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quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Coisas que não anoto no moleskine (2): em Mainz

Recordo assim de repente Mainz como cidade irmã de outras imaginadas onde o adro fronteiro à gare se reveste de uma anarquia lânguida, vagamente ameaçadora ou repulsiva. Bandos esfarrapados de punks, com as suas repas coloridas e hirtas, chocalhavam quando ali desembarcámos correntes de forçados e constituíam uma pequena multidão de rebeldes ociosos, espalhados no lajeado cinzento e sujo como focas gordas ou tartarugas trazidas pela maré com o lixo a uma praia vulcânica. Sentados ou recostados como romanos em orgia, bebiam e derramavam as suas cervejas enquanto lançavam por rotina insultos aos passageiros que, como nós, ziguezaguevam por entre eles na direcção da paragem de táxis ou dos meandros do centro urbano. Não é um bom cartão-de-visita de uma cidade, mas suponho que ninguém se dá ao trabalho de ir até à Alemanha para acabar a apear-se do comboio em Mainz. O acampamento punk não se monta quotidianamente ali para assediar turistas, creio, mas para chocar os concidadãos burgueses e devotos do trabalho que usam o comboio nas suas idas e vindas diárias para Frankfurt ou para localidades próximas. De resto, a cidade, que até tem os seus encantos, não precisa da estética punk para enjoar os visitantes: tem a cozinha, com salsichas sensaboronas e puré de bata avinagrado, que se serve com um apfelwein menos entusiasmante do que um Fruto Real que tivesse sobrevivido aos anos 80 e decidíssemos por estultícia arriscar beber hoje.

Se contudo o viajante se dá, como nós, ao trabalho de ir até Alemanha para acabar a apear-se no comboio em Mainz, não adianta ir fazer perguntas ao estabelecimento tuga a dois passos da estação: ali deixam de falar português quando descobrem que os entendemos. A alternativa é acreditar no casal simpático que nos aborda mais tarde, vestido para ir ao teatro num fim de dia de Agosto, e que garante ter um quarto vago, se no fim da peça ainda andarmos pelas ruas de mapa na mão e falhos de abrigo. Em Mainz fica-se então a olhar para estoutro cartão-de-visita, um pequeno rectângulo de papel que assegura serem os elementos do casal cientistas numa universidade próxima, e, enquanto se continua a busca por hotel barato, entreolham-se os viajantes perguntando-se se há alemães calorosos ou se um currículo universitário distinto é atributo que os teutões julgam necessitar para seduzir swingers meridionais. Como entretanto escurece de vez naquela parte da cidade com arquitectura vagamente pré-Segunda Guerra Mundial, e como se levanta uma brisa de inquietação e preconceito, os viajantes deixam de se sentir lisonjeados com a ideia de assédio intelectualizado e passam a interrogar-se academicamente o quão sedutor poderia ser Norman Bates para copycats germânicos. A imagem hitchcockiana de uma faca no duche diverte os viajantes — e leva-os a optar por subir um bocadinho a quantia que estão dispostos a despender por um quarto em Mainz. Alojam-se naquele hotel que era antes bom de mais para portugueses temporariamente sem bússola mas permanentemente sem dinheiro, trocando uma aventura literária por um pequeno luxo capaz de aliviar o corpo e a alma. No moleskine anotei o preço do hotel.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Coisas que não anoto no moleskine

Dificilmente poderia viver com a humidade tropical, mas com a chuva e a monção sim. No Vietname usei o tempo todo uma echarpe feminina enrolada e empapada no pescoço e arrastava-me pelo território como um alucinado no deserto, seguro de que se parasse desfalecia ali mesmo. O meu caminhar era como o de alpinistas a 8 mil metros de altitude sem forças, oxigénio e discernimento, mas com aquela motivação ou obsessão prévias que lhes concedem um caminhar de autómato, pondo lenta e lunarmente um pé após o outro, mais como estertores em slow motion de morto do que passadas voluntárias de vivo. Era assim eu naquela latitude, a deslocar-me em linhas rectas entre duas sombras em vez de vaguear turisticamente pela paisagem; a olhar as coisas pitorescas pelo canto do olho enquanto elas iam desfilando a meu lado como noutra dimensão, sem nunca me deter para apreciar pormenores ou comentar particularidades; anunciando com desespero homicida na voz que se parasse para fazer fotos ou me desviasse do caminho da sombra fosse por que razão turístico-imperiosa fosse seria um português suado morto, e não um ocidental vivo enriquecido pela viagem. Descobri que nos trópicos tenho espírito de mula atrelada à nora: caminho porque tenho de caminhar, remoendo pensamentos asininos, obstinados, sem nexo nem finalidade, incapaz de parar depois de me pôr em marcha e impedido pelo jugo tropical de gestos de revolta, de qualquer gesto, aliás, que não seja descolar um pouco a t-shirt do corpo. Mudava de trajectória de vez em quando, é verdade que mudava, se a companhia me reorientava os passos segurando-me pelos ombros como se faz a um bebé ou ao tal autómato com pilhas Duracell e uma versão muito beta de GPS. Por vezes também chocava com postes e paredes, e conseguia inflectir ou contornar o obstáculo com a mesma destreza convulsiva das sondas robóticas em Marte. As primeiras e mais primitivas, que se atolavam à terceira tentativa — não sem o alívio que devem sentir os moribundos finalmente autorizados a fenecer.
Mas é da chuva que queria falar, não de como viro zombie em atmosferas de 30 ou mais graus e 100% de humidade.
Já fui feliz à chuva no Inverno, fazendo jogging ensopado como um náufrago escocês emerso do Loch Ness (e portanto com razões para correr), fazendo trekking com botas encharcadas que emitem barulhinhos ora constrangedores ora estupidamente cómicos como dobragens de filmes porno (mas não suficientemente sugestivos para um escroto alojado em boxers impregnados de chuva e frio), e, se recuar um pouco mais na biografia, também já fui feliz no Inverno chegando como um pito a casa vindo da escola com os pés enfiados em sacos plásticos dentro dos sapatos e pronto para café com leite, torradas, luz de velas e livros de Júlio Verne.
Gosto de apanhar molhas, como se vê, mas como não sou um masoquista indefectível, as minhas melhores molhas são as de Verão. Chuva quente é a minha ideia de Paraíso. Debaixo de borrascas estivais tenho reminiscências do Éden, como se cada cromossoma do meu ADN estremecesse de um prazer herdado de quando a humanidade tinha guelras e dava as primeiras braçadas no aquaworld primordial. Debaixo da chuva de Verão, de virilhas ensopadas, sinto-me feliz, purificado e nu como Adão e Eva. (Não duvidemos que estas figuras bíblicas existiram, só que, ao contrário do que pensa a religião, eram batráquios ou girinos sem nada pudendo a esconder.)
Mas se invoquei o tema chuva foi porque hoje me lembrei, não sei bem porquê, que uma das vezes em que fui feliz estava encharcado até aos ossos na Alemanha. Não encharcado e tremelicante como trabalhador meridional na suja neve teutónica, mas encharcado e esfusiante como vagamundo munido de moleskine e optimismo. Tínhamos descido do castelo de Stahleck, transformado em pousada da juventude e sobranceiro à pitoresca aldeia de Bacharach, por sua vez ancorada à margem do Reno. O Reno é ali o Douro da Alemanha, com os seus curiosos vinhedos de bardos perpendiculares às curvas de nível, mas inebria um pouco mais. Não porque os seus famosos brancos tenham mais teor de álcool, mas porque as suas paisagens urbanas têm menor teor de mau gosto. Fosse como fosse, talvez viéssemos um pouco tocados de Stahleck — tínhamos bebido um copo ou dois enquanto assistíamos a um ensaio da banda da juventude ali hospedada e não nos pareceu loucura caminhar os três ou quatro quilómetros para montante (até ao ancoradouro de onde partia o barco que fazia a travessia para a estação na margem oposta a tempo de apanharmos o nosso comboio para Coblença), mesmo que a chuva começasse a cair com intensidade e os nossos impermeáveis tivessem sido comprados na loja dos chineses que ficava no rés-do-chão do meu prédio em Portugal. Subimos o Reno encharcados e eu feliz, de calções e a chinelar como se a Alemanha ficasse abaixo do Trópico de Câncer, indiferente à distância e à chuva. Recordo-me que fiquei ligeiramente aborrecido quando parou de chover e o barco partiu a horas e vi que o nosso plano se iria cumprir, o que era bom, mas já não, o que era mau, sob uma chuva que aspergia como se os deuses, de luvas e galochas no seu jardim, se entretivessem a irrigar a felicidade dos homens.
Depois disso, fui então feliz à chuva nos arredores de Hué, viajando na traseira de uma motoreta e agarrado ao meu oriental como Leonardo DiCaprio a Kate Winslet (só que ele, o meu oriental, felizmente não largava as mãos do guiador para abrir os braços à proa e era eu quem tirava os chinelos dos apoios e levantava as pernas como se estivesse a vogar cinematicamente num Titanic meridional). Nessa tarde tínhamos ido ver templos funerários e no caminho de regresso havia ao longo da estrada telas de artistas plásticos, uma exposição de arte contemporânea a céu aberto que se afogava por uma hora ou duas e depois secava num instantinho, como tudo ali secava num instantinho excepto o meu suor.
Mais tarde fui ainda feliz à chuva em Roma, a correr para o metro acima da Piazza di Spagna e a ter tempo de achar afinal pequena e banal a Via dei Condotti que o guia dizia ser «a busy and fashionable street».
Em Paris não choveu, e eu que levava um kispo novo à espera de o estrear com o mesmo ânimo pueril e inconfessável de quando, adolescente, vesti em Agosto um kispo em segunda mão — herdado de um primo afastado e a cheirar a essências que não eram o sabão rosa lá de casa —, pela primeira (e última) vez impaciente pelo Inverno, só porque tinha caído uma chuvita de Verão antes da missa.

Levava também, em Paris, o moleskine que me foi oferecido como ferramenta de escritor mas que uso apenas para anotar despesas e coisas práticas.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

O último acto

[Depois dos postsDança contemporânea” e “A última dança”, impunha-se publicar aqui este conto.]


Ninguém está à espera que lhe tentem derrubar a casa, sobretudo se for apanhado lá dentro, mas foi isso que lhe aconteceu naquela noite. Mudara-se para a província no início da semana com o objectivo de passar o Verão. Não tinha exactamente um projecto a que se entregar, nada mais do que uma mala cheia de livros e a necessidade absoluta de não ver pessoas, pessoas conhecidas, pelo menos.

Escolheu uma vila pequena sem outros atractivos além de uma paisagem discreta e um festivalzinho de música clássica num fim-de-semana de Agosto (reparar no festival fora uma pequena cedência sua). Alugou por oito semanas o bungalow de madeira com uma lareira e um alpendre virado para um vale profundo. Ficava nos arredores da vila e fora o único a ser erigido de um complexo turístico falhado.

A cabana não estava nas melhores condições, era frágil, mas tinha conforto suficiente, mais do que muitas casas da povoação. Usaria o alpendre tanto quanto possível. Quando não estivesse ali sentada a ler os seus livros, andaria a tentar perder-se pelos montes ou teria ido fazer as refeições à vila, zelando para não criar laços na terra. Por uma vez na vida, estava-se pouco lixando para a educação ou para a cordialidade. Seria a velha antipática e egoísta que tinha direito a ser.

Bem, talvez não tivesse esse direito. Ou outros. Não tinha sido exactamente o melhor dos seres humanos. Mas, que diabo, quem poderia atirar a primeira pedra? Não havia seres humanos bons e ela queria mesmo que se fodessem todos (estava velha, podia, finalmente, usar o verbo foder). Se lhe entregassem as chaves de um arsenal nuclear nos momentos de ira, que agora eram cada vez mais frequentes, ela usá-las-ia.

Tinha sonhos apocalípticos, ultimamente. Via-se a deambular pelo mundo como o último habitante à face da terra. Não como naquelas películas catastróficas, mas optimistas, que deixam no ar uma possibilidade de recomeço depois da purga, que não resistem a revisitar o mito de Adão e Eva. Nada disso. Os sonhos eram seus e ela sobrevivia, mas apenas porque os sonhos, como as frases, precisam de um sujeito.

Não lhe desagradava, de qualquer modo, ser a testemunha do fim, a última pessoa viva. Ou uma das duas últimas pessoas vivas — se algum dia conseguisse enlevar-se em sonhos românticos. Teria piada, sonhar com um homem patético (todos os homens são patéticos) a fazer-lhe a corte depois do holocausto. A ela, à Eva sem útero. E sem ovários.

Acreditaria num Deus que se permitisse a deliciosa ironia de ser ela a última fêmea viva. (Mesmo que não lhe tivessem retirado todo o aparelho reprodutivo, era agora demasiado velha para assegurar a manutenção da espécie.) Dar-se-ia bem com a ideia de que morria nela toda a esperança da humanidade, ainda que reconhecesse ser esta uma ideia vingativa.

Na terceira semana começou a nevar. Estava a tarde a meio e ela apenas se deu ao trabalho de achar ridícula uma coisa daquelas, nevar em pleno Verão, com aquele calor. Era-lhe indiferente. A lareira estava apetrechada, caso a temperatura também baixasse, e havia mais lenha no coberto das traseiras do bungalow. Tinha a sua desculpa, escusava assim de se censurar por ficar em casa em vez de caminhar pelas redondezas (gostava do exercício físico, tivera sempre o culto do corpo, do movimento, mas agora já não divisava interesse nisso).

O crepúsculo foi belo, teve de admitir. Duas forças em oposição: a noite que caía e a neve que teimava em manter os campos e os montes iluminados. Assistiu ao combate de rosto colado na janela e livro esquecido nas mãos. A noite ganhou, naturalmente, mas não foi uma vitória completa. Não havia trevas, apenas uma penumbra que permitia ver muito mais do que os contornos das coisas. Ao redor da cabana estava até bem claro, como uma noite de filme. O branco da neve usava a luz eléctrica e a luz das estrelas para transformar a envolvência num décor algo artificial.

Então eles chegaram. Não se moviam como pessoas normais. Vinham aos esticões e aos tropeções, como robots inadaptados ao terreno. Na aparência eram totalmente humanos, ou quase, mas diferenciavam-se pelos movimentos, pela forma estranha que davam ao corpo, a maneira impossível como mexiam e posicionavam os membros.

«Marionetas animadas», deu consigo a pensar. Alguns pareciam querer aproveitar a neve para deslizar. Outros simplesmente tombavam a cada dois passos, com violência. Levantavam-se de imediato para voltarem a cair no passo seguinte. Depois, já nem se davam ao trabalho de se levantarem, simplesmente saltavam no chão com o corpo na horizontal, como gatos atropelados, acrobaticamente, conseguindo progredir no terreno desta forma.

Não era absurdo ver uma intenção coreográfica naquilo tudo. Pelo menos ela achava que era esse o espírito que animava os visitantes. Talvez porque não estava disposta a ceder ao pânico fácil de se imaginar na presença de uma dúzia de mortos-vivos ou ameaçadores seres mutantes.

No momento seguinte, eles levantaram-se e juntaram-se em círculo, com os braços nos ombros uns dos outros, como uma equipa de râguebi disforme. Segredavam e parecia ouvir-se uma música alusiva à conspiração (de certeza o vento, que entretanto chegara). Ela fechou o livro e apagou a luz. Apetecia-lhe desfrutar aquilo intensamente (e ao mesmo tempo sentiu que era esse o gesto que se esperava dela, como se tudo naquela noite obedecesse a um guião).

Depois, pareceu que uma bomba rebentou no meio do conciliábulo lá fora, cada corpo foi projectado para um lado e os primeiros a conseguirem levantar-se tiveram uma reacção estranha: correram a atirar-se contra a cabana.

De início achou que devia abrir a porta — aquelas pessoas procuravam abrigo, certamente —, mas alguma coisa a fez permanecer à janela, a espreitar. Talvez eles desejassem, na verdade, derrubar-lhe a casa, fazê-la cair sobre si própria, sepultando-a viva. Era uma ideia terrível. Mas ela tinha prazer naquilo, em observar a violência com que os visitantes se atiravam contra a casa, mas também a forma coordenada e bela como o faziam. Eram impactos de uma beleza não convencional, que assentava precisamente na violência mas também na imunidade de que pareciam beneficiar os atacantes. Daquele assalto não resultavam danos físicos para eles. Era possível sentir a força a que era submetida a estrutura de madeira da cabana, mas não havia lesões ou queixumes.

As arremetidas obedeciam a um padrão e ela esteve quase a decifrá-lo, mas acabou por perder o raciocínio. Acontecia-lhe com crescente frequência. Estava velha, não havia nada a fazer.

Um dos visitantes esmagou de súbito o rosto contra a janela, sem a partir, e ela, com um susto, julgou reconhecer aquela cara. Não lhe faltaria mais nada, pensou, tanto trabalho para conseguir um Verão só para si e agora ter conhecidos a tentarem derrubar-lhe a cabana com o próprio corpo. Seria patético, se não fosse trágico.

Estava a tentar concentrar-se nas razões que levariam um grupo de desconhecidos (ela insistia em esperar que o fossem) a encetar um ataque daquele género quando todos lá fora se detiveram, fixando um ponto qualquer para lá do círculo de luz que rodeava o bungalow. Não falavam, mas o seu olhar dizia tudo: o inominável, nada menos do que isso. Ouviam-se passos pesados e uma música tensa.

Após alguns instantes em que apenas soava o uivo do vento, um velho, mais aturdido do que ameaçador, atravessou a neve pisada do quintal. Passou em silêncio pelo grupo petrificado e veio postar-se de joelhos à frente da janela do bungalow. No rosto uma expressão de súplica.

Demorou alguns segundos, mas conseguiu uma identificação. O velho parecia-se assombrosamente com alguém que ela conhecera intimamente. E se ele era quem parecia, esta era uma visita do além: aquele homem já não existia. Tanto quanto conseguia calcular, ele não devia estar ali, não podia estar ali. Teve um suspiro de enfado e deixou-se cair no sofá. Pior do que a visita de conhecidos era a visita de conhecidos mortos.

Passados uns instantes, uma voz sussurrou-lhe na cabeça e ela sobressaltou-se. A voz dizia-lhe: Maria, agora sais da cabana e abraça-lo.

Que demónios significava isto? Que epifania absurda era esta? Quem lhe falava? Que divindade não invocada lhe dava ordens? Tentou abafar aqueles murmúrios tapando os ouvidos com as mãos e nesse momento percebeu que tinha um auricular enfiado numa das orelhas, era dali que vinha voz.

Não pôde pensar mais sobre este estranho facto porque lá fora um dos outros visitantes, aquele que se tinha encostado ao vidro, saiu do seu torpor e começou a mexer-se freneticamente, como se possuído por um demónio ou tomado por um feroz ataque epiléptico. De novo lhe pareceram familiares a pessoa e os movimentos que ela impingia ao corpo.

Era um homem jovem, de traços orientais, e fazia coisas assombrosas com o seu corpo. Parecia ter a capacidade de o transformar, dar-lhe novas e sempre diferentes formas. Esticava-se e parecia uma pessoa alta, de longos membros, ou encolhia-se até ao chão e não era mais do que um pequeno monte de roupa enrugada sem nada dentro; erguia-se de novo como uma pessoa franzina, pouco mais do que um cadáver emagrecido, e no momento seguinte ficava largo de ombros, os músculos recortados e imponentes.

Ela lembrava-se de algo assim. Um solo de dança contemporânea num dos espectáculos da sua antiga companhia. Pensou, com indesejada saudade, que até o rapaz lhe parecia o mesmo, também o seu colega era oriental, sul-coreano. Depois teve um sobressalto: aquele não parecia o Yun Jung — era ele.

«Oh, meu Deus!», disse para si própria. A sua cabeça estava mesmo confusa, já não conseguia distinguir a realidade das fantasias. Envelhecer desta forma era cruel. Olhou à volta e algumas coisas começaram a fazer outro sentido: a cabana era parte de um cenário, as estrelas não passavam de projectores de luz e aqueles lá fora eram o restante elenco da companhia, onde ela, aos oitenta anos, continuava a ter um papel. As suas memórias mais recentes eram apenas o guião da própria peça. Não estava retirada para passar o Verão na província, estava a meio de uma representação. Algures para lá das luzes ficava a plateia e o público assistia impavidamente à sua confusão mental.

Ou seria esta a sua fantasia? Alimentava afinal saudades e banhava tudo à sua volta com as cores do afecto, dava novos rostos às pessoas e às coisas? E se fossem lobos ou algo pior aquilo que rodeava a cabana?

A voz soou de novo na sua cabeça, como um ponto a segredar-lhe as deixas, um expediente a que nos últimos tempos tinha de recorrer para conseguir fazer o seu papel. Não tinha a certeza de ser isto a verdade — o seu espírito estava dividido —, mas desta vez obedeceu, não conseguia já resistir. Saiu da cabana com inquietação e dirigiu-se ao velho de joelhos.

A voz indicou-lhe que devia tomar-lhe o rosto nas mãos e ela fê-lo. Aquele era o seu marido. Fosse qual fosse a realidade, causava-lhe enorme embaraço ele estar ali. Era doloroso enfrentá-lo novamente. No auricular soaram as palavras que ela agora devia dizer. Não se falava muito, na dança contemporânea, não tanto como no teatro, mas a sua era uma companhia que estava para lá dos géneros.

«Maria, agora dizes: ‘Que fazes aqui? Não te disse que nunca te amei? Que só estive contigo aqueles anos todos porque não tive coragem de te abandonar?’»

Esta era a deixa, se isto fosse uma representação. Mas estas eram também as palavras que ela diria se estivesse retirada no meio de uma cabana e o marido morto resolvesse aparecer-lhe. A realidade era uma coisa difusa, sem fronteiras, mutável. Apenas as palavras eram verdadeiras, fosse qual fosse o contexto onde ela as devia pronunciar.

Olhou profundamente para o marido e percebeu a crueldade do que ia fazer — mas foi incapaz de conter as palavras, de deixar por dizer o que estava escrito. No papel do guião ou nas profundezas da sua alma.


[Inspirado pela peça “32 Rue Vandenbranden”, da Peeping Tom).]

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

De donde és?

Aquelas duas aldeias eram conhecidas pelo afinco que os habitantes tinham à terra, particularmente a rapaziada mais nova. Numa altura em que a juventude estava toda a emigrar, os moços e as moças dali permaneciam, raramente se afastando das povoações, aliás. Também eram conhecidos pela timidez, mas nunca ninguém ligou muito as duas coisas. Ou se ligavam era com um raciocínio incompleto: imaginavam que a timidez se devia a nunca terem saído, a isso lhes ter gravado no carácter um proverbial acanhamento provinciano. A verdade era um pouco diferente. Não saíam porque tinham vergonha de responder se alguém nos longes onde fossem parar lhes perguntasse de onde eles eram — e eles eram, sem culpa disso mas embaraçados por isso, do Monte das Pitas e do Sítio da Éguas.


(Ideia de e dedicado a A. P.)

sábado, 27 de julho de 2013

Um violento «caso acontecido»

Vinha do monte, com lenha às costas. Uma mulher acusou-o de lha ter roubado. Ele chamou pelo pai, que modelava louça na roda. Ela chamou pelo filho, que estava na cama, adoentado, junto de suposta amante. Discutiram. O oleiro recebeu do enfermo uma sacholada que lhe abriria a cabeça. Tentaram curá-lo pondo-lhe açúcar na irremediável ferida. «Eu hei-de matar aquele ladrão!» — foram as suas últimas palavras, três vezes ditas. O «ladrão» morreu na cadeia, um mês depois.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Coisas da memória

Há mais de sessenta anos, em noite festiva, enquanto ela dançava com um moço, um outro aproximou-se e disse-lhe: «Compromisso!» Uma faca surgiu então, indo instalar-se no ventre do intruso. A jovem fugiu. De cada vez que lhe ouço o testemunho, há variantes e revelações. Só parecem destinados a manter-se a irrupção do «compromisso» e o movimento da faca. A memória tem destas coisas: rasga silêncios e mutila sombras, porque a habitam palavras decisivas e objectos cortantes.

sábado, 13 de julho de 2013

Primeiros parágrafos…

…de um falhanço dos idos de Março

(É longo, desculpem lá ou passem à frente)


«Lembram-se do esqueleto que há uns seis meses alvoroçou a cidade? Era eu. Sei que é difícil de acreditar, até porque o esqueleto usava barba. Mas era eu. Hoje estou muito melhor, comi qualquer coisa entretanto e barbeei-me, voltei a usar roupa. Mas as fotos que viram nos jornais eram minhas. As tíbias, os fémures, os rádios, as falanges, todo o chocalhante conjunto era meu. Até o chapéu era meu. Sim, reconheço, podia ser de um cigano. Porém, era meu. Tomaram-me por um junkie, mas isso era uma acusação sem cabimento. Naquela altura eu já tinha deixado de me injectar, as agulhas partiam-se-me nos ossos. Bebia, de facto, mas não muito. Um pouco menos do que o Rasputine. Eu sei que ele era ligeiramente maior do que eu e isso faz diferença. Ok, umas três vezes maior do que eu. Sou um tipo baixo. Um baixote. Um minorca. E magro (agora já nem tanto). E louro. Se fosse moreno, teria sido mais difícil ser baixo. Era demasiado azar para se continuar vivo. Um gajo louro tem outro lustro. E depois há os olhos azuis. As mulheres quando olhavam para mim não viam um gajo baixo, estavam demasiado ocupadas a derreterem-se com o lourinho de olhos azuis. Quando finalmente se dispunham a medir-me a altura, faziam-no aos palmos e era raro passarem dos tomates. De resto, eu tinha ali uma surpresa para elas, uma a que se agarravam de mãos e dentes. Um tipo pode ser baixo e ter um pau comprido. As leis da física não o impedem. Fizeram-se testes. Eu fiz testes, na adolescência. No início, quando percebi que tinha uma coisa telescópica entre as pernas que em certas alturas não parava de crescer, assustei-me. Achei que aquilo me podia desequilibrar. Nunca a deixava crescer sem me encostar com uma mão a uma parede. Não é incomum que os putos o façam, embora nem todos limpem a parede depois. Mas fui ganhando confiança, como os funâmbulos se adaptam à vara que os equilibra no arame. Se pensam em termos gráficos, talvez estejam com dúvidas sobre a funcionalidade do sistema, mas a representação não esclarece tudo. Há os glúteos, que se desenvolvem com o crescimento. Imaginem isto: as mamalhudas não passam o tempo a cair de queixos, pois não? Bem, algumas passam, é verdade. O que quero dizer é que o nosso sistema muscular se adapta à carga com que tem de lidar. Não era um daqueles tipos com bíceps hiperdesenvolvidos porque não precisava assim muito dos braços. Isto pode deixar confuso um alferes, quando se vai para a tropa e se fracassa nas flexões na barra, mas não as mulheres. Pelo menos há vinte anos não. Entretanto tive de me adaptar, frequentar ginásios, arranjar-lhes uns bíceps que pudessem apalpar. O centro gravitacional de um corpo não muda com as épocas e os gostos, mas por vezes tem de se arranjar uns pontos de apoio para as mãos.»

Decerto alguns de vocês pensaram que é preciso um tipo descer muito na vida para se passear pelas ruas nu e com a barba por fazer, os ossos mal seguros por umas pelicas de frango depenado. Outros, pelo contrário, ficaram encantados com a publicidade que eu tive, aquilo era uma coisa que vocês podiam fazer. Afinal, toda a gente anda a tentar dar nas vistas, a desenvolver uma nova metafísica da existência: apareço, logo existo. Mas não escondo que tinha descido na vida. Tinha descido às profundezas do Inferno e não foi porque me enganasse no caminho quando tentava vernianamente descobrir o centro da Terra — não tenho a sorte nem o espírito aventureiro, ou a astúcia, de um Pedro Álvares Cabral. Se fui parar ao Inferno foi porque meti no GPS essas exactas coordenadas e obedeci com satisfação a cada directiva dada pela menina concupiscente do TomTom.

Tudo começou vinte anos antes, quando num dia solarengo de Fevereiro, desses em que nos atrevemos a mergulhar no oceano apesar do risco de síncope cardíaca, fui arrebanhado para a vida militar. Se havia alguém que não fora concebido para a tropa, era eu: o único desporto que tinha feito até à data era o sprint, quando tentava fugir do ;bullying na escola. Sobre a porta onde fazíamos fila para entrar, como estúpidos cordeiros voluntários para o sacrifício, havia uma sigla, «EPI», e só mais tarde soube que não significava «Escola Prática de Infantaria» mas sim «Entrada Para o Inferno». Claro que o Inferno ali, no átrio barroco do antigo convento, era ainda cálido, apenas chamuscava, era mais fanfarronice militar do que realidade. Tinha muito de Comboio Fantasma, onde umas figuras com insígnias e galões procuravam desempenhar o papel de almas penadas e monstros avulsos. Um tipo assustava-se e ria-se, tudo ao mesmo tempo. Os furriéis e os alferes logravam ser tão ridículos, nas suas fardas engomadas e nas suas botas luzidias, quanto certas representações naïves da morte com gadanhas ergonomicamente erradas.
A mim a tropa trazia-me entre o divertido e o entediado, mas frequentemente estava apenas irritadiço. O regulamento e os horários eram absurdos. Quando às seis da manhã acordava com o matraquear das giletes no mármore oxidado dos lavatórios dava graças aos céus por ter sido brindado com um rosto que naquela altura ainda era quase imberbe e onde a escassa penugem loura resultava invisível aos olhos de orangotango macho e míope dos graduados. Para eles, eu não tinha barba. Tinha bochechas como nádegas de gaja, onde apetecia assentar a mão, e julgavam que me incomodavam com isso. Eu ria-me como se eles tivessem contado uma anedota e eles diziam que não era para rir e davam-me um calduço. Parecia-me paga aceitável para o privilégio de me levantar seis dias por semana mais tarde do que os outros. Por vezes acordava antes do ritual da barba, porque havia uns imbecis cujo zelo pela pontualidade na parada os fazia levantar ainda mais cedo e, no seu nervosismo, não conseguiam abrir os cacifos metálicos sem parecer que os estavam a assaltar. Eles tinham a chave do seu próprio cacifo, mas abanavam-no e batiam-lhe como quem está a ser perseguido pelo Freddy Krueger e não consegue acertar com a chave na fechadura. Depois de finalmente o abrirem, não o sabiam fechar sem bater com as portas, metidos naquela sua cabeça e naquele seu mundinho onde só havia lugar para a obsessão com as horas e a obediência cega à hierarquia.
Depois de sermos admitidos naquele patético clube masculino, tinham-nos cortado ainda mais rente o cabelo e, num patamar de uma larga escadaria, fizemos nova fila para receber o fardamento, tudo nos previsíveis tons de verde azeitona, incluindo a roupa interior, as meias e os lenços de assoar (excepto o equipamento desportivo, que era de um branco pronto a aceitar as manchas de suor, e as botas, pretas como pneus novos de chaimite parafinados). Ao contrário da maioria das lojas, ali não se aceitavam trocas, pelo que éramos obrigados a lembrar na hora os nossos tamanhos ou a viver com o remorso de os ter esquecido — e com as peças demasiado apertadas ou demasiado largas. Mas ter boa memória não chegava: as botas que recebi eram do número certo, só que, numa prova de que o rigor militar é um mito, isso não significou que elas se ajustassem aos meus pés. Nas semanas seguintes, até ser autorizado a ir a casa, tive de usar em simultâneo todos os pares de meias que me calharam para conseguir caminhar sem deixar as botas para trás, e isso não favoreceu em nada a atmosfera empestada da caserna.
De resto, cedo comecei a desinteressar-me das rotinas militares. Havia um mínimo que eu cumpria, que era permanecer no quartel, fora disso não me preocupava demasiado o que indicava o menu do dia, não estava para me aborrecer com detalhes. Os militares eram, por exemplo, muito ligados à etiqueta, falsamente convencidos daquela treta de oficial & cavalheiro. Diziam que não se misturavam peças do uniforme número dois (o de saída) com o número três (o de trabalho ou operacional) e muito menos com o de ginástica. A continência só se fazia com a cabeça coberta. Não se ficava de cabeça coberta no refeitório. Nunca se pegava numa arma enquanto se envergava a alvura do equipamento de ginástica (como se assim vestidos nos tornássemos anjos, seres incompatíveis com a violência da G3). Enfim, um rol de limitações e exigências que poderia baralhar um tipo desatento como eu era. Como resultado disto, não foram raras as vezes em que apareci na parada, com o atraso do costume, embrulhado em branco-noiva quando todos estavam de verde-oliva ou vestido para ir às putas quando havia ordem de permanência de fim-de-semana.»

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Shoplifters Of The World Unite*

Conheci-o nos anos oitenta. Tinha o queixo afiado e insolente de Morrissey e dançava como ele. A teatralidade do cantor britânico era para a terra uma estranheza — vagamente sedutora para alguns, repulsiva ou embaraçosa para os outros. Para Pierre era uma segunda pele, mexia-se nela com o à-vontade do original que emulava e a quem servia de arauto nas berças. O facto de ter estado emigrado numa grande metrópole europeia e de ser, ao contrário dos demais, ainda que circunstancialmente, de origens urbanas, facilitava-lhe, claro, a apropriação do imaginário e do guarda-roupa pop. Parecia um excêntrico, mas era apenas alguém que adoptara um estilo. De uma sofisticação vulgar noutras paragens, assaz extravagante na província.
Na pista de dança dir-se-ia exibicionista, mas só porque o resto dos noctâmbulos dançávamos como tímidos e artríticos. Ele entregava-se à música com o mesmo ar compungido ou desesperado de Morrissey, agarrando os próprios ombros, colocando dramaticamente as costas da mão na testa, virando os olhos aos céus, vivendo emocionalmente o que ouvia nas colunas da discoteca, sobretudo se o que ouvia era The Smiths.
A amizade com os autóctones teria de ocorrer, porque Pierre, agora domiciliado na terra, era ali inusitado mas não tinha perfil de solitário. Contrastava nos grupos, mas acabaria por frequentar os mesmos sítios e seguir as rotinas clássicas do burgo. Trazia hábitos de consumo de marijuana cosmopolitas, e os posteriores problemas com as drogas que partilhou com parte da juventude indígena pareciam nele mais charmosos e românticos. Quando teve de trabalhar, já numa fase descendente, parecia uma estrela de TV a cumprir uma pena de serviço cívico. Era o único servente de trolha que chegava já de manhã com os jeans arregaçados, e usava o boné com a maior pala de todo o sector local da construção civil. Era dos poucos, na altura, que tomava banho e acertava o penteado entre o final do expediente e as primeiras cervejas da noite.
Algures na viragem do século perdi-lhe o rasto. Já só o via ocasionalmente, à boleia, diziam-me que a caminho do dealer. Chegaram-me rumores, que cobardemente não refutei, que o davam como internado em centros de desintoxicação — como tantos outros, nisto não seria original.
Quando o voltei a ver, de novo magro como o Morrissey de 82, mas agora talvez mais parecido com o Michael Stipe dos anos 2000, careca e consumido como ele, a primeira coisa que notei foi a franqueza do aperto de mão. Delicado mas envolvente. Falámos de música, claro, que ele amava com a mesma intensidade mas com um gosto mais ecléctico. Tinha um programa de rádio e uma mágoa por não ter dinheiro para ir ver todos os concertos de que gostava. Disse isto sem ressentimento, com uma certa humildade, sem o ar desafiante ou provocador que ser pós-punk nos oitenta lhe dava. (Não, não era humildade, era melancolia, realismo dorido.)
Não sei se a minha amizade com Pierre poderia ser agora mais intensa e franca do que há vinte e cinco anos, mas sei que a lembrança do nosso encontro acabou de me comover. Não confundam isto com condescendência ou piedade, nem ele precisa disso nem eu estou em posição de tais sentimentos, seria pretensioso e patético. É talvez um reconhecimento, o ver nele os meus próprios sonhos irrealizados. Ou uma premonição.


* The Smiths, single de 1987

quarta-feira, 6 de março de 2013

Terceira Lei de Newton

Os participantes concentram-se na zona de partida, formando uma multidão compacta e saltitante. Na orla, alguns apoiam-se em muros ou em postes e fazem alongamentos. Todos se agitam, aquecendo os músculos, o que concede àquela massa humana um pulsar nervoso. Há gente com um divertimento ensonado, matinal, e gente já um pouco histriónica. Os mais habituados apenas aguardam o sinal de partida, têm um entendimento burocrático dos prolegómenos. Ela observa uns e outros, tentando decifrar como a vêem a si, em que grupo a inserem. É a sua primeira meia-maratona, mas não gostaria de ser tomada por principiante, treinou muito, nos últimos meses tem vivido para a corrida, está cada vez mais resistente e mais rápida. Infelizmente, os seus pensamentos sobre ele não estão menos persistentes ou perturbados.
Inscreveu-se não para se divertir brincando aos atletas — integrando-se nos que apenas participam solidariamente, pela causa ou pela saúde, e desistem antes do fim, gozando com a própria baixa forma —, mas como consequência natural do treino, da necessidade de correr. E da recomendação do psicanalista, que, talvez por defeito de diagnóstico, viu virtudes na sua dedicação ao desporto. Embora não tenha exageradas ilusões quanto às suas capacidades de atleta, está decidida a competir, a disputar um lugar honroso. Ter objectivos destes é bom para si, é-lhe dito. E é tudo o que lhe resta, pensa com amargura.
O percurso, que sai do perímetro rural da cidade e termina na praça do município, há-de atravessar o parque onde ela treina. E esse momento será o derradeiro teste. Estará, quinze quilómetros depois, suficientemente motivada para chegar à meta numa boa posição e ficar feliz com isso? Ou a passagem pela entrada da ponte gorará todo o trabalho motivacional e ela regressará ao ponto de partida sem concluir a prova?
Ouve-se o apito e ela sai, primeiro num passo saltitante que não avança, aguardando que o grupo se distenda e os amadores abram alas, e depois alcançando progressivamente um ritmo que a mantém na peugada do pelotão de profissionais. Corre a primeira hora junto ao rio, numa zona onde ele já ganhou caudal e largura, e os seus pensamentos vão frequentemente mais rápidos, vogando contra a corrente, até ao local do desencanto. À chegada ao parque, contudo, mantém-se próxima da cabeça da corrida sem acusar demasiado o desgaste, e isso fá-la acreditar na possibilidade de ficar entre os primeiros (pelo menos entre as primeiras). É a única alegria em muito tempo. Talvez possa haver outras razões para se correr. Para se viver. Põe pela primeira vez toda a energia e concentração no esforço de chegar à meta. Passa pela ponte sem consciência total de passar por ela. Na praça, há uma outra multidão à espera dos atletas. Familiares, amigos, curiosos, imprensa. Há ovações quando chegam os vencedores da prova e, não muitos minutos depois, há ovações quando ela conquista o terceiro lugar do seu escalão.
À sua volta vê sorrisos e entre os sorrisos está o dele. As pessoas batem palmas, e ele bate palmas. Bate-lhe palmas. Há outros conhecidos a bater-lhe palmas, divertidos e vagamente orgulhosos da sua façanha, mas é a ele que ela se dirige, meio entontecida com o cansaço, vivendo a alucinação de o ver aplaudi-la e sorrir-lhe. Numa imitação de outros atletas, quer abraçá-lo, lançar-se-lhe ao pescoço, partilhar a sua felicidade, que já nem sabe muito bem qual é, mas ele intercepta-lhe as mãos a meio do percurso, oferece resistência e por momentos são a figura viva da terceira Lei de Newton — e naquele braço de ferro ela pondera o triatlo.


P.S. Terceira parte de uma narrativa, que depois de revista a segunda parte, se poderia chamar “Uma carreira no desporto”, ou algo parecido.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Segunda Lei de Newton

Ainda pensa nele com frequência, e alimenta com denodo aquela ideia tola de que um dia se vão encontrar à entrada da ponte. Volta lá todos os sábados, à mesma hora, com a desculpa do trekking. No início imaginava-o a ir até ali nem que fosse uma vez por curiosidade, como se também ele ocupasse os seus pensamentos com ideias daquelas. A literatura dedica-se frequentemente a testar realidades alternativas, a averiguar como seriam as coisas se diferentes opções fossem tomadas, diferentes forças tivessem agido, a conceber novos destinos e desfechos para eventos conhecidos do público ou do autor. Pode dizer-se muitas vezes que um romance é uma variação sobre um tema e que, sendo as variações infinitas, os temas o não são. No caso dela, isto é uma verdade insofismável: o seu único tema é o encontro malogrado.
Acontece que ela não é uma escritora, apenas uma pessoa um pouco perdida, pelo que o exercício ficcional reiterado não lhe traz elogios da crítica, mas a censura branda do psicanalista. Imaginá-lo uma alma gémea, alguém que não resiste um dia a vir até ali interrogar-se sobre que rumo teria tomado a sua vida se tivesse comparecido ao encontro, faz parte da patologia dela e é uma nova motivação para a saída de sábado à tarde. Que se junta à já de si suficiente tendência para remoer frustrações com método.  
Hoje, porém, está prestes a descobrir que as coisas podem mudar. Parou como sempre na entrada da ponte, para consultar o telemóvel e perscrutar o horizonte num gesto ritual, evocativo, fingindo uma pausa para beber água e retomar o fôlego. Sempre pensou que se o encontrasse a meio de uma das suas caminhadas a visão dele seria suficiente para a deter. Mas, porque ela está de momento parada e ele vem com o braço pelo ombro de uma qualquer, o princípio fundamental da dinâmica será demonstrado de forma diferente: quando ela os vê, sente um desejo súbito de experimentar o jogging e sai a correr na direcção da força que emana do casal, mas em sentido contrário à localização deles.
Se a força gravitacional dos corpos pode ser uma boa imagem para descrever o amor, a segunda Lei de Newton pode talvez usar-se com igual propriedade para assinalar a evolução desportiva de uma rapariga magoada.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Primeira Lei de Newton

O ritmo dos seus passos abranda com a subida, mas não é subida que a faz abrandar. À entrada da ponte pára, como se estivesse indecisa quanto ao caminho a escolher. Mas não está. Olha em volta, mas não há sinal da silhueta dele no horizonte. Consulta o telemóvel, e não tem nenhuma mensagem. Não está segura de querer ter uma mensagem. Podia ser uma do género «Estou atrasado, não demoro», mas também podia ser pior. Um evasivo «Não posso» ou um assertórico «Não vou, foi um engano.» Afinal, as coisas não haviam ficado assim tão claras. Tinham combinado às duas no parque, mas quanta convicção há num «sim»? Ela não lhe mandou nenhum sms a pedir-lhe que confirmasse, temia dar-lhe uma oportunidade de agora responder «não». É mais fácil responder do que tomar a iniciativa. Por vezes também é mais fácil aparecer a um encontro do que dizer-se que não se quer ir a esse encontro. A inércia dos corpos e da vida. Ela deposita nesse princípio da dinâmica as suas últimas esperanças, se tudo o resto falhar. Tem esperança que ele apareça nem que seja para não se dar ao trabalho de faltar.
Consulta de novo o horizonte e o ecrã do telemóvel, mas não há sinal dele, nenhuma das suas manifestações possíveis tem lugar. Apenas a passagem do tempo, assinalada com quatro dígitos que há muito deixaram de ser 14:00.
Então começa a descer o caminho pelo outro lado e os seus passos vão acelerando. Como uma bola que, depois de quase se deter ao chegar ao cume, ganhasse de novo velocidade na descida, a gravidade vencendo o atrito. Em poucos minutos adopta um passo furioso, como o daquelas outras raparigas que vão ao parque para caminhar, gastar calorias em marchas vigorosas, de fato de treino justo, garrafa de água na mão e um tagarelar ofegante. Ao fim de um quarto de hora de caminhada, descobrindo centenas de metros depois prazeres insuspeitados no esforço físico e remoendo o despeito amoroso, consegue-se imaginar a fazer aquilo para o resto dos seus dias: tornar-se viciada em caminhadas e presa a um encontro que não ocorreu. Não é preciso muito: umas sapatilhas com bom piso e um espírito romântico obsessivo, também ele obediente, na sua persistência, à primeira Lei de Newton.