas relevantes estratégias para superar os embaraços desencadeados pelos silêncios da vida social: uma delas consiste em fazer alusões ao estado do tempo; outra, em tecer comentários ao estado a que o país chegou. Existem, no entanto, fórmulas que as sintetizam a ambas. Eis um exemplo, saído de voz tonitruante: «Isto vai tudo acabar em dilúvio!» Trata-se de uma sentença universal, capaz de corrigir qualquer silêncio. Ao invés do dilúvio — que não permite emendar grande coisa.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

38

Afirma um estudo recente que aos 38 anos (em média) o homem se torna igual ao seu pai: adormece no sofá, ri das piadas próprias, etc. A figura do progenitor, no entanto, constitui aqui um mero artifício retórico: aos 38, o indivíduo entra no «campo dos velhos» — particularismos genéticos são irrelevantes. Uma tal conclusão, bizarra e totalitária, até dá vontade de adormecer no sofá, de rir das piadas próprias — e das anedotas que estudos assim involuntariamente representam.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

O meu prédio é uma metáfora nacional

O meu prédio é uma metáfora nacional. Durante anos apenas nos mijavam diária e copiosamente a entrada principal. Os excessos da boémia académica são o tributo que a terra aceita pagar pelos benefícios de ser uma cidade universitária. Pode dizer-se que Vila Real contribuiu activamente para hoje termos a geração mais indiscutivelmente bem formada da história lusa.
Como o progresso é imparável, no último ano temos também diariamente mijada a porta das traseiras. Já não pelos frequentadores das tascas do bairro, mas por adolescentes do prédio que se acoitam à noite, com as suas playstations, primeiros cigarros e cervejas clandestinos, numa das garagens familiares convertida em sala de jogos.
Lamentavelmente, dentre as benfeitorias levadas a cabo na garagem não parece constar nenhum WC, penico ou algália. Os papás proprietários da garagem não devem ter sentido necessidade disso porque confiam demasiado na elasticidade das bexigas juvenis, ou, mais certamente, porque não utilizam a nossa porta das traseiras, a mais discreta da fachada.
Em consequência da boçalidade adulta e da imbecilidade infanto-juvenil, do desleixo duns e da má-educação doutros, no meu prédio entra-se hoje sempre de mão no nariz e a descolar os sapatos depois de cada passo dado. O exercício é particularmente divertido e peganhento nos dias em que, como agora, há pó verde de pinheiros também nas entradas dos edifícios.

sexta-feira, 14 de março de 2014

O pimba do Senhor

Nos meus tempos de adolescente e néscio (com os anos, abandonei a primeira condição), achei assaz progressista, apesar do traje, um franciscano que me incitou a levar o baixo eléctrico para cima de um palco onde se cantavam hinos ao Senhor. Passou-se isto no catolicismo e numa era anterior à editora Flor Caveira, do evangélico Tiago (Guilul) Cavaco. O pioneirismo católico, aliás, havia-se já manifestado quando na década de setenta a Igreja sobrepôs letras de excitação beata a canções de Bob Dylan. E o aggiornamento não mais parou. Hoje, muito modernas formações musicais louvam o Senhor como aos domingos à tarde se louva na TVI a genitália feminina: com vocalista trejeitoso e partenaires gesticulantes, comprimidas em slim jeans ou calças de lycra e t-shirts um número abaixo. (Se não tivesse visto, não seria capaz de imaginar isto.)
A estética e o sentido coreográfico pimba são tão omnipresentes em Portugal quanto Deus Ele Mesmo. E mais influentes. Não admira que a própria Igreja ache natural que, em palco, se declare amor a Cristo com os passos, os gestos, a melodia, o instrumental e os coros que geralmente se usam na TVI para, com trocadilhos e metáforas de baixa extracção, se aludir a fodas, minetes e broches.
De resto, se é popular, a Igreja procura absorver, como sempre fez com qualquer ritual pagão. Que se lixe a estética e a lógica, se isso lhe permitir recensear mais umas almas (importa-lhe mais a estatística das almas do que as suas práticas). Não se pode é a Igreja admirar que os aleluias gritados no apogeu dos cânticos passem a ter outra conotação e o êxtase deixe de ser místico.


P.S.: «E nós… pimba, Senhor», poderia ser uma resposta moderna ao «crescei e multiplicai-vos», não fosse a contracepção.

P.S.2: Já no Natal, poderiam substituir-se as estrofes gastas do «Noite Feliz» por versos mais modernos: «Mas quem será? Mas quem será? Mas quem será / O pai da criança, eu sei lá, sei lá… eu sei lá, sei lá...»

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Diálogo de partisans

J.: Vai haver um dia em que as pessoas de bons sentimentos e ilustração terão de se mobilizar contra uma sociedade onde imperam jotinhas e boçais.

G.: Concordo, mas temo é que pelo andar da carruagem essa mobilização seja já a de um movimento de resistência, de sabotagem, clandestino, de sobrevivência — não a de um exército que impressione e vença guerras pela mera exibição do número das suas tropas.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A liberdade de ser e o papel do bobo

Os pobres de espírito e de carácter (e até de inteligência, não pode ser totalmente inteligente quem não percebe o conceito de liberdade individual) hão-de precisar sempre de alguém a quem discriminar, sobre quem fazer recair raivas, preconceitos, frustrações, complexos. A História ensina: mulheres, pretos, judeus, homossexuais… Há sempre um “argumento” de ordem “natural”, “científica” ou “cultural” para negarem ao próximo aquilo de que se consideram legítimos (alguns por direito divino) detentores: a liberdade de ser. É da definição de liberdade global que o direito a ser imbecil, inalienável, tem de se restringir à esfera do próprio indivíduo. Por favor ninguém proponha, neste estádio da civilização, um referendo sobre a possibilidade de as pessoas serem parvas para si mesmas. Direitos humanos não se referendam — e continuamos a precisar de cromos de quem rir. Não os deixemos é legislar, não é esse, historicamente, o papel do bobo.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Praxes

Julgo por vezes que ninguém que mereça respeito intelectual simpatiza com o mundo idiota e perigoso das praxes universitárias. O que é que isto significa? Que tenho uma visão restrita das pessoas que merecem respeito intelectual? Talvez. Sou um sentimental, mas não confundo afecto e piedade com admiração. Não acho inteligentes ou iluminadas todas as pessoas que amo ou por quem tenho compaixão. Neste tempo de dificuldades, por exemplo, apiedo-me do país, mas continuo a não o ter lá assim em grande consideração. O país aceita as praxes — eu tenho pena do país também por isso.
O que acho mesmo que isto significa é que ninguém respeitável do ponto de vista intelectual tem poder ou, tendo-o, o quer exercer contra a imbecilidade geral. Isto significa também que à frente de uma parte das universidades, como do país, estão idiotas, comodistas ou cobardes.
A natureza estupidificante e fascizante das praxes universitárias está há muito identificada. Num mundo de adultos, ou num mundo de gente decente e culta, a sua abolição tinha ocorrido há muito, sem dramas, com a veemência célere e inelutável dos gestos necessários e consensuais.
Acontece que Portugal não é nenhum desses mundos. O poder dos reitores e o poder da gente decente e culta é limitado. O respeito intelectual é uma daquelas coisas obsoletas, como a palavra de honra ou a honestidade. Quem o merece, torna-se geralmente clandestino, por segurança. Como nos media e na rua, a indigência intelectual sequestrou o que resta de inteligência e cultura no campus. Os reitores são tolerados no seu posto — não exactamente respeitados ou obedecidos. Os professores não contam, e muitos deles são suficientemente cultos e intelectualmente respeitáveis para abominar as praxes.
No mundo de anedota que é Portugal, os próprios jornais de referência identificam um rapazola qualquer como «ex-responsável pelo conselho de praxes». Notem-se os termos, a sisudez e a gravidade dos termos: «ex-responsável» para definir um ex-cabecilha de uma comandita vocacionada para a galhofice e a humilhação. Como se houvesse naquela figuras alguma ponta de responsabilidade no sentido institucional ou ético do termo. Como se com frequência aquela responsabilidade não fosse meramente do âmbito do Código Penal. E «conselho de praxes», assim, embrulhado em respeitabilidade, em seriedade, como se os adultos dos jornais se empenhassem na brincadeirinha das crianças, sorvessem cerimoniosamente o chá que não está nas chávenas, mastigassem convictos e censurando-se as cólicas a lama dos bolinhos que as crianças lhes dão a comer.
Que a rapaziada nos seus divertidos e irresponsáveis vinte anos crie «conselhos» e nomeie «responsáveis», determine «códigos» que regem a companhia alegre, compreende-se — quem não quis ter na adolescência um clube secreto ou uma casa na árvore? Que os adultos de um país, os seus jornais, as suas instituições e os seus líderes não ponham limites à brincadeira é caso para levar a nação ao divã de Freud ou a internar no Conde Ferreira. Se houver verba. E vagas.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Falta de vergonha

Francisco José Viegas toca num ponto essencial: «as pessoas “já não se envergonham” de dizer que não lêem livros.» O mesmo é dizer que as pessoas já não se envergonham de não lerem livros.

Na emancipação do povo português houve este equívoco fatal: as pessoas acharam que a grande vitória era perderem a vergonha da sua condição — quando a grande vitória deveria ser terem ultrapassado a sua condição.

É verdade que em momento nenhum da História deveria ter havido razões para que alguém sentisse vergonha das suas origens humildes. Mas, do mesmo modo que as pessoas procuraram vencer a pobreza enriquecendo, do mesmo modo que ninguém hoje se orgulha de ser pobre mesmo quando tem o azar de o ser, ninguém devia sentir orgulho de não ler. Sai-se de uma situação de carência estrutural suprimindo essa carência, não passando a decretá-la virtuosa. A incompetência do país vive também deste equívoco.

A questão é esta: em tantos casos, mais do que terem perdido a vergonha de não lerem, as pessoas sentem um orgulho revanchista nessa sua recusa dos livros. Como se os livros e a leitura fossem caprichos das antigas classes opressoras e a libertação só ficasse completa com a sua abolição. Muitos destes revanchistas, mais ou menos conscientes do seu jacobinismo desajustado e patético, ocuparam cargos ou conquistaram notoriedade, granjearam influência. Uma grande parte da nossa classe política, da classe política que tem desgovernado o país nas últimas décadas, é constituída por arrivistas destes.
Quem julga que os livros são um problema de editoras e gente ociosa é já um produto desta emancipação falhada. E há demasiada gente com responsabilidades a julgá-lo.

Não direi, para dialogar com a metáfora final do texto de Viegas, que «os bárbaros» já entraram na cidade, mas estamos certamente sitiados pelo glamour da indigência. Armemos as pessoas de vergonha.