Público: «Crimeia pede integração na Rússia»
(Faltam umas aspas naquele verbo, não?...)
Reconhecemos uma alma gémea quando alguém que entra no shopping, depois de puxar para si a grande porta envidraçada, volta a fechá-la e de novo a abre apenas para confirmar que, sim, a porta faz um barulho cómico, humanóide, que apetece ouvir outra vez. Depois da breve pausa na frivolidade do mundo, ele entra e eu saio, sorrindo ambos de portas que adoptam comportamentos desviantes.
Nos meus tempos de adolescente e néscio (com os anos, abandonei a primeira condição), achei assaz progressista, apesar do traje, um franciscano que me incitou a levar o baixo eléctrico para cima de um palco onde se cantavam hinos ao Senhor. Passou-se isto no catolicismo e numa era anterior à editora Flor Caveira, do evangélico Tiago (Guilul) Cavaco. O pioneirismo católico, aliás, havia-se já manifestado quando na década de setenta a Igreja sobrepôs letras de excitação beata a canções de Bob Dylan. E o aggiornamento não mais parou. Hoje, muito modernas formações musicais louvam o Senhor como aos domingos à tarde se louva na TVI a genitália feminina: com vocalista trejeitoso e partenaires gesticulantes, comprimidas em slim jeans ou calças de lycra e t-shirts um número abaixo. (Se não tivesse visto, não seria capaz de imaginar isto.)
A estética e o sentido coreográfico pimba são tão omnipresentes em Portugal quanto Deus Ele Mesmo. E mais influentes. Não admira que a própria Igreja ache natural que, em palco, se declare amor a Cristo com os passos, os gestos, a melodia, o instrumental e os coros que geralmente se usam na TVI para, com trocadilhos e metáforas de baixa extracção, se aludir a fodas, minetes e broches.
De resto, se é popular, a Igreja procura absorver, como sempre fez com qualquer ritual pagão. Que se lixe a estética e a lógica, se isso lhe permitir recensear mais umas almas (importa-lhe mais a estatística das almas do que as suas práticas). Não se pode é a Igreja admirar que os aleluias gritados no apogeu dos cânticos passem a ter outra conotação e o êxtase deixe de ser místico.
P.S.: «E nós… pimba, Senhor», poderia ser uma resposta moderna ao «crescei e multiplicai-vos», não fosse a contracepção.
P.S.2: Já no Natal, poderiam substituir-se as estrofes gastas do «Noite Feliz» por versos mais modernos: «Mas quem será? Mas quem será? Mas quem será / O pai da criança, eu sei lá, sei lá… eu sei lá, sei lá...»
São meia dúzia em volta da mesa de pedra junto ao rio. Geralmente a mesa é usada, em tardes de furo ou gazeta escolar, para umas festas de álcool, para enrolar e partilhar uns charros. Os grupos exclusivamente femininos são talvez menos frequentes, mas lá está a atitude semiclandestina, lá estão os risinhos langorosos e cúmplices, os corpos dobrados em tenda conspirativa sobre o centro da mesa. E no entanto, quando se abre um pouco a corola de adolescentes primaveris, o que aparece a ser transaccionado ali no meio é um banal frasco de verniz de unhas, como num cliché da Ragazza.
O rapaz vem de praticar desporto, calções, t-shirt suada, cabelos molhados, sweatshirt atirada sobre um ombro. As três raparigas aproximam-se entre embaraçadas e conspirativas, com segredinhos e empurrando-se umas às outras. Cortejam-no. De saia ou vestidos coquetes, alguma pintura no rosto, parecem saídas da mesma edição da Ragazza atrás referida. Ou de um quadro mais antigo, de um que tenha fixado a óleo uma tarde bucólica no parque. Porém a oralidade trá-las de volta ao futuro. Tendo talvez sido contrariada, uma delas abandona a discrição, a corte vintage, e dispara à colega um sonoro «vai-te foder, caralho», que o rio devolve em eco. O rapaz não parece sentir que se tenha desfeito o encanto, continua a atrasar o passo e a controlar a distância e os risinhos pelo canto do olho.
Pequeno gangue, vêm subindo a rua. Cortes de cabelo, roupas, calçado, balanço do corpo, tudo de acordo com o modelo rebelde sem causa, vulgo arruaceiro. Param de súbito a conversar animadamente, ruidosamente, belicamente, ocupando metade da via de trânsito e todo o passeio. Os carros ultrapassam-nos em pequeno e conformado slalom. Os peões contornam-nos por fora, como vítimas de bullying fugindo à palmada nas costas. A descer a rua, avanço a direito com a inércia e uma vaga intenção de reivindicar o meu direito a um vector no passeio. Estendo o braço para abrir alas e o distraído rapaz à minha frente estremece de susto, como se acabasse de ser abordado por um assaltante. Desvia-se, cordial, e eu continuo caminho, a rir-me do ridículo. Do meu ridículo.
O Correio da Manhã, esse pândego, considerou uma boa notícia a LER passar (ou regressar) a uma periodicidade trimestral. Pelo menos a seta junto à informação apontava para cima (recebendo como troco uma farpa de Rui Zink no Facebook). Para mim, esta alteração pode de facto ser uma boa notícia: se a revista aumentar o conteúdo, como prometido, e mantiver o preço de 5 euros, talvez, bem contados os trocos, possa voltar a comprá-la.
Mas esta renovação da LER («sem lamentos nem desculpas») só é uma vitória ou uma boa notícia porque estamos demasiado habituados a más notícias. Podemos, nestes tempos de cinza, considerar uma vitória a LER conseguir manter-se, ainda que trimestralmente; podemos considerar uma boa notícia a LER simplesmente não acabar, como seria possível e de certo ponto de vista até provável. Mas estas são as vitórias simbólicas da Resistência, destinadas a manter o moral. Verdadeira vitória e boa notícia sem sombra de eufemismo seria a LER renovar-se e aparecer com «mais páginas, mais reportagens, mais profundidade e densidade» mantendo a edição mensal.
Assim, concluímos apenas que o país não tem dinheiro nem leitores suficientes (ou suficientes leitores com dinheiro, numa versão optimista) para uma revista mensal de livros.
Assim, a muito custo afastamos o motejo: de vitória em vitória até à derrota final.
Muitos anos, circunstâncias, instituições e pessoas contribuíram para o retrocesso da LER à periodicidade trimestral. Paulatinamente, o livro (e não falo em particular do romance) foi banido das televisões, das escolas, das universidades, dos jornais (guetizado em suplementos a que prescreveram uma dieta crescente), dos discursos políticos, das conversas em geral. Uma ou duas gerações de dirigentes partidários e institucionais particularmente plebeias, particularmente representativas da boçalidade e do arrivismo nacionais, foram suficientes para consumar o desaparecimento do livro — e a geração que lhes há-de suceder nem sequer consegue soletrar a palavra.
Considerando retoricamente que há uma saída para a crise, a LER é uma daquelas coisas que já não recuperaremos. A não ser que o país deixe de recrutar ministros e directores-gerais nas jotas, e que os ministros deixem de confundir “representar” com “mimetizar” o povo. A não ser que os intelectuais de direita parem de ter como maiores inimigos os intelectuais de esquerda, e estes, aqueles. São aqui menos relevantes as fracturas entre a esquerda e a direita do que as que existem entre o país e um leitor de livros, e a Resistência bibliófila precisa de todos os intelectuais — os que escrevem no Correio da Manhã e os que escolhem o Correio da Manhã para embrulhar o peixe.
Há uns anos entrevistei Helena Matos numa esplanada da Gulbenkian e, mesmo que a incompetente entrevista que publiquei não dê disso conta, fiquei com a sensação perturbadora de que em alguns momentos estava na presença de um espírito fanático. Por certos assomos de cólera, certas obsessões, certa impiedade. Sacudi a ideia da cabeça mas a passagem do tempo, receio, viria a dar razão ao pressentimento. Na altura fui ter com ela porque gostava da sua iconoclastia no Público, mas hoje verifico com desolação que aquilo que eu achava ser rebeldia tinha muito de facciosismo à espera de vez. Assim que a direita neocon (muitos não gostam do termo, mas desconfio que ela não se importa), na sua versão lusa, subiu ao poder, o que era nela desalinhamento, pensamento politicamente incorrecto, revelou-se engajamento, zelo, farisaísmo. Não necessariamente por fidelidade a um partido ou a um governo, mas a um ideal, ao ideal. A investigadora parecia um ser livre, contestatário, questionador, mas era sobretudo uma opositora (muitíssimas vezes com razão) de quem governava à época. O tempo, que tudo apura, agiu nela empedernindo-lhe (ainda mais) o coração e barricando-lhe as ideias na viela mais obscurantista por onde às vezes andava. Lê-la sobre homossexualidade, arte, direitos dos cidadãos e não a imaginar com bigode e pêra de inquisidor do Santo Ofício, como um ayatollah de calças, é um feito de que já não sou capaz, lamento. O seu retrato grava-no-lo ela a fogo, diligentemente, com requintes e provavelmente orações fervorosas, artigo após artigo, post atrás de post.