domingo, 22 de novembro de 2015

Parem de divulgar mentiras sobre o Islão!

Nos tempos conturbados em que vivemos, com muita histeria, muito medo, muita ignorância e muito maquiavelismo, as redes sociais pululam de informação falsa e enganosa.
O fim do Verão e o Outono deste ano foram particularmente férteis em notícias falsas que procuram denegrir os refugiados sírios: com 5% de Photoshop, 50% de puras mentiras e 0% de contexto, eis como manifestações violentas de muçulmanos radicais alemães em 2011 são apresentadas como manifestações pró-Daesh de refugiados sírios na Alemanha em 2015 ou como um ex-combatente anti-Daesh refugiado na Europa foi apresentado como um combatente do Daesh infiltrado na Europa. E estes são só dois exemplos, de entre dezenas possíveis. (Eu mesmo ilustrei a facilidade com que se poderia “transformar” um heróico voluntário português que lutou ao lados dos Curdos do YPG num membro da horda assassina do pseudo-Califa.)

Mas, nem só de desinformação islamófoba, anti-refugiados e anti-muçulmanos, se faz o nosso tempo. Tão ou mais frequente é a desinformação islamófila. E se aquela deve muito à histeria e ao medo, esta deve não menos a uma certa boa-vontadezinha “flower power” ou a um wishful thinking de Padre Américo do like-and-share. E ambas — desinformação islamófoba e islamófila — são alimentadas pela ignorância de muitos e o maquiavelismo de alguns (porque nem todos podem alegar desconhecimento).

Talvez o exemplo mais claro desta desinformação islamófila seja a tentativa desesperada de apresentar o Islão como uma «religião de paz», quando, como deveria ser notório, o Islão foi, logo desde o seu fundador, uma religião violenta: foi o Islão que inventou o conceito de «Guerra Santa»; as Cruzadas, que os muçulmanos não se cansam de apresentar como raiz de todo o seu ressentimento, foram simplesmente o plágio tardio com que os cristãos responderam.

O expoente máximo desse travestismo pacifista é a suposta citação de um famoso versículo corânico, o 32.º da 5.ª Sura:

Se alguém matar uma pessoa, é como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvar uma vida, é como se ele salvasse toda a humanidade.

Digo «suposta citação», porque uma versão um pouco mais honesta seria:

[...] se alguém matar uma pessoa [...] é como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvar uma vida, é como se ele salvasse toda a humanidade. [...]

Notaram a diferença?
Três reticências, apenas — mas, parafraseando Arquimedes, dêem-me reticências suficientes e ponho Hitler a elogiar os Judeus.

Porque a verdade é que o versículo é sempre “citado” com grandes — e importantíssimas — omissões. Os apologistas islâmicos queixam-se frequentemente de que as passagens violentas do Corão (esgrimidas pelos seus opositores) são citadas removendo o contexto e deturpando, assim, a mensagem. De facto, a apologia da violência está frequentemente lá, sem ou com contexto; já o pacifismo é que só se consegue fabricar à custa de muito corta-e-cose.

Invocar o versículo 32 da Sura 5 para demonstrar que o Islão é uma religião de paz (ou «a religião da paz», como dizem alguns muçulmanos mais enfáticos) é o mesmo que ilustrar o génio literário de José Saramago (e o seu pacifismo, o seu patriotismo e a sua arte poética) com “citações” como «amai-vos uns aos outros», «As armas e os barões assinalados» ou «o poeta é um fingidor».
José Saramago escreveu tais coisas? Sim: estão, respectivamente, nas páginas 43, 68 e 114 de O Ano da Morte de Ricardo Reis, edição de 1995. A questão, claro, é que, apesar de constarem num livro de Saramago, todos (espero) sabemos que ele não é o autor das passagens em causa.

Comecemos por desmontar a tese do suposto pacifismo do versículo corânico.

Sendo menos pródigo em reticências, uma citação mais completa seria:

[...] se alguém matar uma pessoa — que não seja em retaliação de homicídio, ou por espalhar a corrupção pela terra — é como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvar uma vida, é como se ele salvasse toda a humanidade. [...]

Esfumou-se o pacifismo: não só o preceito prevê a possibilidade de se matar alguém como sanção pelo crime de homicídio, como a aplicação da pena de morte é alargada ao convenientemente vago crime de «espalhar a corrupção pela terra». Em que consiste tal ofensa capital? Dependendo do nosso imã, do nosso ciber-guru, do nosso autoproclamado Califa ou do nosso ressentimento doentio, pode ser qualquer coisa — desde desrespeitar o Profeta, abandonar o Islão ou professar outra religião ou nenhuma, passando por cometer adultério ou ser vítima de violação, até jantar no Le Petit Cambodge, assistir a um concerto no Bataclan, passar em frente ao Estádio de França, ir ao mercado em Beirute, dormir num hotel em Bamako: viver, existir.

Mas a contrafacção de um pacifismo corânico que não está lá vai mais longe: não só o preceito não é tão pacífico como no-lo querem vender, como nem sequer é certo que, segundo o Corão, ele se aplique aos muçulmanos.

Porque uma citação ainda mais completa e correcta do versículo seria:

Por causa disso, ordenei aos Filhos de Israel que se alguém matasse uma pessoa — que não fosse em retaliação de homicídio, ou por espalhar a corrupção pela terra — seria como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvasse uma vida, seria como se ele salvasse toda a humanidade. [...]

Exactamente: este preceito teria sido ordenado, no passado, não aos muçulmanos (que no Corão são sempre designados «Crentes»), mas aos «Filhos de Israel», isto é aos Judeus.

De facto, a citação supostamente pacifista não é um original do Corão, embora seja citada actualmente como tal: é uma paráfrase de uma passagem do Talmude (concretamente, do Livro do Sinédrio, 37a), colectânea de comentários rabínicos da tradição judaica. (E o autor do Corão enganou-se: a frase consta do Talmude, não da Tora — a Lei de Moisés — ou sequer de outra parte da Bíblia judaica, pelo que é errado dizer que tal foi ordenado por Deus.)

Pior: a subtil diferença nos tempos verbais («matasse», «seria», «salvasse», e não «matar», «é», «salvar») reforça ainda mais a ideia de que, não só o preceito teria sido transmitido aos Judeus (embora eles nem sempre o cumprissem, falha referida no resto do versículo, que não transcrevi), como, agora que Maomé veio pôr os pontos nos is para os «Crentes» (muçulmanos), tal preceito foi ultrapassado, não se aplicando a eles.

Mas então, que preceito se aplica aos muçulmanos, aos verdadeiros crentes? Não é preciso procurar longe, noutras partes do Corão, caindo uma vez mais no problema do contexto: o versículo seguinte (5:33) dá a resposta imediata:

De facto, a pena para aqueles que lutam contra Alá e o Seu Profeta e tudo fazem para espalhar a corrupção pela terra é não outra do que eles serem abatidos [como o gado, isto é, degolados] ou crucificados, ou as suas mãos e pés serem cortados de lados opostos, ou eles serem expulsos da terra. Tal é a sua desgraça neste mundo; e no outro mundo espera-os um grande tormento.

Suscita-vos algumas imagens recentes?...

Que concluir, então, de tudo isto?

Que, se a ignorância grassa no vulgo, não é crível que tal desconhecimento da totalidade do texto e do seu contexto se verifique nos vários clérigos muçulmanos que, ofendidos na sua dignidade (uma especialidade muçulmana), sacam deste “trunfo” em defesa da sua religião.
Claramente, o que lhes falta em humor e em “poder de encaixe” sobra-lhes em sofisticada ironia: o expoente máximo do suposto «pacifismo islâmico» é um grande saco cheio de vento — a citação incompleta da paráfrase desinformada de um texto judaico. Allahu asghar.

sábado, 21 de novembro de 2015

Por que assumi as cores da França,
mas não as do Líbano ou do Mali

Por que razão é que, na própria noite dos ataques de Paris, espontaneamente, alterei a minha imagem de perfil no Facebook para as cores e o símbolo da França (que ainda mantenho e manterei por tempo indeterminado), mas não tive igual gesto relativamente a, por exemplo, o atentado bombista em Beirute ou a mortífera toma de reféns num hotel em Bamako?

Racismo, preconceito — é do que me tentam convencer algumas publicações partilhadas por amigos e por desconhecidos. Há, parece, mortos de primeira, de segunda e de terceira; há até um «mapa mundi trágico» — dizem-me, apontando um dedo acusador, tentando impor-me um sentimento de culpa ou de vergonha.

Se essa é a intenção, falharam redondamente. Porque a verdade é que um mapa mundi trágico — simplesmente, ao contrário do que os autores daquele pensam, esse mapa mundi é pessoal, não é global: cada pessoa tem o seu próprio mapa mundi trágico (e no meu a Nova Zelândia está a vermelho).

Começo por deixar claro que, ao assumir as cores da França, mais do que solidarizar-me com os mortos e as suas famílias, pretendo solidarizar-me com a França.
Porque, se o atentado na França é uma tragédia de dimensão humana (morreu gente, e não foi pouca), é acima de tudo uma tragédia civilizacional: foi um ataque à ideia de França, ao modo de ser e estar na vida do povo francês (e, por extensão, do Ocidente), foi um ataque a uma certa ideia de sociedade aberta, liberal e laica.
Já um ataque ao Líbano ou ao Mali, o que significa para mim, em termos identitários? Nada, admitamo-lo sem medo. Vistos do ponto onde me situo (e sem esquecer as implicações geopolíticas), tais ataques são quase exclusivamente tragédias humanas. E essas — na França, no Líbano ou no Mali —, tendo vitimado (tanto quanto sei) pessoas que desconheço, são-me sempre algo abstractas, não cravam tão fundo as unhas na pele do sentimento.

Dito de outra maneira, a razão pela qual faço “luto” pelos atentados na França, mas não pelos no Líbano ou no Mali, é a mesma pela qual temos direito a licença por luto se nos morrer um irmão emigrado há anos na Austrália, mas não temos igual direito quando morre o vizinho do quinto esquerdo. Ou a razão pela qual vamos ao funeral do nosso ex-professor primário, mas não ao do ex-professor da escola de (digamos) Trigaches, terra cujo quase nada que sabemos se deve à Wikipédia. O que não quer dizer que o ex-professor de Trigaches não mereça um belo funeral, com grande assistência e sentidas manifestações de pesar — da parte de quem o conheceu e dele se sentia próximo. Idem, mutatis mutandis, para o Líbano e o Mali.

Países há muitos, uns mais próximos geograficamente, outros mais distantes — e, mais importante ainda, uns mais próximos culturalmente, sociologicamente, outros mais distantes (tão distantes, alguns, como se de outra galáxia se tratasse).
Há países que nos são irmãos, há outros que são apenas os vizinhos do quinto esquerdo, e há os que são de Trigaches, professores ou não.
Fingir que isso não é assim, assumir as cores do Líbano ou do Mali só para aparentar uma identificação que não se sente, que não se pode realmente sentir, é hipocrisia. Na melhor das hipóteses, é reflexo sem valor, como o da beata que vai aos velórios de desconhecidos por desfastio.

sábado, 7 de novembro de 2015

Malcolm Gladwell: «Párias, Símbolos e Pioneiros» (palestra)

Malcolm Gladwell, colaborador permanente da revista The New Yorker, deu em 2013 uma interessantíssima (e longa...) palestra sobre uma das formas mais surpreendentes como as classes dominantes garantem a manutenção da sua condição de privilégio.

Gladwell centrou-se particularmente na discriminação das mulheres — na política, na arte, na vida em sociedade em geral —, discriminação que por vezes se mantém, mesmo quando aparentemente a porta se abriu para elas...
(Outro tema importante é o do anti-semitismo.)

O argumento é ilustrado com dois exemplos paradigmáticos: o da pintora inglesa Elizabeth Thompson (1846–1933) e da ex-primeira-ministra australiana (2010–2013), Julia Gillard.

Esta palestra fascinou-me desde que a vi pela primeira vez. Há 2 meses ganhei coragem (e aprendi o procedimento técnico) para traduzi-la e legendá-la.

Uma outra palestra, do mesmo autor e do mesmo ano, centra-se na história de uma das mais importantes sufragistas americanas, Alva Vanderbilt (também conhecida como Alva Belmont) e das razões que levaram esta insuspeita mulher — milionária e privilegiada — a lutar contra o sistema estabelecido.

Infelizmente, quando comecei o longo processo de tradução e legendagem (levou-me 50 dias...), não sabia que havia quase a estrear um filme sobre o movimento sufragista.
Por isso, escolhi começar pela palestra sobre a pintora. Talvez daqui a 50 dias tenha o outro, sobre a sufragista, pronto...

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

PAF: Violência doméstica

A noite foi passada — por jornalistas, comentadores e políticos no activo — a avançar teorias sobre a razão de o eleitorado ter mantido a coligação PSD/CDS como maior força política (ainda que fragilizada face a 2011), mesmo após tanta austeridade e tanta queixa popular por causa da austeridade.

Confesso: de facto quase não assisti à noite eleitoral, pelo que quando digo que a noite foi passada nisto, estou em verdade a lançar um palpite. Mais: avanço mesmo que, de entre todas as teorias apresentadas, nenhuma se aproximou realmente da verdade. (Que é, claro, a que de seguida aqui apresento.)

Tantos eleitores renovaram o voto de confiança na coligação que nos governou nos últimos quatro anos pela mesma razão que tanta mulher vítima de violência doméstica volta para a casa onde ainda vive o marido que as violentou.

Como “Zé Povinho” não é nome que caia bem nessa personificação feminina do eleitorado português, chamemos-lhe “Maria Tuga”.

Dá quase para vê-la, mas não consigo dizer o que veste ou que traços físicos tem, pois tudo em que reparo é no olho negro (fruto de uma queda das escadas...) que a custo a maquilhagem disfarça.

E dá perfeitamente para ouvi-la, enquanto fala com a vizinha:

«É, voltei para o meu homem, que é que se havia de fazer?... Sim, ele é um pouco bruto, insultou-me uma e outra vez, até à frente dos miúdos, bateu-me vezes sem conta — mas a verdade é que eu estava a pedi-las... quase sempre, sim. Pus-me a jeito. No fundo, no fundo, lá naquele modo abrutalhado dele, ele ama-me. Tudo o que faz é para o meu bem. Bate-me, sim, bate-me, já o admiti. Mas depois é sempre super-carinhoso. Já sabe como é: o melhor sexo é o das reconciliações...»

terça-feira, 29 de setembro de 2015

A Zona de Interesse


A Zona de Interesse, de Martin Amis, é um livro belíssimo. É talvez um dos melhores que li de Amis e no entanto é também aquele onde o escritor se afasta mais do seu estilo pessoal, onde abdica mais de ter um estilo. Isto dito, não se consegue esquecer que é uma obra de arte feita a partir do pior dos episódios da história da humanidade — e isso, que tem em si algo de Amis way, não representa qualquer mal. Alguns editores recusaram-se a publicar o livro. Ou são patetas ou não o leram. Ou ambas as condições são verdadeiras. Em momento nenhum do romance o leitor consegue ou pode sentir-se autorizado a esquecer o que foi o Holocausto, a relativizá-lo, banalizá-lo, achá-lo coisa de um passado pitoresco a preto e branco como as histórias de piratas, onde vida e morte, crimes e violações são décor. Não. Sai-se do livro como se sai dos livros de História: horrorizado com a Alemanha nazi. Sim, num momento ou noutro inquietamo-nos por estarmos a ter prazer estético com uma história de amor num campo de concentração, uma história de amor que se passa na zona dos carcereiros e dos carrascos. Mas isso não faz de nós (nem do autor) aberrações morais. Apenas mostra que temos emoções e predisposição para a beleza — e que tê-las não chega para fazer de nós boas pessoas, estão ali os nazis para o evidenciar. (Na verdade, talvez o livro até tenha outras sugestões, mas este aspecto não o posso explorar sem cair em revelações sobre o enredo.)
Há o risco de leitores menos familiarizados com a História ficarem a achar que as atrocidades nazis não passam de ficção, cenário para romances e filmes, no máximo uns contratempos aborrecidos para personagens secundárias, contribuindo assim o livro para banalizar o Mal e relativizar os crimes nazis? Não. Primeiro porque Hollywood já se encarregou disso há muito tempo. Segundo porque leitores menos familiarizados com a História dificilmente lerão Martin Amis. Terceiro porque esses leitores, na eventualidade de lerem o livro, teriam de ser também insensíveis, incapazes de empatia e sobretudo pouco familiarizados com a inteligência (pelo menos pouco treinados nela). Há leitores assim, que devamos proteger do terrível Amis? Há. Chamam-se geralmente adolescentes (mesmo que alguns tenham passado a idade púbere) e são já várias as gerações deles que têm vindo a ser poupadas a conhecer a História. Há leitores assim, mas não os devemos proteger de Amis. Devemos protegê-los das televisões, dos Ministérios da Educação, da robotização neoliberal em curso — e dar-lhes muitos, muitos livros de História para ler. E depois dar-lhes também o livro de Amis para ler.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

O Estado Islâmico já conquistou o Vaticano!

Papa cobre o rosto

Afinal, os manipuladores de informação que por estes dias postam imagens falsas ou descontextualizadas para nos convencerem de que o Estado Islâmico está a enviar hordas de pseudo-refugiados para a Europa para nos conquistarem têm razão!

Pior: os infiltrados não só já estão cá, como já alcançaram o seu objectivo: conquistaram a Europa, incluindo o Vaticano!

Assim que teve confirmação da conquista, Abu Bakr al-Baghdadi emitiu um édito religioso (fatwa) obrigando todas as mulheres europeias a cobrirem o rosto, à boa maneira islâmica.
Devido a um erro de tradução do árabe pseudo-clássico usado pelo auto-proclamado califa, a ordem foi entendida como dirigida «a todas as pessoas* que usam saias».

Como a imagem anexa inequivocamente documenta, o ex-Papa Francisco foi lesto a obedecer ao novo senhor da Europa. Allahu Akbar e tal!

* A classificação das mulheres como «pessoas» foi apontada por alguns apologistas como sinal do elevado estatuto de que elas gozam no Islão.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Ignorância e Preconceito

Já pensaram que se, por ignorância ou intencionalmente, eu tivesse escrito «ISIS» em vez de «YPG»...

... eu poderia ter facilmente acusado este voluntário português, que lutou contra o Estado Islâmico, de ser um jihadista sírio?

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Fugir à pergunta
(quem responde ou quem pergunta?)

Uma amiga comentou recentemente um vídeo em que uma conferencista americana da Heritage Foundation (um “think tank” conservador ligado ao Partido Republicano) explica, em termos fortes, por que razão de nada vale invocar a «maioria pacífica» de muçulmanos, quando o que importa é que a imensa maioria dessa maioria se abstém de confrontar — sequer no plano ideológico — a minoria (não tão pequena assim) de radicais, muitos dos quais violentos.

O comentário da minha amiga (e de outros) ia no sentido da «força» e na «falta que faz» esse tipo de resposta. Até que alguém comentou: «Só faltou mesmo RESPONDER À QUESTÃO.»

A questão (de uma muçulmana americana na plateia) era, para quem não viu o vídeo e para quem — como, confesso, eu — se distraiu com a resposta: «Como lutamos uma guerra ideológica com armas? Como poderemos algum dia terminar essa guerra?»

É verdade que a “resposta” da conferencista não respondeu à pergunta. Mas quem abriu a porta a essa mudança de assunto e à não-resposta foi a própria autora da pergunta: ela é que fez um preâmbulo à «pergunta simples», falando nos 1,8 mil milhões de muçulmanos (número exagerado...), da má imagem que eles e o Islão têm, e da falta de representatividade dos muçulmanos na sala. Após desviar assim as atenções da sua «pergunta simples», quem se pode admirar que a intervenção subsequente não seja uma resposta ao que foi perguntado, mas uma réplica àquele preâmbulo?

Fazendo um paralelo, dizer que a pergunta de Saba Ahmed não foi respondida é o mesmo que, perante a seguinte intervenção de um alemão em 1938:

«Como sabe, o nosso amado Führer instituiu recentemente leis com vista a expurgar do Sangue Alemão toda a infecção judaizante. Qual o papel do recém-criado Volkswagen no renascimento do Povo Alemão?»

alguém protestar porque a resposta incidiu sobre a inaceitabilidade das Leis Raciais de Nuremberga e não sobre os méritos ou deméritos do “Carro do Povo”...

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Não brinquem com números, respeitem os deputados!
(Pensando bem, não respeitem — se não merecem.
Mas respeitem os números, esses sim, respeitem sempre!)

No Facebook, um amigo partilhou ontem uma imagem que, segundo quem a postou originalmente, «Não precisa de qualquer tipo de comentário. Está tudo lá escrito.».

Portugal: 230 deputados; Austrália: 150 deputados

Pois, simplesmente não está, de facto, tudo escrito: o autor da imagem “esqueceu” alguma informação, nomeada e convenientemente, aquela que destrói em absoluto a “teoria”, expondo a falácia.

Esqueceu-se, por exemplo, de dizer que o sistema parlamentar australiano comporta duas câmaras: a Câmara Baixa (Casa dos Representantes), com os tais 150 membros, e a Câmara Alta (Senado), com 76 membros. Isto perfaz um Parlamento nacional com 226 membros, quase o mesmo que Portugal (sistema unicameral).

Mas ainda há mais: a Austrália é um estado federal, dividido em 6 estados e 2 territórios. Cada um desses estados/territórios tem o seu próprio Parlamento, que na maior parte dos casos tem duas câmaras. Vejamos:

  • Austrália do Sul: 47 membros da Câmara Baixa (CB) + 22 membros da Câmara Alta (CA) = 69
  • Austrália Ocidental: 59 (CB) + 36 (CA) = 95
  • Nova Gales do Sul: 93 (CB) + 42 (CA) = 135
  • Queensland: 89 membros (Câmara única)
  • Tasmânia: 25 (CB) + 15 (CA) = 40
  • Vitória: 88 (CB) + 40 (CA) = 128
  • Território da Capital: 17 membros (Câmara única)
  • Território do Norte: 25 membros (Câmara única)

Isto quer dizer que o total de parlamentares na Austrália, entre nacionais e “regionais”, é de 824.

Quanto a Portugal, para além dos 230 deputados nacionais, tem 57 deputados regionais nos Açores e 47 deputados regionais na Madeira. Isto perfaz 334 parlamentares.

Ou seja, o número de parlamentares australianos é quase 2,5 vezes o de Portugal — embora “só” tenha o dobro da população.
(Como diriam os famosos cartazes: não brinquem com os números.)

O problema de Portugal não está no excesso de deputados — mas na sua qualidade. E, já agora, na dos eleitores também.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Bastardia

Kettle, uma velha snob da saga Melrose, de Edward St Aubyn, é o tipo de pessoa que encara como um dever a sua lealdade à má-disposição. Eu, espécie de morgado por bastardia antiga, sinto o mesmo galhardo e inelutável apelo. Porém falho em atendê-lo plenamente. Não por falta de intimidade com o mau-humor — mas porque ao fim e ao cabo empatizo com as pessoas e sinto remorsos quando o meu cenho franzido as perturba. Não tenho a pureza de um verdadeiro aristocrata, poor me.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Einstein, o Bem e o Mal

Vi recentemente um vídeo em que uma criança “ensina” ao seu professor que, tal como não existe a Escuridão (que é só a ausência de Luz) ou o Frio (ausência de Calor), também não existe o Mal, que seria apenas a ausência de Bem. Donde, concluía a criança, contradizendo o professor, Deus não criou o Mal.
A acreditar no vídeo — e os múltiplos apócrifos que circulam pela Internet aconselham a manter um pé atrás —, a criança seria Albert Einstein.

Einstein estava errado. De resto, fora da sua área de especialidade, a opinião de Einstein (ou de qualquer cientista) não goza de especial autoridade.
A verdade é que não há equiparação possível entre Bem/Mal e Luz/Escuridão.

A Escuridão não existe enquanto coisa, de facto; é apenas a ausência de Luz. Mas o Mal existe enquanto coisa (abstracta); não é apenas a ausência de Bem.
Como é que sabemos?
Conseguimos identificar (e até criar) fontes de Luz, isto é, objectos que emitem, espalham e propagam a Luz. Se eliminarmos as fontes de Luz, sobrevém necessariamente a Escuridão. Mas não existem objectos que emitam, espalhem e propaguem a Escuridão. A única forma de “criar” Escuridão é anular todas as fontes de Luz.

O mesmo não se passa com a dualidade Bem/Mal — que, desde logo, é uma falsa dualidade: existe ainda um terceiro termo, Neutro.
Limitando-nos às acções humanas, todos reconhecemos que há quem seja uma “fonte de Bem”: pessoas que ajudam os outros e, em geral, tornam melhor a vida em sociedade. Escolherei, por razões de simplicidade, um exemplo bem actual: definirei como “fonte de Bem” uma pessoa que arrisque a sua vida a esconder alguém que, de outra forma, seria capturado e degolado pelos terroristas do “Estado Islâmico”.
Ora, por muito moralmente errado que seja não fazer nada perante uma atrocidade, existe uma enorme diferença entre ficar passivo (olhar para o outro lado, fingir que não se vê, tentar passar despercebido) e participar activamente nas atrocidades e injustiças. Assim, o cidadão que nada faz e segue a sua vida não pode ser metido no mesmo saco do sociopata que degola “infiéis” ou do líder que lhe dá ordem para tal.
Por outro lado, enquanto anular todas as fontes de Luz resulta inevitavelmente em Escuridão, anular todos os actos de altruísmo não resulta necessariamente em atrocidades. Voltando ao nosso exemplo, não esconder “infiéis” não resulta inevitavelmente no degolamento destes: os “infiéis” não têm uma tendência natural para aparecerem degolados, estilo combustão espontânea; se os deixarmos em paz, em geral mantêm a cabeça agarrada aos ombros. Aqueles que acabam degolados tiveram que se cruzar com um agente sem o qual o degolamento não ocorreria. Se definirmos a degola de pessoas como um Mal, então o agente que a praticou é uma “fonte de Mal”.

Quer isto dizer que existem tanto “fontes de Bem” como “fontes de Mal”. Donde se conclui que existem, enquanto conceitos abstractos (concretizáveis em acções), tanto o Bem com o Mal.

Einstein estava errado. Mas, claro, Einstein tinha desculpa: não só ele não era filósofo como, naquela idade, sendo criança, nem sequer era físico, pelo que não compreendia bem a diferença entre a Física e a Moral.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Patranhas à Moda do Porto

Vejo no Público online uma notícia sobre os supostos 600 anos das Tripas à Moda do Porto e penso: apesar de não serem publicações científicas, os jornais deviam fazer um esforçozinho de não se limitarem a propagar histórias da carochinha. A tradição de que as Tripas à Moda do Porto estão ligadas à conquista de Ceuta não passa de um mito.

O formato (não a temática concreta) do mito das tripas é típico, encontrando-se em muitos pontos do país: para enobrecer uma tradição local — seja uma romaria, uma procissão ou, no caso do Porto, uma receita culinária —, a tradição ou algum “etnólogo” militante inventa uma patranha patriótica, ou, pelo menos, uma história que temporalmente coincida com um momento importante (positiva ou negativamente) da história de Portugal: Batalha de Ourique, Aljubarrota, Ceuta, chegada à Índia, descoberta do Brasil, domínio filipino, Restauração, Terramoto de 1755, Invasões Francesas... Desta forma, mesmo que por mera coincidência temporal, a humilde tradição local é dignificada: já não é relevante apenas para as gentes da aldeia (ou, neste caso, da cidade do Porto) — é, de alguma forma (e, no caso das tripas, de uma forma clara), relevante para todo o país.

A verdade sobre a origem das Tripas à Moda do Porto é muito mais simples — e muito mais humilde. É também bastante clara.

Durante séculos, as únicas pessoas que comiam regularmente carne eram as classes abastadas: nobres, média e alta burguesia, algum clero. O resto da população era, por ausência de alternativas, basicamente vegetariana. Mesmo os servos que criavam os animais domésticos não os comiam: a carne era para os seus senhores.
(É por isso que, em inglês, palavras como “cow”, “calf”, “sheep”, “pig” e “deer” — designando os animais vivos — são de origem anglo-saxónica, enquanto palavras como “beef”, “veal”, “mutton”, “pork” e “venison” — designando a carne desses animais — são de origem francesa: após a conquista normanda, só os senhores feudais normandos — que falavam francês — comiam carne; o servo saxão que tratava dos porcos e guardava as vacas nunca punha o dente num desses animais depois de morto.)

No caso do Porto, a origem culinária das tripas não é menos clara: os criados dos ricos, tal como o resto do povo, não incluíam carne na sua dieta. Até que alguns desses criados pousaram os olhos num subproduto da preparação das refeições dos patrões: as tripas, que iam para o lixo. E eis como, com um pouco de imaginação e tempero, o que estava destinado a ser o desperdício das classes abastadas se tornou o banquete das classes despojadas que para aqueles trabalhavam.

Com o tempo, a fama das tripas foi-se espalhando, chegando inclusivamente à mesa dos ricos. Tal fama, que elevava o prato a símbolo de toda uma cidade, requeria uma origem mais nobre: entra em cena o costumeiro fabricante de patranhas patrióticas (provavelmente apenas nos séculos XVIII ou XIX). Rebusca nos compêndios de História um momento elevado na cronologia nacional (quase de certeza, muito anterior à receita original das tripas) e, como num passe de mágica, voilà! Sai uma historieta edificante, digna de orgulho, pronta a engolir — mais facilmente do que as próprias tripas.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Hugo Boss*

Uma das coisas positivas de se ser teso é não ter no guarda-fatos nada que nos possa perturbar quando descobrimos que Hugo Boss, membro do partido Nacional-Socialista alemão, vulgo Nazi, confeccionou os uniformes das SS.
Não acho que os erros dos antecessores devam estigmatizar ou condenar os herdeiros (familiares ou empresariais) mais do que as leis da sucessão (e das compensações de guerra, quando aplicáveis) devam prever, e será difícil encontrar uma marca alemã que não tenha trabalhado para os nazis. Além disso, temos o também perturbador currículo asiático da Zara e das outras marcas low cost. Tudo isso merece ponderação, pois claro. Mas ainda assim, alivia, francamente, seguir uma linha de vestuário, pouco fashion que seja, que não teve Himmler como cliente emérito.


*Depois de ler um post de Rui Bebiano no Facebook.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Mil poetas

A Chiado Editora tem uma Antologia de Poesia Contemporânea que reúne cerca de mil autores. Sim, apenas mil. Julgávamos nós que Portugal era um país de poetas e a Chiado, propondo-se antologiar a raça, não encontra mais de mil. Que ineficiência. Que preguiça. Que falta de respeito pela veia pátria. 
Há quem defenda a editora dizendo que o magro número de antologiados se deve ao apertado crivo do antologiador, receoso de deixar a impressão de que ali entrava qualquer transeunte capaz de assinar o próprio nome, mesmo que com erros ortográficos. Receio absurdo, bem se vê, que na verdade conduziu à publicação de uma obra incompleta, pouco representativa da vivacidade lírica nacional.
É certo que o excesso de escrúpulo teve as suas vantagens: não há na antologia senão Homeros. O escasso número de autores assegura ao leitor o mesmo conforto que teve o organizador: em colectânea peneirada com tal minúcia é virtualmente impossível encontrar um poema mau.
A opção elitista da editora tem naturalmente desvantagens comerciais (o que dá uma certa nobreza abnegada à empresa, é de reconhecer). Sabendo-se que os leitores portugueses, na hora de comprar, são movidos sobretudo pela cumplicidade estética, pela afectividade intelectual e pelos laços literários que mantêm com os autores, está bom de ver que se venderão uns meros seis ou sete milhares de exemplares da antologia quando se poderiam vender pelo menos sessenta mil, se se multiplicasse por dez o número de antologiados. Reflectindo, aliás, mais verosimilmente a contemporânea arcádia lusitana. Dez mil poetas lusos* é o mínimo que uma antologia que se preze deve às letras portuguesas.

* De longas barbas e de braço dado a cantar eurovisivamente, à grega, “Good bye, my love, good bye”.

P.S.: Entre o Sono e o Sonho é o título da antologia da Chiado Editora. Entre o sono dos leitores e o sonho delirante dos autores, presumo.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Sexo tântrico

Ao fim de quase quatro anos a foder-nos, o Governo finalmente pede ao povo português: «VEM».

Quatro anos, Sting, quatro anos! Toma e embrulha.

segunda-feira, 9 de março de 2015

100 Homens, 100 Preconceitos

A campanha "100 Homens, Sem Preconceitos – Um Passo pela Igualdade" (que fotografou cem homens em saltos altos) é decerto bem-intencionada, mas é simultaneamente estúpida, porque assenta num estereótipo — ou seja, num preconceito, dos tais que tenciona combater.
Imaginem que a Máxima, a revista promotora da campanha, convidava cem homens a experimentarem enfaixar as suas extremidades inferiores como durante dez séculos muitas chinesas tiveram de fazer em nome da “beleza”. Com “pés de lótus”, como com saltos altos, a revista haveria de registar o mesmo género imbecil de comentários masculinos — «isto é muito difícil!» ou «agora damos ainda mais valor às mulheres!» — e as mulheres estariam igualmente mal defendidas. E mal definidas.
A maior dificuldade das mulheres não é caminhar em 'stilettos', claro; já insistir em definir a feminilidade pela forma aguda do tamanco não facilita certamente, quotidianamente, a vida a muitas delas.

1. O zelota

Os que minimizam a importância dos actos de Passos Coelho fogem (deliberadamente ou não; cândida ou perversamente) ao essencial: falamos do maior moralista que governou Portugal depois de Salazar e Marcello e, mais importante, que governou e decidiu sobre a vida dos concidadãos com base nessa moralidade instrumentalizada. A desfaçatez e a hipocrisia não são, neste caso, pecadilhos que apenas mostram que Passos, tendo errado, é humano. Pelo contrário: dada a centralidade da moral no seu discurso, mostram que PPC é um pastor que prega mas não acredita no que prega. Repete a ladainha apenas para perpetuar a instituição. Está portanto ao serviço dos interesses da instituição e não dos da comunidade. E não é difícil perceber o que é a instituição para Passos Coelho.

2. O cordeiro de Deus

É tão absolutamente idiota desculpar Passos com os erros maiores de Sócrates que chega a dar um novo sentido à Páscoa que se aproxima: o ex-PM foi preso para expiar os pecados do mundo, particularmente os de Passos Coelho? Depois de crucificado o messias da Covilhã (que, de resto, acreditava sê-lo, como todos os mitómanos), basta ao Coelho pascal a confissão e a compunção para que uma quantidade assustadora de pensadores o mande em paz com duas ou três inofensivas ave-marias por penitência.

3. O ridículo

Comparados os casos, ter Passos como PM equivale a ter Relvas como Ministro da Educação. Ridículo, não seria?

terça-feira, 3 de março de 2015

Passos Coelho e o problema do literalismo reducionista

A revelação de que Pedro Passos Coelho deveu cinco anos de contribuições à Segurança Social, e que só quando o Público levantou a lebre é que o primeiro-ministro pagou parte (!) dessa dívida, gerou dois tipos de reacções: a dos membros do Governo e estruturas do PSD, lestos a encontrar culpas alhures, e a das pessoas com algum sentido de verdade.
As reacções governamentais e afins não comentarei para lá de dizer que, está visto, não há limites à falta de vergonha. (Eu é que ainda tinha ilusões neste particular.) Quanto às restantes, venho aqui pôr-lhes um embargo, passando desde logo por cima de apodos como «caloteiro», que me parecem apoucadores da discussão.

Alegou Passos Coelho que «não tinha consciência» de que as contribuições para a Segurança Social eram obrigatórias. Esta estranha “defesa” foi recebida, unanimemente e bem, com a recordação de um princípio fundamental do Direito: o desconhecimento da Lei não obsta à obrigação de a cumprirmos — ou em tudo se alegaria ignorância e siga a festa! Mas aqui surgiu uma divisão: entre os que descartaram tal alegação como pura mentira (como poderia um político profissional, ex-deputado, desconhecer o mais básico das suas obrigações legais?) e os que classificaram de inadmissível que tamanho ignorante desempenhe cargos públicos, para mais que encabece o Governo.
Disseram alguns destes últimos que já desconfiavam que Pedro Passos Coelho subira nas estruturas partidárias, não por mérito, mas por uma cuidada mistura de servilismo, clientelismo e compadrio, a que haveria a somar uma cara laroca para fazer boa figura nos cartazes de campanha: mais do que timoneiro, o primeiro-ministro seria o “poster boy” dos demolidores do Estado. A admissão de ignorância permitiria também contextualizar a insensibilidade de um primeiro-ministro que, em Setembro de 2012 (quando já sabia ser devedor à Segurança Social), veio anunciar um brutal aumento da Taxa Social Única a pagar pelos trabalhadores: Pedro Passos Coelho simplesmente «não tinha consciência» do que estava a falar — para ele não seria clara a diferença entre TSU e RSU, tal como, acrescentavam alguns, entre BCE e BCG...

Admitindo alguma verdade no diagnóstico expresso no parágrafo anterior, venho aqui deixar o meu embargo: mais do que da ignorância pura e dura, Pedro Passos Coelho foi vítima de uma ignorância (ou incompreensão) mais subtil, que designarei «literalismo reducionista», abrindo de seguida parênteses para, com um exemplo, deixar claro em que consiste tal conceito.

[Na minha infância, no Pátio das Cantigas, existia um grande tanque ao ar livre, pertencente à cerca do antigo Convento de São Domingos. Esse tanque era o local de eleição para a desova de dezenas de rãs, de que nasciam, para nosso fascínio de crianças, centenas de girinos que designávamos “peixes cabeçudos”.
Lembro-me que a certa altura começaram a surgir quantidades apreciáveis de girinos mortos. Fui rápido a apontar a suposta causa: tendo o tanque sido limpo pouca semanas antes, os anfíbios morriam à fome, por falta das algas a que chamávamos “lodo”. E tão certo estava do meu diagnóstico que, tendo aprendido havia pouco a escrever, logo fiz questão de comunicar por escrito à minha irmã as minhas conclusões quanto a tão preocupante hecatombe: «Os peixes cabeçudos estão a morrer porque não à lodo.» Assim mesmo, com «à» em vez de «há».
O bilhetinho foi lido pelo meu pai, que logo me chamou a atenção:
— Fernando, então já não te dissemos que quando ou existe se escreve com agá, e que só nos outros casos é que é sem agá e com acento para trás?!
— Pois é, Pai, mas neste caso não há lodo!
De facto, conforme era visível no meu bilhete, eu inicialmente escrevera «há», mas, atendo-me literal e redutoramente à noção de que assim, com agá, era só e só quando havia algo, tinha riscado a palavra correcta e escrito «à» por cima.]

E assim voltamos à «falta de consciência» de Pedro Passos Coelho de que, enquanto consultor da Tecnoforma, estava obrigado a pagar contribuições sociais.
Ao contrário do que alguns, inegavelmente mal-intencionados, afirmaram, o primeiro-ministro não ignorava tout court a obrigatoriedade de os trabalhadores independentes contribuírem para a Segurança Social. Em boa verdade, Passos Coelho, caindo como o eu da minha infância no erro do literalismo reducionista, simplesmente acreditava estar isento: na sua inocente interpretação da letra da lei, tais contribuições obrigatórias aplicavam-se exclusivamente aos detentores de rendimentos do trabalho — e a sua colaboração com a Tecnoforma configurava um tacho.


P. S.: É também falso que Pedro Passos Coelho não saiba a diferença entre TSU e RSU, ou entre BCE e BCG. O primeiro-ministro sabe bem a diferença: em ambos os casos, «uma letra».

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Vendas por telefone

[versão resumida, a bem da paciência dos leitores]

— Boa noite, fala Fulana de Tal, do Barclays Card. Estou a falar com o Sr. Pedro Carvalho?

— Não, aqui não é Pedro Carvalho. É engano.

— Mas o senhor conhece o Sr. Pedro Carvalho?

— Até posso conhecer algum Pedro Carvalho, porque tanto Pedro como Carvalho são nomes comuns, mas se a senhora deseja falar com um Pedro Carvalho, por que razão ligaria para o meu telefone? Sugiro que se informe quanto ao número de telefone dessa pessoa e tente de novo.

— Não, eu desejava falar com o proprietário deste número de telefone. Tenho o prazer de estar a falar com...?

— O meu nome não interessa, porque não sou Pedro Carvalho, tenho o jantar no prato e a arrefecer e, além do mais, não estou interessado na sua proposta.

— Como é que pode dizer isso, se não sabe do que se trata?

— A senhora já me disse que é do Barclays Card: não estou interessado.

— O senhor já foi cliente Barclays Card?

— Não, nunca.

— Então como sabe que não está interessado em algo que desconhece?

— Olhe, eu também nunca experimentei sexo homossexual, e tenho bastante certeza de que não estou interessado...

— ...

— Não estou a dizer que ser cliente Barclays Card é o mesmo que ser enrabado, mas acho que percebe a minha ideia...

— Ainda assim...

— Desculpe, como lhe disse, tenho o jantar a arrefecer no prato. E mesmo que não tivesse: não estou interessado.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

«António Lobo Antunes. Ascensão e queda do ‘enfant terrible’ da literatura portuguesa»

Não me chateia nada que a reportagem do Observador com o título acima possa regozijar-se com a “queda” de Lobo Antunes. É apenas ridículo que, apesar de ter em si mesma, e com certo mérito jornalístico, suficientes elementos para perceber que passar de 100 mil exemplares vendidos para poucos milhares não é uma “queda” literária (nem o é aos olhos dos leitores), a reportagem não deixe de insinuar esse sabor de derrota (desde logo no título).
A única coisa estranha em relação a Lobo Antunes era precisamente a venda de milhares de exemplares. Alguém que viva neste país, que saia à sua rua neste país e que conheça os seus conterrâneos terá em algum momento achado possível haver em Portugal dezenas de milhares de pessoas a ler Lobo Antunes?
É certo que o próprio escritor, que neste particular do ego se aproximou muitas vezes do inefável Rodrigues dos Santos, acreditou ou pareceu acreditar nessa possibilidade de ter um estádio-da-luz-com-terceiro-anel a lê-lo. Mas não, não há nem nunca houve em Portugal essa multidão furiosamente interessada em ler Lobo Antunes — nem, de resto, em ler regularmente seja o que for de literatura (ou ensaio ou história ou o que quer que não seja lixo).
Por outro lado, percebo as saudades de um tempo em que escritores como Lobo Antunes podiam ser best-sellers em Portugal. Isso impunha um certo respeito, balizava as coisas, ajudava a manter a bicheza literateira à distância, higienizava o ambiente. Hoje, a literatura de cordel — muita dela em regime de franchising, como a ancestral —, tomou conta do mercado e da sociedade como nunca na História — mas perdeu os velhos, tradicionais e sobretudo justos, adequados, complexos de inferioridade. Também porque já ninguém tem vergonha de se confessar leitor-não-praticante ou mesmo acérrimo analfabeto. E esta "emancipação" popular não é um progresso. Nem democrático nem de espécie alguma.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Abduzido pela música

A música, como a literatura, transporta-nos. É um velho cliché e, como tantos velhos clichés, uma verdade. Mas em alguns momentos da minha vida a música foi para mim menos Ambrósio e mais Mr. Scott, não tanto por o meu imaginário permanecer intergaláctico mas porque a deslocação promovida pela música era do género teletransporte, sugava-me a alma e materializava-a através de um feixe numa realidade paralela. Só assim se compreende, por exemplo, que certa noite na alta adolescência eu subisse a rua e em vez de torcer o nariz ao rádio que a Maria da Luz sintonizara em volume de arraial no passeio desse por mim a dançar a “Billie Jean”, do Michael Jackson. É certo que tinha andado a tentar aprender a linha de baixo da canção, mas geralmente mantinha na intimidade esse tipo de desvio de personalidade. Era Verão e havia possivelmente lua cheia, mas não me lembro de nenhuma visão que quase me parasse o coração (caso contrário teria dançado o “Thriller”). Aquilo era abdução pura, um metafísico tabefe gaulês que de mim só deixava as sandálias em modo moonwalk no passeio. Era eu por interposta pop a convidar o Álvaro de Campos sensacionista que havia em mim a calçar os meus sapatos (sim, felizmente também me acontecia a ouvir Depeche Mode, mesmo antes de eles terem gravado a canção). Depois a música acabava — depressa demais, como sempre acontece com a pop/rock (que saudades tinha do Barroco) — e lá ficava eu aturdido a sacudir o pó da roupa como se tivesse acabado de fazer a Route 66 ou de acompanhar Bento de Góis na primeira viagem europeia terrestre da Índia para a China (e toda a gente sabe como ficamos cheios de pó se vamos a pé da Índia para a China). 

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

João Miguel Tavares segrega pessoas de estatura mediana

Aborrecido com o hábito de ainda se confundir a direita com os ricos e a esquerda com os pobres (a quem ocorre tal coisa?), João Miguel Tavares resolveu introduzir um novo «eixo político» para separar as águas de forma mais democrática, digamos. Esse novo eixo dividiria o espectro político em «alto/baixo». Ouçamo-lo: 
«Neste novo “alto” poderíamos incluir tanto a habitual casta económica e política, como os detentores de privilégios corporativos, os burocratas que dificultam a livre iniciativa ou os especialistas na arte de fugir aos impostos; enquanto no novo “baixo” poderíamos colocar não só os pobres, mas também os reformados que se sentem espoliados, os jovens que nunca conseguiram um emprego, e todos aqueles que vêem a sua ascensão social dificultada pelas mais variadas redes de interesses que dominam os estados contemporâneos.»

Ora, a não ser que JMT reconheça que todas as pessoas honestas e boas são pobres (o que se diria uma surpresa na sua mundividência), esta nova divisão acrescenta a um novo maniqueísmo uma omissão ou um estigma. Um tipo que mantenha um emprego conseguido por mérito e não passe fome ou não existe no Portugal tavaresco ou é detentor de um privilégio corporativo, um burocrata que dificulta a livre iniciativa, enfim, um especialista na arte de fugir aos impostos. Acreditando que JMT não se vê a si mesmo como uma destas pessoas, temos de concluir que faz parte da habitual casta económica e política. Ou então é um pobre, já que não parece um dos reformados que se sentem espoliados nem um dos jovens que nunca conseguiram um emprego. A não ser, claro, que Tavares se sinta como um daqueles que vêem a sua ascensão social dificultada pelas mais variadas redes de interesses que dominam os estados contemporâneos e aí está tudo explicado, incluindo a sua divertida proposta taxonómica.

O Brecht dos bons observadores

Observador é uma bela ideia na imprensa portuguesa: junta num mesmo antro uma quantidade jeitosa de situacionistas. Torna-se mais fácil evitar a seita quando sabemos onde ela se acoita e é também mais simples mantermo-nos actualizados (basta um clique) quando, enquanto verdadeiros democratas, procuramos a nossa dose higiénica de contraditório. (Na verdade, não é bem isso que ali se procura, não vale a pena sermos generosos — nem escondermos a nossa compulsão pornógrafa.)

Numa das produções recentes daquela folha online lemos de um tal Mário Amorim Lopes: 
«Quando financiamos uma peça de Brecht de um qualquer encenador que jura que a cultura deve ser financiada por todos nós, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. E sacrificar a vida de uma criança é um preço demasiado elevado a pagar.»*

O parágrafo é todo um programa — e de uma subtileza antológica. Imagine-se que o rapaz escolhia outro dramaturgo; por exemplo, um daqueles gregos um pouco menos odiados pela direita Observadora: Sófocles, Eurípedes. Ou o inglês Shakespeare. O sofisma teria um impacto diferente. Aqui e ali, um ou outro velho conservador torceria a sua penca, sentado em frente às prateleiras de bom carvalho da biblioteca do solar. Um clássico grego é um clássico, raios, e Stratford-upon-Avon não é assim tão longe de Oxford. Há sempre uma criança que se pode sacrificar para salvar os clássicos, como sabia Churchill. Com dramaturgo de outra família literária, o voluntarismo do neófito seria remetido para a gaveta das inanidades próprias da juventude. Mas ele soube jogar em terreno seguro e lá colheu as suas palmaditas nas costas.

Jogou aliás tão pelo seguro que usou para sofismar esse democraticamente odiado universo da performance teatral. Imagine-se que ele tinha dito, por exemplo, quando financiamos uma apresentação da 9.ª Sinfonia de um qualquer maestro que jura que Beethoven é património da humanidade e a sua interpretação deve ser financiada por todos nós, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vidaHaveria por certo chatice da próxima vez que o avô descesse à capital para a sua ida sazonal ao S. Carlos.
Ou imagine-se que Amorim se atrevia ainda mais, num acto de verdadeira rebeldia juvenil (hipótese meramente académica, já se sabe), e saía para outros campos semânticos: quando financiamos uma empresa que paga impostos na Holanda, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. Ou, já num assomo de loucura: quando financiamos pornograficamente prémios a gestores, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. E sacrificar a vida de uma criança para enriquecer uma classe não raro incompetente e criminosa que se julga incensada e merecedora de todo o dinheiro que nega aos outros é um preço demasiado elevado a pagar.

Mas não. Quem escreve no Observador não se atreve a boutades divertidas como estas. Os bons conservadores preferem piadas onde se bate sempre no ceguinho do Brecht (aliás felizmente já tão pouco habitual nos teatros quanto decerto o próprio Amorim Lopes).


*A prosa tem um contexto alegadamente racional que pode ser livremente aferido aqui: http://observador.pt/opiniao/quanto-vale-uma-vida/

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Está explicado!

Explicação do meu ocasional companheiro de viagem (homem dos seus sessenta anos) para o facto de a Suíça ser verdejante:

«As montanhas estão cheias de árvores, que puxam a chuva. Aquilo come o bicho da atmosfera (sic) e é por isso que é tudo verde e sem poluição.»

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Há um só Deus* — e é medricas

BOOH! Scared you, did I, you shitty God? (God is small.)

Uma confissão:

O projecto desta t-shirt foi criado no Verão passado, quando chegaram as primeiras notícias de que os terroristas do Daish (também conhecidos como ISIS, entre outras designações para a mesma estupidez e barbárie) andavam a destruir tesouros arqueológicos na Síria e no Iraque.

A verdade é que, uma vez pronta, hesitei em publicá-la. Tinha especiais dúvidas quanto a manter ou não a inscrição em árabe. (Para os curiosos, trata-se de uma inversão de sentido do tradicional takbir.) Manietava-me um receio algo difuso de ordem física, bem como a possibilidade de ofender alguns amigos que, não me conhecendo assim tão bem e tendo a desvantagem adicional da diferença cultural, podiam sentir-se visados por algo que, na minha perspectiva, não lhes era dirigido (ou eu não seria amigo deles).

A hesitação durou alguns dias. Foi o suficiente para que as notícias mudassem: à destruição de estatuária assíria seguiram-se execuções em massa, decapitações, crucificações, sequestro de escravas sexuais... Perante isso tudo, o meu «Booh!» pareceu-me deslocado no tempo e no tom: a t-shirt manteve-se fechada na sua gaveta digital.

Uma característica dos seres adaptáveis é que se habituam às novas circunstâncias. Meio ano depois, não é que a barbárie do pseudo-Califado se tenha tornado aceitável, mas tornou-se certamente parte da paisagem política do nosso tempo: é algo com que contamos. Somando a essa infeliz ausência de estupefacção as renovadas notícias de crimes contra o património histórico da Humanidade (dinamitação das muralhas de Nínive), e tendo presente a manifesta necessidade de sermos um pouco mais Charlie, faço finalmente hoje o que devia ter feito no Verão passado.



* (Ouvi uns boatos...)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Papa “Falácisco”

O Papa Francisco é uma das Pessoas Que Não Sabem Bem Se São Charlie. No segundo seguinte a dizer que «não se pode reagir violentamente», acrescenta que se alguém, incluindo um amigo, «disser um palavrão contra a minha mãe, pode esperar um murro. É normal.»

É pena que aquele que é, de longe, o Papa mais simpático dos últimos 50 anos não consiga manter a coerência por um pouco mais de dois segundos. Mais pena é que a falta de coerência constitua — pecado adicional — uma flagrante falácia. (Bem, não será por acaso que alguém ascende na hierarquia cardinalícia...)

A sua mãe, Sr. Papa, não é (tanto quanto me consta) omnipotente, nem omnisciente, nem omnipresente. Se, quando é insultada, ela não estiver presente, não se pode defender. Quem estiver presente e gostar dela tem obrigação de a defender (embora não necessariamente através da violência física).
Deus, por outro lado, segundo o Papa, está em toda a parte e é todo-poderoso. Assim, se nalguma parte do mundo (que digo? do Universo!) alguém insultar Deus, Deus — como todo-poderoso — tem o (lá está) poder de intervir directamente e tratar do assunto.
Idem para profetas-amados-por-Deus, segundo consta.

Por isso, Sr. Papa, a comparação com insultos à sua mãe é uma falácia.
Já agora, pouco cristã (Mateus 5:39, Lucas 6:29, 1 Pedro 3:9, Provérbios 12:16).

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Pássaro na gaiola

Está um frio de rachar e, submerso em camadas de vestuário de acordo com os receituários meteorológicos, ouço pássaros em plenos fôlego e inspiração melódica. Não duvido da minha sanidade, mas pelo sim pelo não encosto os phones à orelha para checkar: no meio de tantas páginas abertas para os trabalhos de hoje alguma terá talvez música de fundo ornitológica. Porém, não. Os pássaros não esperam por padecer da nostalgia de ar livre (mesmo que siberiano) e do consequente impulso que senti há pouco quando me permiti espreitar a janela por segundos. Os pássaros recusam-se à ladainha humana de ser domingo e ter de trabalhar e ficar meses sem passear pelos montes. Os pássaros voam assobiando ou assobiam voando, e que se foda a vidinha responsável e burguesa! Onde raios pus as minhas asas e o diapasão?

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Não, não sou Charlie Hebdo

Durante uma boa parte da minha vida adulta escrevi textos críticos e satíricos de pendor social ou político. Antes tinha feito cartoon (é verdade), primeiro como argumentista, depois, por desistência do parceiro, também como desenhador. Não eram grande coisa, os meus cartoons, tanto no traço como no humor. Embora aquilo me desse bastante gozo, não sei se haverá algum por que possa sentir qualquer ponta de orgulho. Guardo parte deles na garagem, mas há mais de uma dúzia de anos que não lhes toco. Quando o fizer, provavelmente o papel de jornal desfaz-se-me nas mãos e não me parece triste nem injusto que isso aconteça. Inicialmente assinava-os com pseudónimo, mais por timidez e insegurança (ou por consciência não assumida da sua mediocridade) do que por receio de represálias. Mas em algum momento devo ter percebido (finalmente) que, medíocres ou não, era cobardia não assinar os desenhecos e passei a fazê-lo. O mundo, acertadamente, não se comoveu com o gesto, a Terra não alterou a sua órbita.
Quando passei para as colunas de opinião, em publicações próprias ou alheias, a ironia e a irrisão acentuaram-se. Ganhei os meus primeiros inimigos para a vida, mas quase todos inimigos cordiais e até afáveis, devo dizê-lo.
Por ocasião do III Congresso de Trás-os-Montes e Alto Douro, se não estou em erro, escrevi para o extinto Semanário Transmontano, onde era na altura cronista regular, um texto a ridicularizar sarcasticamente o evento e as suas pretensões e o director resolveu publicá-lo em letra gorda na primeira página. O jornal foi distribuído no Congresso e eu resolvi aparecer no local, com suposta heroicidade, para dar a cara pelas minhas palavras (ou talvez deva dizer honestamente, para recolher os louros pela boutade). De novo com justiça, a nata transmontana ali reunida não deu pela minha presença: não houve vaias, assobios, ameaças à integridade do escriba petulante e traidor. Só o meu ego saiu ferido.
De resto, tirando ocasionais reacções frouxas, a minha intervenção cívica através da crítica e da sátira pareceu-se demasiado a um passeio bucólico pelos bosques. Só a espaços senti ter despertado algum ódio atávico, geralmente vertido em colunitas azedas, algumas convenientemente anónimas, e apenas em duas ocasiões as reacções ao que escrevi traziam implícitas ameaças de consequências. Numa noite de vitória eleitoral de uma facção que eu satirizara nas minhas crónicas, um militante mais eufórico ofereceu-me o seu olhar de pura raiva hooligan e perdigotou palavras de exemplares democraticidade e fair play (confirmando, aliás, involuntariamente, o que eu escrevera sobre a seita, mas isso ele jamais poderia perceber). Pela mesma época, certo figurão resolveu informar uma audiência (não apenas privada, infelizmente para a sua honra) que os meus escritos eram razões suficientes para ele mexer cordelinhos e conduzir-me ao desemprego. Deve ter-se sobrestimado ou arrependido, porque continuei empregado.

É por este triste currículo que me sinto obrigado a confessar ter sentido uma certa vergonha a acompanhar a minha comoção com a morte dos cartoonistas e jornalistas do Charlie Hebdo. A afirmação Je Suis Charlie que pus como foto de perfil no Facebook é sincera na sua solidariedade, mas é simultaneamente cabotina, equívoca. Não, não sou Charlie. Eu não tenho a bravura, a grandeza daqueles homens. Eu não escrevo textos nem faço desenhos corajosos como os daquelas pessoas que morreram em Paris. Eu não vivo a um passo da ameaça terrorista. As minhas actividades e as minhas opiniões não me expõem a perigos quotidianos potencialmente fatais. Poderia passar os dias, aqui neste canto da periferia europeia, a republicar cartoons sobre cretinos e fanáticos muçulmanos, católicos, judeus, hindus e nacionalistas e provavelmente morrer de velhice, cirrose ou de um AVC — não com balas ou bombas.
Mas sobretudo não sou Charlie porque com os anos tenho demasiadas vezes cedido à inércia e à preguiça e deixado de me rir — rir ironicamente, sarcasticamente, ferozmente, acintosamente, publicamente — das pequenas iniquidades e dos pequenos ayatollahs que neste país também frutificam. A minha resolução de ano novo deveria ser a de voltar a rir às gargalhadas com certa regularidade. Enquanto isso não acontecer, vou ali trocar a foto do Facebook por uma igualmente solidária mas menos pretensiosa.