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segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Papa “Falácisco”

O Papa Francisco é uma das Pessoas Que Não Sabem Bem Se São Charlie. No segundo seguinte a dizer que «não se pode reagir violentamente», acrescenta que se alguém, incluindo um amigo, «disser um palavrão contra a minha mãe, pode esperar um murro. É normal.»

É pena que aquele que é, de longe, o Papa mais simpático dos últimos 50 anos não consiga manter a coerência por um pouco mais de dois segundos. Mais pena é que a falta de coerência constitua — pecado adicional — uma flagrante falácia. (Bem, não será por acaso que alguém ascende na hierarquia cardinalícia...)

A sua mãe, Sr. Papa, não é (tanto quanto me consta) omnipotente, nem omnisciente, nem omnipresente. Se, quando é insultada, ela não estiver presente, não se pode defender. Quem estiver presente e gostar dela tem obrigação de a defender (embora não necessariamente através da violência física).
Deus, por outro lado, segundo o Papa, está em toda a parte e é todo-poderoso. Assim, se nalguma parte do mundo (que digo? do Universo!) alguém insultar Deus, Deus — como todo-poderoso — tem o (lá está) poder de intervir directamente e tratar do assunto.
Idem para profetas-amados-por-Deus, segundo consta.

Por isso, Sr. Papa, a comparação com insultos à sua mãe é uma falácia.
Já agora, pouco cristã (Mateus 5:39, Lucas 6:29, 1 Pedro 3:9, Provérbios 12:16).

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Não, não sou Charlie Hebdo

Durante uma boa parte da minha vida adulta escrevi textos críticos e satíricos de pendor social ou político. Antes tinha feito cartoon (é verdade), primeiro como argumentista, depois, por desistência do parceiro, também como desenhador. Não eram grande coisa, os meus cartoons, tanto no traço como no humor. Embora aquilo me desse bastante gozo, não sei se haverá algum por que possa sentir qualquer ponta de orgulho. Guardo parte deles na garagem, mas há mais de uma dúzia de anos que não lhes toco. Quando o fizer, provavelmente o papel de jornal desfaz-se-me nas mãos e não me parece triste nem injusto que isso aconteça. Inicialmente assinava-os com pseudónimo, mais por timidez e insegurança (ou por consciência não assumida da sua mediocridade) do que por receio de represálias. Mas em algum momento devo ter percebido (finalmente) que, medíocres ou não, era cobardia não assinar os desenhecos e passei a fazê-lo. O mundo, acertadamente, não se comoveu com o gesto, a Terra não alterou a sua órbita.
Quando passei para as colunas de opinião, em publicações próprias ou alheias, a ironia e a irrisão acentuaram-se. Ganhei os meus primeiros inimigos para a vida, mas quase todos inimigos cordiais e até afáveis, devo dizê-lo.
Por ocasião do III Congresso de Trás-os-Montes e Alto Douro, se não estou em erro, escrevi para o extinto Semanário Transmontano, onde era na altura cronista regular, um texto a ridicularizar sarcasticamente o evento e as suas pretensões e o director resolveu publicá-lo em letra gorda na primeira página. O jornal foi distribuído no Congresso e eu resolvi aparecer no local, com suposta heroicidade, para dar a cara pelas minhas palavras (ou talvez deva dizer honestamente, para recolher os louros pela boutade). De novo com justiça, a nata transmontana ali reunida não deu pela minha presença: não houve vaias, assobios, ameaças à integridade do escriba petulante e traidor. Só o meu ego saiu ferido.
De resto, tirando ocasionais reacções frouxas, a minha intervenção cívica através da crítica e da sátira pareceu-se demasiado a um passeio bucólico pelos bosques. Só a espaços senti ter despertado algum ódio atávico, geralmente vertido em colunitas azedas, algumas convenientemente anónimas, e apenas em duas ocasiões as reacções ao que escrevi traziam implícitas ameaças de consequências. Numa noite de vitória eleitoral de uma facção que eu satirizara nas minhas crónicas, um militante mais eufórico ofereceu-me o seu olhar de pura raiva hooligan e perdigotou palavras de exemplares democraticidade e fair play (confirmando, aliás, involuntariamente, o que eu escrevera sobre a seita, mas isso ele jamais poderia perceber). Pela mesma época, certo figurão resolveu informar uma audiência (não apenas privada, infelizmente para a sua honra) que os meus escritos eram razões suficientes para ele mexer cordelinhos e conduzir-me ao desemprego. Deve ter-se sobrestimado ou arrependido, porque continuei empregado.

É por este triste currículo que me sinto obrigado a confessar ter sentido uma certa vergonha a acompanhar a minha comoção com a morte dos cartoonistas e jornalistas do Charlie Hebdo. A afirmação Je Suis Charlie que pus como foto de perfil no Facebook é sincera na sua solidariedade, mas é simultaneamente cabotina, equívoca. Não, não sou Charlie. Eu não tenho a bravura, a grandeza daqueles homens. Eu não escrevo textos nem faço desenhos corajosos como os daquelas pessoas que morreram em Paris. Eu não vivo a um passo da ameaça terrorista. As minhas actividades e as minhas opiniões não me expõem a perigos quotidianos potencialmente fatais. Poderia passar os dias, aqui neste canto da periferia europeia, a republicar cartoons sobre cretinos e fanáticos muçulmanos, católicos, judeus, hindus e nacionalistas e provavelmente morrer de velhice, cirrose ou de um AVC — não com balas ou bombas.
Mas sobretudo não sou Charlie porque com os anos tenho demasiadas vezes cedido à inércia e à preguiça e deixado de me rir — rir ironicamente, sarcasticamente, ferozmente, acintosamente, publicamente — das pequenas iniquidades e dos pequenos ayatollahs que neste país também frutificam. A minha resolução de ano novo deveria ser a de voltar a rir às gargalhadas com certa regularidade. Enquanto isso não acontecer, vou ali trocar a foto do Facebook por uma igualmente solidária mas menos pretensiosa.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Os heróis e os cabos de João Miguel Tavares

A direita tem com o 25 de Abril uma relação difícil: ou o odeia ou o desvaloriza. Por vezes surge uma inesperada e comovente apropriação, como a do secretário de estado Pedro Lomba. No Público de terça-feira, João Miguel Tavares, outro jovem turco da direita, foi mais fiel à ortodoxia da tribo, mas nem por isso foi menos enternecedor. Munindo-se das ferramentas da condescendência e do lugar-comum, temperadas com uma pitada humorada de literatura, Tavares informou-nos que o 25 de Abril, ao invés de uma Revolução, foi um caso de não-acção típico dos portugueses. Para esta sua tese, elegeu como episódio central e representativo do movimento das forças armadas o do cabo-apontador Alves Costa — que se fechou no tanque para não ser obrigado a disparar, tal como conta o livro Os Rapazes dos Tanques. João Miguel reproduz o episódio, relaciona-o com a idiossincrasia lusa e culmina aquela secção do artigo com um lapidar «E assim se fez Abril».

Percebo que a vivacidade de algumas fotos do 25 de Abril seja perturbadora, e que certas pessoas, arrebatadas pela tensão das imagens, se sintam tentadas a refugiar-se num tanque. Mas isso não deveria servir para ignorar que naquele mesmo dia houve quem se posicionasse em frente ao canhão, de peito aberto. Quem, ao contrário de João Miguel Tavares hoje, não sabia que os tanques nãoiam disparar.

O cabo-apontador da história que encantou Tavares pode ser representativo de uma certa portugalidade. Portugal inteiro pode hoje ser fielmente representado pela personagem de Herman Melville, aquele Bartleby paradigma da passividade, divertidamente invocado por João Miguel. Não discuto isso. Mas só uma hermenêutica muito irreverente ousaria considerar que «Preferiria não o fazer», o mantra de Bartleby, é o slogan adequado ao 25 de Abril.

Por mais que custe ou não convenha à narrativa actual, a Revolução foi feita pelos tipos que se dispuseram a sair de Santarém e a enfrentar um regime, amolecido, é certo, mas que continuava a prender, a punir e a torturar. Um regime que tinha do seu lado gente que não hesitaria, como não hesitou, em disparar ou mandar disparar.

Enfatizar o papel do cabo-apontador Alves Costa em detrimento do de Salgueiro Maia é escolher a caricatura da pequena história em vez da dignidade do retrato, igualmente disponível.

O cabo-apontador, no artigo de João Miguel Tavares, teve o mérito de impedir «que a revolução se tornasse num banho de sangue», mas a coragem dos capitães que se dispuseram a fornecer sangue para esse «banho» parece ser menos relevante para a narrativa.

«Se há coisa em que os norte-americanos são realmente bons», diz Tavares, «é a criar heróis e memoriais». E conclui: «(…) nós não temos essa cultura em Portugal.» Pois não. E João Miguel empenhou-se em provar que não a temos — preterindo heróis inconvenientes a cabos de anedota.

Concluo com uma interpretação talvez também ousada (preferiria não o fazer, mas detestaria mais passar por bartlebyano): desvalorizar a coragem dos outros à distância de décadas e no conforto de uma boutade de jornal é, parece-me, uma cobardia.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A liberdade de ser e o papel do bobo

Os pobres de espírito e de carácter (e até de inteligência, não pode ser totalmente inteligente quem não percebe o conceito de liberdade individual) hão-de precisar sempre de alguém a quem discriminar, sobre quem fazer recair raivas, preconceitos, frustrações, complexos. A História ensina: mulheres, pretos, judeus, homossexuais… Há sempre um “argumento” de ordem “natural”, “científica” ou “cultural” para negarem ao próximo aquilo de que se consideram legítimos (alguns por direito divino) detentores: a liberdade de ser. É da definição de liberdade global que o direito a ser imbecil, inalienável, tem de se restringir à esfera do próprio indivíduo. Por favor ninguém proponha, neste estádio da civilização, um referendo sobre a possibilidade de as pessoas serem parvas para si mesmas. Direitos humanos não se referendam — e continuamos a precisar de cromos de quem rir. Não os deixemos é legislar, não é esse, historicamente, o papel do bobo.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

O monólito

Chama-se Maxime Qavtaradze. Lembrando antigos estilitas, o monge vive há vinte anos no topo de um monólito: longe dos semelhantes, que todavia o alimentam; mais perto de Deus, apesar da divina omnipresença. Mas permanecer ali, rodeado de abismo e monotonia, pode também ser o convite ao exercício de «simplesmente existir»: sem memórias cruéis nem expectativas inúteis, para lá de um céu de promessas e de uma terra de desilusões. Todos deviam ter direito a uma pedra assim.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

As duas manhãs

Escreve-o Bernardo Soares: «A manhã do campo existe; a manhã da cidade promete.» Deve, por conseguinte, haver algures entre o campo e a cidade um ponto de fusão das duas manhãs. Será o lugar adequado aos que apreciam sínteses e convergências. Pode, no entanto, haver igualmente um ponto de omissão, um ponto onde a manhã do campo não «existe» e a manhã da cidade não «promete». Será esse o espaço ideal dos que preferem margens e silêncios.

sábado, 22 de junho de 2013

Os condutores e os bêbados

A fechar L’Être et le Néant, obra de assinalável sucesso, conclui Jean-Paul Sartre que todas as actividades humanas estão votadas ao fracasso. Condenado à liberdade, o indivíduo é a fonte exclusiva dos valores. Assim, tanto faz «embriagar-se solitariamente» como «conduzir os povos». Certo. Mas torna-se incomodativo saber que uma coisa não impede a outra. Há «condutores de povos» que, pelo rumo a que entregam o povo a conduzir, geram a terrível suspeita de serem igualmente «bêbados solitários».

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Acerca da disciplina auto-imposta

A disciplina auto-imposta constitui uma garantia de que haverá obra. Mas o problema dela resultante consiste na formação de um eu paralelo, susceptível de assumir o poder de ditar regras e infligir punições. Evita-se que ele surja — ou neutraliza-se o surgido entretanto — ao reconhecer-se que a tendência para ajustar o contexto à disciplina se deve submeter, quando necessário, ao bom senso de moldar a disciplina ao contexto. Em geral, os tiranos começam por aplaudir a submissão oposta.

Comemorações do 25 de Abril

terça-feira, 2 de abril de 2013

«É melhor não pensarmos nisso...»

Diz o Rui:

Se não houvesse tiranetes do gosto nas TVs e numa grande quantidade de câmaras, muito povo estaria ele próprio disposto a sair à rua a gritar que «os portugueses quando vão ao teatro querem apenas divertir-se».

Essa é, precisamente, a premissa do livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.

O grande pecado de François Truffaut, na adaptação ao cinema, foi alterar (ou deixar irreconhecível) esta ideia.

Quando vi o filme, interpretei estar perante uma sociedade com um regime repressivo clássico, que proibia os livros por eles serem perigosos para esse regime, por alimentarem sediciosos (não que os livros em si fossem políticos, mas os regimes repressivos, mais do que os outros, viçam na ignorância). Pensei, com as devidas diferenças, em regimes como o Nazi, o Soviético ou mesmo o nosso Estado Novo.

Mas quando, muitos anos depois, li o livro (que em termos estéticos é pior do que o filme), vi que a ideia era ainda melhor: o narrador faz-nos saber que o sistema repressivo sobre a posse e leitura de livros foi imposto pelo desejo manifesto da maioria, que não queria enfrentar as questões incómodas levantadas pelos livros e seus leitores. Queriam paz de espírito: como ouço frequentemente por aí, «É melhor não pensarmos nisso...».

Por isso Fahrenheit 451 não é redundante face a um, literariamente muito melhor, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. De facto, os dois são um bom contraponto. O livro de George Orwell fala-nos de um regime ditatorial em que uma minoria oprime e manipula a imensa maioria; o de Ray Bradbury apresenta-nos um regime originalmente “livre”, em que a maioria estupidificada oprime e tenta formatar à sua imagem e semelhança uma minoria (cada vez menor) que se recusa a ir por aí. Fahrenheit 451 e Mil Novecentos e Oitenta e Quatro formam uma dupla esclarecedora: lembram-nos que a ditadura e a opressão podem lançar raízes em diferentes terrenos.