[Depois dos posts “Dança contemporânea” e “A última dança”, impunha-se publicar aqui este conto.]
Ninguém está à espera que lhe tentem derrubar a casa, sobretudo se for apanhado lá dentro, mas foi isso que lhe aconteceu naquela noite. Mudara-se para a província no início da semana com o objectivo de passar o Verão. Não tinha exactamente um projecto a que se entregar, nada mais do que uma mala cheia de livros e a necessidade absoluta de não ver pessoas, pessoas conhecidas, pelo menos.
Escolheu uma vila pequena sem outros atractivos além de uma paisagem discreta e um festivalzinho de música clássica num fim-de-semana de Agosto (reparar no festival fora uma pequena cedência sua). Alugou por oito semanas o bungalow de madeira com uma lareira e um alpendre virado para um vale profundo. Ficava nos arredores da vila e fora o único a ser erigido de um complexo turístico falhado.
A cabana não estava nas melhores condições, era frágil, mas tinha conforto suficiente, mais do que muitas casas da povoação. Usaria o alpendre tanto quanto possível. Quando não estivesse ali sentada a ler os seus livros, andaria a tentar perder-se pelos montes ou teria ido fazer as refeições à vila, zelando para não criar laços na terra. Por uma vez na vida, estava-se pouco lixando para a educação ou para a cordialidade. Seria a velha antipática e egoísta que tinha direito a ser.
Bem, talvez não tivesse esse direito. Ou outros. Não tinha sido exactamente o melhor dos seres humanos. Mas, que diabo, quem poderia atirar a primeira pedra? Não havia seres humanos bons e ela queria mesmo que se fodessem todos (estava velha, podia, finalmente, usar o verbo foder). Se lhe entregassem as chaves de um arsenal nuclear nos momentos de ira, que agora eram cada vez mais frequentes, ela usá-las-ia.
Tinha sonhos apocalípticos, ultimamente. Via-se a deambular pelo mundo como o último habitante à face da terra. Não como naquelas películas catastróficas, mas optimistas, que deixam no ar uma possibilidade de recomeço depois da purga, que não resistem a revisitar o mito de Adão e Eva. Nada disso. Os sonhos eram seus e ela sobrevivia, mas apenas porque os sonhos, como as frases, precisam de um sujeito.
Não lhe desagradava, de qualquer modo, ser a testemunha do fim, a última pessoa viva. Ou uma das duas últimas pessoas vivas — se algum dia conseguisse enlevar-se em sonhos românticos. Teria piada, sonhar com um homem patético (todos os homens são patéticos) a fazer-lhe a corte depois do holocausto. A ela, à Eva sem útero. E sem ovários.
Acreditaria num Deus que se permitisse a deliciosa ironia de ser ela a última fêmea viva. (Mesmo que não lhe tivessem retirado todo o aparelho reprodutivo, era agora demasiado velha para assegurar a manutenção da espécie.) Dar-se-ia bem com a ideia de que morria nela toda a esperança da humanidade, ainda que reconhecesse ser esta uma ideia vingativa.
Na terceira semana começou a nevar. Estava a tarde a meio e ela apenas se deu ao trabalho de achar ridícula uma coisa daquelas, nevar em pleno Verão, com aquele calor. Era-lhe indiferente. A lareira estava apetrechada, caso a temperatura também baixasse, e havia mais lenha no coberto das traseiras do bungalow. Tinha a sua desculpa, escusava assim de se censurar por ficar em casa em vez de caminhar pelas redondezas (gostava do exercício físico, tivera sempre o culto do corpo, do movimento, mas agora já não divisava interesse nisso).
O crepúsculo foi belo, teve de admitir. Duas forças em oposição: a noite que caía e a neve que teimava em manter os campos e os montes iluminados. Assistiu ao combate de rosto colado na janela e livro esquecido nas mãos. A noite ganhou, naturalmente, mas não foi uma vitória completa. Não havia trevas, apenas uma penumbra que permitia ver muito mais do que os contornos das coisas. Ao redor da cabana estava até bem claro, como uma noite de filme. O branco da neve usava a luz eléctrica e a luz das estrelas para transformar a envolvência num décor algo artificial.
Então eles chegaram. Não se moviam como pessoas normais. Vinham aos esticões e aos tropeções, como robots inadaptados ao terreno. Na aparência eram totalmente humanos, ou quase, mas diferenciavam-se pelos movimentos, pela forma estranha que davam ao corpo, a maneira impossível como mexiam e posicionavam os membros.
«Marionetas animadas», deu consigo a pensar. Alguns pareciam querer aproveitar a neve para deslizar. Outros simplesmente tombavam a cada dois passos, com violência. Levantavam-se de imediato para voltarem a cair no passo seguinte. Depois, já nem se davam ao trabalho de se levantarem, simplesmente saltavam no chão com o corpo na horizontal, como gatos atropelados, acrobaticamente, conseguindo progredir no terreno desta forma.
Não era absurdo ver uma intenção coreográfica naquilo tudo. Pelo menos ela achava que era esse o espírito que animava os visitantes. Talvez porque não estava disposta a ceder ao pânico fácil de se imaginar na presença de uma dúzia de mortos-vivos ou ameaçadores seres mutantes.
No momento seguinte, eles levantaram-se e juntaram-se em círculo, com os braços nos ombros uns dos outros, como uma equipa de râguebi disforme. Segredavam e parecia ouvir-se uma música alusiva à conspiração (de certeza o vento, que entretanto chegara). Ela fechou o livro e apagou a luz. Apetecia-lhe desfrutar aquilo intensamente (e ao mesmo tempo sentiu que era esse o gesto que se esperava dela, como se tudo naquela noite obedecesse a um guião).
Depois, pareceu que uma bomba rebentou no meio do conciliábulo lá fora, cada corpo foi projectado para um lado e os primeiros a conseguirem levantar-se tiveram uma reacção estranha: correram a atirar-se contra a cabana.
De início achou que devia abrir a porta — aquelas pessoas procuravam abrigo, certamente —, mas alguma coisa a fez permanecer à janela, a espreitar. Talvez eles desejassem, na verdade, derrubar-lhe a casa, fazê-la cair sobre si própria, sepultando-a viva. Era uma ideia terrível. Mas ela tinha prazer naquilo, em observar a violência com que os visitantes se atiravam contra a casa, mas também a forma coordenada e bela como o faziam. Eram impactos de uma beleza não convencional, que assentava precisamente na violência mas também na imunidade de que pareciam beneficiar os atacantes. Daquele assalto não resultavam danos físicos para eles. Era possível sentir a força a que era submetida a estrutura de madeira da cabana, mas não havia lesões ou queixumes.
As arremetidas obedeciam a um padrão e ela esteve quase a decifrá-lo, mas acabou por perder o raciocínio. Acontecia-lhe com crescente frequência. Estava velha, não havia nada a fazer.
Um dos visitantes esmagou de súbito o rosto contra a janela, sem a partir, e ela, com um susto, julgou reconhecer aquela cara. Não lhe faltaria mais nada, pensou, tanto trabalho para conseguir um Verão só para si e agora ter conhecidos a tentarem derrubar-lhe a cabana com o próprio corpo. Seria patético, se não fosse trágico.
Estava a tentar concentrar-se nas razões que levariam um grupo de desconhecidos (ela insistia em esperar que o fossem) a encetar um ataque daquele género quando todos lá fora se detiveram, fixando um ponto qualquer para lá do círculo de luz que rodeava o bungalow. Não falavam, mas o seu olhar dizia tudo: o inominável, nada menos do que isso. Ouviam-se passos pesados e uma música tensa.
Após alguns instantes em que apenas soava o uivo do vento, um velho, mais aturdido do que ameaçador, atravessou a neve pisada do quintal. Passou em silêncio pelo grupo petrificado e veio postar-se de joelhos à frente da janela do bungalow. No rosto uma expressão de súplica.
Demorou alguns segundos, mas conseguiu uma identificação. O velho parecia-se assombrosamente com alguém que ela conhecera intimamente. E se ele era quem parecia, esta era uma visita do além: aquele homem já não existia. Tanto quanto conseguia calcular, ele não devia estar ali, não podia estar ali. Teve um suspiro de enfado e deixou-se cair no sofá. Pior do que a visita de conhecidos era a visita de conhecidos mortos.
Passados uns instantes, uma voz sussurrou-lhe na cabeça e ela sobressaltou-se. A voz dizia-lhe: Maria, agora sais da cabana e abraça-lo.
Que demónios significava isto? Que epifania absurda era esta? Quem lhe falava? Que divindade não invocada lhe dava ordens? Tentou abafar aqueles murmúrios tapando os ouvidos com as mãos e nesse momento percebeu que tinha um auricular enfiado numa das orelhas, era dali que vinha voz.
Não pôde pensar mais sobre este estranho facto porque lá fora um dos outros visitantes, aquele que se tinha encostado ao vidro, saiu do seu torpor e começou a mexer-se freneticamente, como se possuído por um demónio ou tomado por um feroz ataque epiléptico. De novo lhe pareceram familiares a pessoa e os movimentos que ela impingia ao corpo.
Era um homem jovem, de traços orientais, e fazia coisas assombrosas com o seu corpo. Parecia ter a capacidade de o transformar, dar-lhe novas e sempre diferentes formas. Esticava-se e parecia uma pessoa alta, de longos membros, ou encolhia-se até ao chão e não era mais do que um pequeno monte de roupa enrugada sem nada dentro; erguia-se de novo como uma pessoa franzina, pouco mais do que um cadáver emagrecido, e no momento seguinte ficava largo de ombros, os músculos recortados e imponentes.
Ela lembrava-se de algo assim. Um solo de dança contemporânea num dos espectáculos da sua antiga companhia. Pensou, com indesejada saudade, que até o rapaz lhe parecia o mesmo, também o seu colega era oriental, sul-coreano. Depois teve um sobressalto: aquele não parecia o Yun Jung — era ele.
«Oh, meu Deus!», disse para si própria. A sua cabeça estava mesmo confusa, já não conseguia distinguir a realidade das fantasias. Envelhecer desta forma era cruel. Olhou à volta e algumas coisas começaram a fazer outro sentido: a cabana era parte de um cenário, as estrelas não passavam de projectores de luz e aqueles lá fora eram o restante elenco da companhia, onde ela, aos oitenta anos, continuava a ter um papel. As suas memórias mais recentes eram apenas o guião da própria peça. Não estava retirada para passar o Verão na província, estava a meio de uma representação. Algures para lá das luzes ficava a plateia e o público assistia impavidamente à sua confusão mental.
Ou seria esta a sua fantasia? Alimentava afinal saudades e banhava tudo à sua volta com as cores do afecto, dava novos rostos às pessoas e às coisas? E se fossem lobos ou algo pior aquilo que rodeava a cabana?
A voz soou de novo na sua cabeça, como um ponto a segredar-lhe as deixas, um expediente a que nos últimos tempos tinha de recorrer para conseguir fazer o seu papel. Não tinha a certeza de ser isto a verdade — o seu espírito estava dividido —, mas desta vez obedeceu, não conseguia já resistir. Saiu da cabana com inquietação e dirigiu-se ao velho de joelhos.
A voz indicou-lhe que devia tomar-lhe o rosto nas mãos e ela fê-lo. Aquele era o seu marido. Fosse qual fosse a realidade, causava-lhe enorme embaraço ele estar ali. Era doloroso enfrentá-lo novamente. No auricular soaram as palavras que ela agora devia dizer. Não se falava muito, na dança contemporânea, não tanto como no teatro, mas a sua era uma companhia que estava para lá dos géneros.
«Maria, agora dizes: ‘Que fazes aqui? Não te disse que nunca te amei? Que só estive contigo aqueles anos todos porque não tive coragem de te abandonar?’»
Esta era a deixa, se isto fosse uma representação. Mas estas eram também as palavras que ela diria se estivesse retirada no meio de uma cabana e o marido morto resolvesse aparecer-lhe. A realidade era uma coisa difusa, sem fronteiras, mutável. Apenas as palavras eram verdadeiras, fosse qual fosse o contexto onde ela as devia pronunciar.
Olhou profundamente para o marido e percebeu a crueldade do que ia fazer — mas foi incapaz de conter as palavras, de deixar por dizer o que estava escrito. No papel do guião ou nas profundezas da sua alma.
[Inspirado pela peça “32 Rue Vandenbranden”, da Peeping Tom).]