terça-feira, 10 de junho de 2014
Bombos
Observando desfiles populares noutras paragens geográficas, somos forçados a concluir com melancolia que, como povo, nem para descer alegre e ritualmente as ruas temos jeito.
As formações “musicais” mais requisitadas para arruadas nesta zona do globo são as de Zés Pereiras, ou equivalentes. O facto de serem constituídas apenas por percussionistas não seria um mal, se colmatassem a falta de instrumentos melódicos e harmónicos com virtuosismo técnico, variedade e complexidade rítmicas, originalidade de composições, brilho coreográfico, ousadia e destreza física ou elegância de trajes.
Mas não. A popularidade destas formações dá-se provavelmente porque, não necessitando de ponta de génio ou talento, são baratas — e sendo baratas são a desculpa adequada para instituições medíocres e desinteressadas de chamar talento ou génio para as suas cerimónias e festividades.
Acresce que para instituições e um povo do calibre dos nossos, o talento, mesmo que só para o fagote ou a gaita-de-foles, é um distintivo de “elite”, essa ameaça à mediania fundacional da pátria.
P.S. Além dos bombos, o único instrumento que a raça genuinamente ama (pela sua democraticidade, ou seja, por qualquer burro poder tocá-lo) é o triângulo (ou ferrinhos), esse objecto que só em mãos brasileiras ganha qualquer relevância musical.
quinta-feira, 5 de junho de 2014
Mau augúrio
terça-feira, 18 de fevereiro de 2014
Pedras Salgadas: futuro e memória
As ecohouses de Pedras Salgadas têm recolhido elogios e prémios. Merecidamente. São de facto bonitas, inteligentemente desenhadas e integradas no arvoredo do centenário parque. Convidam irresistivelmente a habitá-las por um ou muitos fins-de-semana mesmo quem como eu praticamente nasceu e foi criado naquele território romântico. Mas não sei se tem sido referido um aspecto essencial: parte do sucesso das casas deve-se… ao arvoredo do parque.
As ecohouses precisam de um cenário. Tanto para os que se encantam apenas com as fotografias (e são a maioria) como para os que de facto as visitam ou alugam. Quem já pôde confirmar com os olhos que as casas são algo mais do que um belo projecto, com animações 3D muito pitorescas e realistas, terá por certo intuído que o cenário já era bonito antes de as casas existirem. Na verdade, o sucesso das ecohouses das Pedras Salgadas iniciou-se há mais de um século, quando o parque começou a ser plantado. Não abundam no país territórios como aquele e deveriam ser ferozmente protegidos.
Uma parte das pessoas que ama as Pedras Salgadas, por baptismo ou adopção, indignou-se com o projecto das ecohouses. Parecia um sucedâneo miserável dos sonhos que as pessoas têm para ali. E de algum modo estavam certas em achar as casas um sucedâneo. São-no. De uma forma literal e pragmática. Substituem os hotéis que no seu tempo tiveram igual (ou maior) sucesso. Mas substituem-nos não necessariamente de uma forma aviltante. Há um certo realismo no projecto (e o realismo é quase sempre desmancha-prazeres), mas neste caso é um realismo sensato. Ou antes: sensível. Há que reconhecer que as construções, ainda que modernas (ou por isso mesmo), não feriram o território, respeitaram-no, dialogaram construtivamente com ele, como a boa arquitectura sabe fazer. E são facilmente desmontáveis, descartáveis, se acreditarmos que algum dia o termalismo terá suficiente importância para encher hotéis em vez de casas nas árvores e defendermos que as duas actividades são incompatíveis.
Há certa legitimidade em achar que os lucros de quem explora as águas das Pedras (e paga os correspondentes impostos em Lisboa ou na Holanda) deveriam obrigar — se não legal, moralmente — a concessionária a ser um pouco menos realista e a sonhar um pouco mais com a terra. Mas esperar-se que reconstrua os hotéis e os ponha a funcionar (como felizmente fez com o Balneário) é talvez irrealista, se nos lembrarmos que a mesma empresa é também proprietária do magnífico Vidago Palace Hotel, ali ao lado.
No curto prazo (enquanto o turismo termal não a estimule suficientemente, se confiarmos que algum dia o venha a fazer), uma das formas que a concessionária das águas tem de beneficiar a terra, de lhe assegurar um futuro digno da sua antiga glória, é proteger o património, como fez com as ecohouses (e com o Casino, sejamos justos). Proteger desde logo, inexoravelmente, a sua enorme riqueza botânica — e proteger o que resta de história, de memória nas ruínas do Grande Hotel, do Hotel Universal, das Romanas (com a sua fonte e edifício adjacente). Fora de muros, o território das Pedras Salgadas tem sido paulatinamente descaracterizado. De termal resta ali praticamente a memória. Dentro de muros, há abundância de fantasmas, mas fantasmas benignos e eventualmente lucrativos.
Depois dos buracos deixados pela demolição do Hotel do Norte, do Bazar Fotográfico, da Pensão do Parque e do Hotel Avelames (deve dizer-se que este tinha sido já bastante prejudicado por intervenção medíocre anterior, que além de descaracterizar o edifício abriu uma clareira no bosque contíguo, revelando que os arquitectos responsáveis não perceberam o espírito romântico e o interesse da sombra num parque termal); depois da demolição da Casa de Chá na Romanas, a concessionária das águas mostraria já um grande respeito pela terra, ajudá-la-ia bastante (por vezes até contra a vontade dela) se não permitisse o abate de nenhuma árvore que não estivesse doente e se parasse com as demolições.
O turismo termal nos dias de hoje tem potencialmente mais motivações do que a tradicional ida a águas. Há a vertente da natureza (que o marketing das ecohouses evidentemente explorou) e há uma “arqueologia termal”, um “turismo de época”, de “nostalgia” que não deveriam ser negligenciados. Ora, estas duas vertentes só poderão ser rentabilizadas se o património edificado persistir, como em Roma o Coliseu ou o que resta do Fórum. Claro que custa muito dinheiro pôr os edifícios habitáveis, mas custa certamente muito menos estabilizá-los, dar-lhes segurança, fazer deles elementos dignos da paisagem, do cenário que são o parque termal e as Romanas. A Unicer será já amiga das Pedras Salgadas se deixar de demolir património e se impedir a sua descaracterização. Se zelar para que quaisquer intervenções nas suas propriedades (ou em áreas que com elas conflituem) se façam com a mesma inteligência, o mesmo gosto, a mesma sofisticação, a mesma clarividência arquitectónica das ecohouses.
Estão em curso intervenções na marginal ao rio (e ao Parque) e nas Romanas. Eis um bom momento para a Unicer assegurar que no futuro lhe agradeceremos a defesa intransigente que ela fez da nossa memória, do nosso património — e do nosso futuro. É que se se distrai ainda lhe plantam uma rotunda com uma torneira em frente à entrada.
terça-feira, 22 de outubro de 2013
Ideologia e competências autárquicas
Já se sabe que para os contribuidores do Blasfémias o Estado devia desaparecer, e nesse sentido é esclarecedora a visão caricatural das competências autárquicas que Rui A. (nome artístico ou timidez juvenil?) apresenta neste post:
«Em vez de tapar os buracos das ruas, licenciar novos prédios*, dar um destino decente ao Bolhão e resolver os problemas do trânsito, o programa da coligação municipal Rui Moreira/PS tem por objectivos “as prioridades que foram amplamente sufragadas pelos portuenses: Coesão Social, Economia e Cultura”. “Coesão Social, Economia e Cultura”? E nas mãos do PS? Tremam, portuenses!»
É generoso da parte do blogger blasfemo confiar os buracos e o trânsito às câmaras (quando lá no íntimo acredita que a iniciativa privada é melhor a repor paralelepípedos e a programar semáforos), mas conceder que sejam necessárias licenças de construção é uma absoluta extravagância da sua parte. E a livre iniciativa? O empreendedorismo sem burocracias? Mais um pouco e Rui A. ainda acha que os mercados devem ser regulados.
* Já agora, num país onde se construiu demais e onde as empresas de construção estão falidas, «licenciar novos prédios» parece estupidez ou utopia — raio de lapso num blogue tão seguro da sua clarividência.
sábado, 28 de setembro de 2013
Sábado de reflexão
- Muitos acham ridícula a lei que impõe um dia de reflexão antes das eleições. Eu acho ridículo que a lei não imponha 15 dias de reflexão antes das eleições — incluindo o mesmo silêncio e pacatez dos sábados de véspera de urnas.
- Não me parece provado que se forme melhor consciência política na histeria do circo do que no silêncio dos cemitérios.
- Todos os dias deviam ser sábado de reflexão ou, em alternativa, inscrevia-se na Constituição o dever de os partidos com mais orçamento guardarem 1440 minutos diários de silêncio em memória da honra que lhes faleceu.
- Preventivamente, o dia depois das eleições devia ser também sábado de reflexão. E os 1459 restantes (1824, no caso das presidenciais).
- Na verdade, o sábado de reflexão devia começar às 00h00 de um belo e chuvoso dia de Outono (como o de hoje, por exemplo) e continuar em vigor enquanto a Terra tiver voltas para dar ao Sol.
- É certo que neste regime algumas pessoas ficariam de certo modo dispensadas de existir, mas, como eles (não) dizem, alguém tem de se sacrificar, não é?
sexta-feira, 13 de setembro de 2013
Os Idiotas — sessões de lançamento a sul
Hoje à noite (21h) é lançado em Castro Verde o livro Os Idiotas, do amigo e co-blogger Rui Ângelo Araújo, a leitura ideal para a época de patos bravos eleições autárquicas que vivemos.
Amanhã (18h30), é a vez de Faro.
Apareçam!
sábado, 31 de agosto de 2013
«As pegadas de dinossauro indicam o caminho do futuro»
Num episódio do Bartoon, a tira do Público, lê-se: «As pegadas de dinossauro indicam o caminho do futuro.» Nada mais verdadeiro e definidor.
Ainda que a famigerada lei de limitação de mandatos autárquicos tenha feito saltar fora um ou outro dinossauro menos motivado, a verdade é que sobraram demasiados, e dos mais aguerridos. Mas pior do que isso é sabermos que tantos dos novos candidatos às autarquias não têm nada de novo a acrescentar ao admirável mundo antigo, vão seguir exactamente as pegadas dos dinossauros que os antecederam. O país vive uma crise histórica. Há razões externas para a crise mas há igualmente uma culpa colectiva que não se devia alijar e que passa também pela forma como muitas autarquias são encaradas e geridas. Em tantos locais, demasiados locais, as eleições autárquicas continuam a ser meros combates pelo poder entre dois clãs ansiosos por distribuírem entre si os despojos da conquista. Chamam-lhe democracia, mas é um lapsus linguae. O jogo não remete para a Grécia, mas para o império Maya: os vencedores, se puderem, arrancam as cabeças aos derrotados.
De resto, o Governo não imita menos o passado nem é mais isento no que se refere a alimentar o clã laranja. Nisto, como em quase tudo, Passos Coelho faz exactamente o oposto do que disse. E mesmo assim consegue enganar os ingénuos Lombas desta vida, rapazolas de fortes convicções ideológicas que não conseguem reconhecer um charlatão ou um freteiro a um palmo do nariz se ele lhes sussurrar ao ouvido passagens mansas da cartilha. Para estes nerds doutrinários — como, ironicamente, para as claques partidárias que eles desprezam —, um cacique não é um cacique se for o nosso cacique ou falar com certa assiduidade das coisas que achamos certas.
domingo, 7 de julho de 2013
Em Setembro teremos Os Idiotas
(não, não são os de todos os dias — ou serão?)
Eis uma ideia refrescante para o Verão (para o fim do Verão, pronto): em Setembro sairá Os Idiotas, primeiro romance do meu companheiro de blogue Rui Ângelo Araújo, numa edição d’O Lado Esquerdo Editora.
Em ano (e mês) de eleições autárquicas, convido-vos, não a conhecerem o Saavedra que há em vós — esperemos que não! —, mas, provável e desgraçadamente, o Saavedra que há um pouco por todo o nosso Bồ Đào Nha.
Site do livro: www.osidiotas.pt
Página no Facebook: www.facebook.com/osidiotaslivro
terça-feira, 18 de junho de 2013
Um país às direitas
Certos comentadores de direita, apesar de quotidianamente afirmarem que este Governo é incompetente, de passarem o tempo a irritar-se com este Governo, de não hesitarem em chamar “socialistas” a ministros deste Governo, não cessam de o apoiar. E porquê? Porque na verdade o Governo expira o mesmo ar pesado desta direita mais ideológica e contamina com ele a atmosfera geral — e isso é a única coisa que importa. Não importa que o Governo não tenha mudado nada do que estava realmente mal em Portugal. Boys? Aumentaram. Favorecimentos? Mantiveram-se. Instituições e gestores incompetentes? Certamente aquelas não diminuíram ou diminuíram por acaso, apanhadas na avalanche demolidora, e poucos destes foram demitidos (sendo, aliás, logo compensados com outros de igual calibre mas da ideologia certa). Pelo caminho foi dispensada gente competente, mas que vota mal, e destruídas instituições que não envergonhavam o Estado.
Importa é que de dia para dia se abre o caminho à Besta de certa direita (ou ao Caos, logo veremos).
O que o Governo fez foi munir-se de bulldozers para derrubar todo o bosque onde supostamente estavam as árvores más — e nós sabemos como a direita thatcheriana adora bulldozers. Entrar simplesmente nos antros de incompetência e nepotismo e identificar os elementos podres, como faziam os regedores florestais, nem sequer passou pela cabeça destes bacharéis. Cria-se o estigma, prepara-se a opinião pública (e há uma quantidade incrível de tipos auto-iludidos com o seu suposto conhecimento do país prontos a segurar este tipo de bandeiras) e leva-se tudo à frente. Para fazer o que tem feito, o Governo não precisava de contratar assessores nem de encomendar estudos (e no entanto contratou e encomendou sem constrangimentos). Bastava-lhe deitar sortes, com dados ou outro instrumento do mesmo rigor e critério. O resultado não teria sido diferente. Haverá alguém no meio deste excitadiço circo neoliberal que acredite ter-se melhorado o que quer que fosse no que se refere a corrupção, oportunismo, nepotismo, má gestão e incompetência em geral? Que isso foi sequer preocupação do Governo? Se não abundassem respostas a estas perguntas, bastaria olhar para a forma como os partidos da maioria estão a lidar com as autárquicas — que decorrerão como se não houvesse crise e como se Portugal não tivesse nada a aprender com as últimas décadas. Vários dos mesmos comentadores de direita que enchem as bochechas de moral e ética contra o Estado estão no terreno a posicionar-se ou a posicionar os seus peões, as suas brigadas jotas e os seus dinossauros escleróticos para o grande banquete da cacicagem.
A única coisa que mudará em Portugal depois deste Governo será o número de desempregados e de instituições entaipadas.*
*E a posição relativa do Borda d´Água em relação ao Excel no ranking.
sábado, 8 de junho de 2013
segunda-feira, 13 de maio de 2013
Não acabem com a crise
Os meus domingos, sempre que possível dias de retiro, de devaneios bucólicos, são frequentemente assolados pela perplexidade. Não é apenas o ciclo da Natureza, o seu definhamento belo no Outono, ou o milagre biológico e estético da renovação primaveril. Surpreendem-me sempre o amarelo e o lilás de hectares de giestas e urzes floridas, e nunca fico imune a um bosque renovado de verde.
Mas a verdadeira perplexidade vem quando me encontro sozinho no meio de certa propriedade onde a beleza outonal ou primaveril dos bosques ocorre como num privativo jardim edénico. A verdadeira perplexidade e a verdadeira alegria.
Em tempos usada para lazer da classe alta, esta propriedade, privada mas de (potencial) uso público, foi abandonada devido à mudança dos hábitos de ócio, à substituição dos destinos turísticos. Na minha infância e adolescência, o sítio era usado por alguns autóctones para piqueniques, para tardes de lazer. Hoje, salvo raras e fugazes visitas de um ou outro nostálgico que vem num relance conferir o estado das coisas, não se vê por ali vivalma, e eu e os meus livros agradecemos.
Faz-lhe uma tangente um rio, com a sua ponte românica e os seus moinhos em ruínas, invadidos pela vegetação. Tem no perímetro e nas imediações pinhais e carvalhais. Dentro de muros há uma grande variedade de árvores que para minha vergonha não sei nomear. Tem diferentes zonas de sombra (densa ou apenas de sol coado) e prados onde estender largamente o corpo ao sol. Tem memórias em velhas paredes e telhados abaulados. Não tem gente. Porque, dir-se-ia, este género de bucolismo já não faz a alegria das pessoas.
Enquanto eu por ali sonho com uma herança que me permita tomar posse daquele território e proteger o paraíso, outros em gabinetes municipais sonham com revitalizar a propriedade. Um dos poucos visitantes com quem me cruzo um dia, informa-me que a Câmara local ficou com a concessão do sítio e pretende resgatá-lo para uso turístico, construir um restaurante, coisas dessas. Como que a adivinhar os meus pensamentos (os meus receios, o meu justificado preconceito em relação aos poderes municipais), a pessoa informa-me também que o primeiro passo daquela “revitalização”, segundo fonte oficiosa, poderá ser o abate de pinheiros. Até já estarão marcados. Despeço-me com um nó na garganta a fingir deambulação sem norte, mas com o pânico instalado de ver com os meus olhos as famigeradas marcações. Não as vi, mas não fiquei descansado. A ideia, infelizmente, não é absurda.
Obrigo-me agora portanto a adicionar ao meu sonho de herdeiro um que prolongue a crise, que inclua o fim do QREN, o fim das ajudas comunitárias a projectos de revitalização. Um sobre bancarrotas municipais que durem até uma geração mais verde tomar o poder. (Sim, bem sei que faria melhor em apostar apenas na quimérica herança ou no desconchavar europeu.)