segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A intervenção secreta de Ariadne

Almejava esquecer um passado atroz. Decidiu convertê-lo em narrativa. Ocultou-a num ficheiro com palavra-passe. Criou outro. Guardou aí essa palavra-passe. Num terceiro, alojou a do segundo. E assim sucessivamente, rumo ao olvido. Chegado ao milionésimo sétimo, logrou esquecer os dolorosos tempos. Mas também o sentido daquele exercício. Clicou então — gesto fortuito — em «Colar». O vocábulo «fio» adveio à página, garantindo-lhe acesso ao ficheiro anterior. Reentrara no labirinto. Sem o saber, foi avançando em busca de si próprio.

domingo, 29 de setembro de 2013

O meu protesto contra a Comissão Nacional de Eleições

Eis o teor do protesto que submeti à Comissão Nacional de Eleições, contra a própria Comissão Nacional de Eleições:

A queixa é relativa a:
Delegados / Membros de mesa / Assembleias de voto

Contra que entidade(s) se queixa?:
Comissão Nacional de Eleições

Mensagem:
Venho protestar contras as novas regras de colocação das cabines de voto dentro das assembleias de voto.
Quando fui hoje votar (assembleia de voto da antiga freguesia de São Dinis, actualmente integrada na União de Freguesias de Vila Real), reparei que a entrada das cabines de voto estavam viradas para a Mesa da assembleia, e não para a parede, como em actos eleitorais anteriores.
Sendo baixo e franzino, tenho dificuldade em tapar convenientemente os meus boletins do voto com o meu corpo, pelo que me senti desconfortável por ter de votar nessas condições: pelo menos o delegado de uma das listas candidatas estava a menos de 5m de mim. (Não estou a dizer que sequer olhou para o que eu fazia, mas a verdade é que me senti com menos privacidade.)
Ao entregar os meus votos, protestei junto do Presidente da Mesa. Fui informado que tal disposição das cabines de voto estava de acordo com as novas regras (julgo que emitidas pela CNE), tendo-me sido dito que tal visava impedir que algum eleitor fotografasse o seu voto com o telemóvel.
A lei é a lei (não contesto por isso a actuação da Mesa), mas quando a lei é estúpida o cidadão tem o dever de protestar contra a lei. E neste caso a lei é supremamente estúpida!
Qual o mais importante: impedir um hipotético cidadão de fotografar o seu voto, ou garantir que todos os cidadãos votam com privacidade, condição essencial para que o dever cívico de votar seja exercido em liberdade? Quanto a mim, a segunda garantia é bem mais importante para a liberdade e confidencialidade do acto eleitoral.
EXIJO VOTAR SEM CORRER O RISCO DE VEREM O QUE FAÇO POR CIMA DO MEU OMBRO!

Se concordar com este protesto (ou para qualquer outra queixa), pode submeter o seu texto na página da CNE para apresentação de queixas.


Adenda:

Esta foto, disponível no site do Público e, segundo a legenda, relativa às eleições de hoje (não é uma imagem de arquivo), mostra que há pelo menos uma secção de voto no país que mantém a privacidade dos eleitores virando a entrada da cabines de voto para a parede:

Pergunto: foi esta secção que não cumpriu as regras da CNE, ou afinal (ao contrário do que me disseram quando votei) não existem tais regras?

O eleitor de arquétipos

Amigo de dois políticos que eram adversários e se iam submeter ao escrutínio popular, a ambos prometeu, secretamente, o voto. Não lhes mentiu. Sendo platónico, acreditava na existência de Formas matemáticas eternas. No boletim, colocou metade da cruz num quadrado e a metade complementar no outro, esperando a união das duas no Quadrado absoluto, em pleno mundo inteligível. Talvez o desejo se tenha cumprido: nenhum dos dois candidatos venceu. Havia um terceiro — que atraía gente menos idealista.

sábado, 28 de setembro de 2013

O civismo e a caça ao Raposo

«O civismo não nasce no coração dos homens e não está na genética de um povo. O civismo nasce na espada que protege a lei.» (Henrique Raposo, in “Uma cidade sem cães, s.f.f.”, Expresso)

Por acaso, até concordo em boa parte com esta frase de Henrique Raposo. Não concordaria que fosse ele a decidir o que é “civismo” — o homúnculo é demasiado reaccionário (não misturar com conservador) e confunde demasiado os seus interesses e os do country club a que aspira ser membro com o interesse geral para que o deixemos ditar unilateralmente leis para a urbe. Como ele desejaria.
Raposo utilizou a frase num artigo onde revelou a sua utopia («pessoal, intransmissível e impraticável», concedamos-lhe) de cidades sem cães. Eu, por exemplo, também tenho utopias semelhantes, entre as quais as de cidades sem crianças. Parafraseando Henry Fox (ele há-de gostar da versão british do nome, não?, no seu fato de riscado e tudo), cidades onde um sujeito pode estar no parque sem ser interrompido por um puto a rosnar, cidades onde um sujeito não tem de aturar a petulância dos pais, ai, esteja descansado que ele (o puto) não morde, nem lhe berra aos ouvidos, nem desperta em si o instinto assassino da espécie.
Outra das utopias que tenho é a de cidades onde os fumadores não são excepções e são decapitados de cada vez que deitam com o maior desplante a beata ao chão, a enterram na areia da praia ou despejam os cinzeiros dos carros nas bermas das estradas. Mas a maior e mais utópica utopia que tenho é a de cidades sem teenagers e universitários aos berros símios pelas ruas, a partirem garrafas e copos como quem deita a beata por cima do ombro, com a mesma naturalidade dos gestos comuns e aceites pela civitas, a mijarem pela cidade inteira como se a humanidade de que com generosidade nossa ainda os deixamos fazer parte não tivesse inventado a retrete e o recato da retrete, a mijarem-me a porta do prédio com o mesmo à-vontade e conversas imbecis e desprezo que têm nos balneários da escola pública que tanto custou a instituir e que eles não merecem nem em bebés.

Os cães de Raposo são um problema na cidade, evidentemente. Há falta de civismo por parte da uma grande parte dos donos de bichos (que, menos mal, já não põem as suas crianças a cagar no espaço público, embora ainda as ponham a mijar ali com irritante frequência). Há um desprezo egoísta desses mesmos donos pelas pessoas que não simpatizam ou mesmo têm pavor dos bichos que para mim até são geralmente amorosos. A trela ou o açaimo não são imposições da Inquisição, são formas sensatas de procurar o equilíbrio entre quem quer passear os seus bichos e quem a eles tem aversão ou medo. (Ainda que, se pegássemos nas ideias neoliberais para a humanidade e as aplicássemos aos canídeos, devêssemos na verdade soltar todos os animais da terra e deixá-los, como os rafeiros do Lemon Brothers, competir livre e selvaticamente pelo território, pelo mercado, pelas canelas do Raposo.)

Voltando à frase de abertura (até porque tenho de ir trabalhar, o Expresso não paga os meus devaneios), o civismo não nasce, de facto, «no coração dos homens e não está na genética de um povo». Não de todos os homens, não por certo de todo o povo. O próprio Estado de Direito é uma aberração histórica que apenas foi possível implantar porque houve um tempo em que homens bons, cultos, inteligentes, intelectuais e, por um acaso na história da humanidade, sensíveis e solidários, houve um tempo, dizia, em que este género de homens tinha acesso ao poder. Hoje, os partidos e os imbecis que lhes permitem a existência, os mesmos imbecis que amanhã, 29 de Setembro, vão eleger dinossauros, seus delfins ou siameses, não estão para aturar homens destes.

Não digo que o civismo «nasce na espada que protege a lei», mas em certas alturas não passa sem ela, ou — vá lá, não sejamos tão raposisticamente medievais na escolha das metáforas — não passa sem a multa ou o tribunal, versões extremas, mas por vezes necessárias e ainda civilizadas, da hoje inexistente censura social a comportamentos egoístas, cretinos e lesivos da liberdade alheia. O Estado de Direito e os seus tribunais são, aliás, o único obstáculo entre mim e o meu desejo selvático de anunciar ao Bloco ou ao MRPP que a caça ao Raposo é legal durante todo o ano.

Sábado de reflexão

  1. Muitos acham ridícula a lei que impõe um dia de reflexão antes das eleições. Eu acho ridículo que a lei não imponha 15 dias de reflexão antes das eleições — incluindo o mesmo silêncio e pacatez dos sábados de véspera de urnas.
  2. Não me parece provado que se forme melhor consciência política na histeria do circo do que no silêncio dos cemitérios.
  3. Todos os dias deviam ser sábado de reflexão ou, em alternativa, inscrevia-se na Constituição o dever de os partidos com mais orçamento guardarem 1440 minutos diários de silêncio em memória da honra que lhes faleceu.
  4. Preventivamente, o dia depois das eleições devia ser também sábado de reflexão. E os 1459 restantes (1824, no caso das presidenciais).
  5. Na verdade, o sábado de reflexão devia começar às 00h00 de um belo e chuvoso dia de Outono (como o de hoje, por exemplo) e continuar em vigor enquanto a Terra tiver voltas para dar ao Sol.
  6. É certo que neste regime algumas pessoas ficariam de certo modo dispensadas de existir, mas, como eles (não) dizem, alguém tem de se sacrificar, não é?

Dia de reflexão

Diz-se que num acto de reflexão o pensamento se dobra sobre si mesmo. Hoje, consta, é «dia de reflexão». Talvez a manhã se dobre sobre a tarde e vice-versa. Talvez a atmosfera se encha de questões filosóficas: «Quem somos?», «Donde vimos?», «Para onde vamos?» — e outras de análogo teor antropológico. Talvez os cidadãos menos introspectivos sejam por elas arrastados para exercícios que os colocam entre a vertigem e o abismo. Mas amanhã já terão esquecido o susto.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Fusão

Anos de meditação tornaram-no capaz de se fundir na Unidade, como açúcar mascavado em chá de alecrim. Se pressentia aborrecimentos ou pequenas catástrofes, pumba, fundia-se na Unidade. Mas uma percentagem de si permanecia imune à fusão: o indicador direito. Este mantinha-o ligado à pluralidade, apontando-lhe os caminhos de ida e volta. Certo dia, ficando o nariz a substituí-lo, também tal dedo foi conhecer a Unidade. Regressou transbordante de ideais: passou a apontar caminhos a toda a gente.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Never mind the gap

Na altura, entre a província e a capital havia um gap um pouco maior do que aquele para que avisa intemporalmente a voz do Metro de Londres. A admiração que a província tinha pela coreógrafa Olga Roriz, por exemplo, era reflexa. Obediente aos media — no tempo em que os media gastavam tempo com artistas como a Olga Roriz —, a província remetera-a para a galeria dos notáveis da nação e tinha-lhe a vaga estima que se dedicava a influentes estadistas estrangeiros, vivos e mortos, ou mesmo a um ou outro mais distante político da pátria.
Um dia a coreógrafa trouxe a companhia à província e a província acorreu engalanada ao recinto. Era a Olga Roriz! Ali chegada, a província não conseguiu mais do que deixar cair desajeitadamente os queixos. Foi como se alguém revelasse que afinal a Torre de Belém não era maior do que uma torre de xadrez. Ou antes, como se fosse anunciado que o Tejo não era um rio, mas um laguito de águas paradas e rasas. A província embasbacou. O que era aquilo? Que farsa era aquela? Quem tinha mentido à província?
O problema era que a companhia de dança de Olga Roriz não dançava, não nos termos em que a província se tinha habituado a imaginar a dança. Pensava-se no folclore, no ballet ou no Fame e nada daquilo encaixava, não sem grandes esforços da imaginação.
(O mito Pina Bausch durou porque a alemã teve o bom senso de não sair de Lisboa sempre que veio a Portugal. E de morrer entretanto.)

Mas felizmente o desacerto entre a província e a capital foi já bastante ultrapassado. Tirando uma ou outra distracção do jornal de Belmiro, os media passaram basicamente a ignorar tanto Roriz como Bausch e, muito adequadamente, inauguraram-se feiras e piqueniques na Praça do Comércio. Suponho que a província esteja assaz satisfeita com a aproximação que a capital lhe fez. Mas o melhor é que hoje já ninguém é enganado, já não se fazem notáveis que não sejam transparentes à mais desarmada vista e apresentáveis em qualquer romaria, de Unhais da Serra à TVI.

Acerca da matéria

Escreve António Gedeão que «o Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma». Garante Ernest Rutherford que «o átomo é sobretudo espaço vazio». Deste modo, a matéria revela-se uma profunda escassez. Deveria, pois, ser fácil alcançar o nirvana — e outros vácuos igualmente gratificantes. Deveria também constituir autêntico milagre o facto de sabermos onde estão os objectos. Todavia, pelo contrário, a chamada «realidade empírica» mostra-se frequentemente excessiva. Ou então ela é um excessivo milagre que nos passa, afinal, despercebido.

Os Idiotas @ Time Out

Recensão do romance Os Idiotas, do meu colega Rui Ângelo Araújo, na revista Time Out:

(clique na imagem para ver maior)

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Espelhos

Um poeta da Geração d’Orpheu entrou numa casa de banho pública, onde existia um espelho capaz de fixar imagens e palavras. Retirou do bolso um espelho mais pequeno e fez aquele jogo de reflexos que anula simetrias. Proferiu, em simultâneo, um verso: «Eu não sou eu nem sou o outro.» O espelho maior assimilou tudo. Desde então, se alguém, mirando-se a ele, perguntasse «Quem sou eu?», obtinha esta resposta: «És dois espelhos — ou “qualquer coisa de intermédio”.»

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Deus não é um ET, bolas

Num questionário qualquer (sim, esse que no final faz de todos nós nórdicos) fui confrontado com a questão de acreditar ou não em Deus. A pergunta, com certa crueldade, não permitia nuances ou agnosticismos, não deixava espaço para o conforto da neutralidade ou do adiamento. A reposta tinha de ser «sim» ou «não». Acreditas ou não acreditas, perguntei a mim mesmo, sentindo-me encurralado, confrontado, obrigado a decidir-me. Disse que não, porque tudo à minha volta e dentro do meu cérebro grita «não». Mas a dúvida permaneceu. Talvez por medo, medo católico de que os meus modestos pecados mereçam ainda assim as chamas do Inferno. Talvez por uma cautela de inspiração pascaliana. Certamente pela vergonha instintiva de me mostrar crente num mundo pragmático. Respondi negativamente lamentando que não houvesse a opção «não sabe/não responde» disponível em inquéritos mais sensatos.

Entretanto vi um post a informar que «Luzes no céu voltaram a ser observadas de Norte a Sul de Portugal» e o meu coração acelerou, a minha alma excitou-se. Não como acontece aos peregrinos que, a caminho de Fátima, desatam a cantar «a 13 de Maio…» sempre que à noite os sobrevoam as luzes do helicóptero do INEM transportando mais uma vítima da sua própria promessa. O post era do site UFO Portugal e parece que as luzes não eram balões de LEDs.

Suponho que um bispo da IURD me perguntaria o que há de errado em mim, um tipo devidamente crismado que rejubila mais com notícias de nerds do que com as boas novas do Velho Testamento. E alguma coisa deve haver, claro. A possibilidade de testemunhar um milagre religioso deixa-me indiferente ou atento aos sinais de fraude, disponível para rir e derramar paternalismo. A hipótese de um avistamento extraterrestre, pelo contrário, põe-me a olhar discretamente os céus, a sonhar com encontros imediatos, a correr para o clube de vídeo para alugar de novo Contacto. Embora não desaproveite a oportunidade para rir e derramar paternalismo (nunca se deve perder uma).

Encontrar Deus é o susto de me ver desmascarado na minha hipocrisia, no meu cinismo, na minha pusilanimidade, nos meus vícios. Encontrar um ET é tocar o verdadeiro Mistério. Jamais senti uma epifania ou qualquer tipo de excitação da alma ou do intelecto nos meus contactos com a Bíblia; mas senti-me inquietante e maravilhosamente próximo do Inefável quando li Encontro com Rama, de Arthur C. Clarke.

Suponho que isto diga também qualquer coisa sobre as tão propaladas virtudes literárias da Bíblia, faça dos evangelistas autores menores, se comparados com Isaac Azimov ou Philip K. Dick. Imagino que as coisas poderiam ser diferentes se Marcos, Mateus, Lucas e João tivessem sabido deixar o rosto do Senhor desconhecido, em vez de fazerem do simples acto de nos vermos ao espelho um spoiler. Se tivessem inventado um 13.º apóstolo tão fugaz e perturbante quanto o 8.º passageiro. Se, eles e os seus continuadores, tivessem conseguido fazer uma narrativa menos autobiográfica, recalcada e catártica (logo, amadora). E, claro, se não tivessem assinado os seus livros com nomes de cantores pimba brasileiros.

Deus está no meio de nós e esse é o problema. Ele devia ser apenas uma probabilidade ínfima e ignota na zona habitável da estrela Gliese 667C ou de outra mais distante.

O terceiro animal

Isaiah Berlin destacou o aforismo de Arquíloco: «A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante.» A frase parece inventada pelos ouriços — para poder ser citada pelas raposas. Acrescente-se um terceiro animal: o caracol. Este molusco sabe poucas coisas, mas duas muito importantes. Sabe que é um dos bichos mais lentos: todos o constatam. Sabe também que é um dos bichos mais rápidos: já chegou ao destino e ainda mal saiu de casa.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O Ser

Segundo Parménides, o Ser — que não se reduz a entidades vivas, ideias gastas ou pipocas estaladiças, antes engloba a totalidade do que existe — encontra-se imóvel. Movimento e pluralidade constituem ilusões dos sentidos. Movo-me de carro enquanto reflicto sobre tais ilusões. Concluo que nunca o Imóvel — que é igualmente o Uno — conseguiria gerá-las se não se movesse também. Paro entretanto: um indivíduo parece querer atravessar a passadeira. Parece, mas nem sequer se move. Eis o Ser de Parménides.

domingo, 22 de setembro de 2013

Os dois pontos

Num mundo de sombras cúmplices e renovada inquietude, há dois pontos que incitam, sem trégua, a exercícios filosóficos. Um deles é, naturalmente, o ponto de interrogação; o outro é, obviamente, o ponto de embraiagem. O primeiro situa-se entre a ignorância espessa e a sabedoria cristalina; o segundo, entre a imobilidade total e o fluir ininterrupto. Mas importa usá-los com parcimónia. Quem abusa do segundo pode danificar a viatura. Quem abusa do primeiro arrisca-se a estragar a convivência.

sábado, 21 de setembro de 2013

Improvisar, para quê?

Em vésperas da abertura do ano lectivo, o primeiro-ministro asseverou que desta vez não haveria lugar a «improvisos»:

TVI24: «Passos Coelho destaca abertura do ano escolar sem improvisos»

Por uma vez, Pedro Passos Coelho falou a verdade. Em anos anteriores, a improvisação era frequentemente a regra.

Não agora: nada de improvisos. Desta vez, com este Governo, o lema para a Educação é «Que se foda!»:

Público: «CNIPE denuncia casos de crianças com multideficiências impedidas de ir à escola»

A nêspera e o Universo

Livros de auto-ajuda de cósmica abrangência exortam o leitor a «sintonizar-se» com o Universo, parecendo glorificar a atitude da nêspera do conto de Mário-Henrique Leiria: a de ficar «a ver o que acontece». Porém, «sintonizado» ou não, o indivíduo é já parte do Universo, tornando-se directamente responsável, enquanto fica «a ver o que acontece», pelo que lhe possa vir a acontecer. «Olha uma nêspera!», diz a velha recém-chegada. E come-a. O Universo é tão promissor quanto auto-punitivo.

O que é preciso é saudinha (9)

TUBARÃO. s. m. Hipertrofia testicular. [Wackypedia: contributos para um léxico alternativo]

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

«Alturas» e outras ambiguidades

É por alturas que arrumo os livros: há alturas em que tento arrumá-los de uma forma; alturas há em que tento arrumá-los de outra. O critério actual vai destilando ambiguidade: arrumo-os, justamente, por alturas. Aprecio o arranjo externo que os irmana, intuindo o contraste que isso faz com a divergência interna que os separa. Um segundo critério poderá ser o da espessura da lombada. «Frequentemente», dirão os compêndios de matemática, «para achar um volume a régua basta.»

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Os objectos inefáveis

Naquela feira vendiam-se apenas objectos inefáveis. Em rigor, não se tratava de objectos completamente inefáveis: deles se dizia que eram «inefáveis» e que eram «objectos». De resto, como de Deus para os místicos, de tais objectos só se falava mediante negações: não tinham cheiro, cor, som, peso, volume, forma, nada. Quem os adquiria, geralmente a preços indizíveis, espalhava-os pela casa ou por caminhos habituais. Constituía mesmo um sagrado imperativo tropeçar em objectos inefáveis — para alcançar indescritíveis quedas.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O romance convencional (Liberdade x A Piada Infinita)

Pessoa amiga conta-me que lhe ofereceram recentemente os romances Liberdade (de Jonathan Franzen) e A Piada Infinita (de David Foster Wallace). Percebe-se a escolha: de forma mais ou menos assumida ou por interpostos críticos, ambos os autores (e ambos os livros) foram candidatos à categoria recorrente de o (novo) grande romance americano. Quando a feliz aniversariante mostrou os presentes a um outro amigo, ele teve uma compreensível reacção idiossincrática: «Lê muito a Piada; queimamos já aqui o Liberdade
É certo que Franzen competiria melhor com Wallace se o livro escolhido fosse Correcções. Ou antes: competiria um pouco mais no mesmo terreno de Wallace se o livro considerado fosse este último. Contudo, Liberdade continua a ser um grande livro, ainda que mais convencional.

Há várias razões para não se gostar de Franzen, e ser “mais convencional” parece ser uma delas.
Um post de Nuno Costa Santos, por exemplo, defende que «o romance convencional já não chega lá». E já não chega lá porquê? Porque «não basta a historinhazinha, a trama branda, as personagens bem desenhadas mas sem fogo». Porque «a realidade, contraditória e conflituosa, está a reivindicar atenção». Porque «é necessário assumir o quase sempre evitado “eu” — um “eu” que não é o ego tout court, é um jogo literário arriscado entre a vida e a ficção».
Pelo meu lado, julgo excessivo presumir-se que o romance convencional se define daquela maneira. Talvez aquilo defina um romance fraco, mas não exactamente um romance convencional. O romance convencional terá uma história, uma trama, personagens bem desenhadas — os diminutivos paternalistas e os qualificativos pejorativos excedem a definição. Por outro lado, não seria descabida generosidade considerar que o romance convencional tem tido os seus momentos de aggiornamento, de sábia atenção à «realidade, contraditória e conflituosa», e de assunção do «eu».
Creio que Costa Santos, como se depreende do resto do seu texto, queria na verdade dizer que, em sua opinião, o romance convencional não tem sabido chegar lá. Ou mesmo que o romance convencional já não tem forma de chegar lá.
E aqui talvez entremos no domínio do estilo e das preferências.
Por ter crescido num tempo e num canto de Trás-os-Montes onde não havia tutores nem escolas literárias ou figuras de referência, tornei-me, julgo que felizmente sem traumas, num tipo ecléctico no que se refere a géneros e estilos. Ou talvez apenas descomplexadamente generoso no que toca a leituras. A verdade é que se rejeito por vezes certos livros não é porque os ache necessariamente maus. É apenas porque estão desacertados comigo (ou, geralmente, eu com eles).

Tendo-me divertido mais com A Piada Infinita e tendo sido mais estimulado por Wallace, não vejo contudo razões para desconsiderar Liberdade ou temer que o “romance convencional” já não sirva.

A praxe integra? Talvez... Mas em quê?

A minha reacção à teoria de que a Praxe «é uma forma de integração» (alguns vão ao ponto de deixar subentendido que é a única forma de integração na vida académica...) e à desculpa dos excessos com a «rebeldia» da juventude.

Quanto à primeira afirmação (a questão da integração): será — mas integração em quê? Numa estrutura hierárquica baseada, não no mérito, mas na antiguidade? Pior: onde o maior estatuto (Veterano) só é conseguido, necessariamente, pela reprovação (logo, pelo demérito)? Integração numa sociedade em que os de mais baixo estatuto, não só são humilhados, como não podem reagir à humilhação, apenas acatá-la? E onde a única desforra que existe é, não sobre aqueles que nos humilharam, mas sobre terceiros, os de mais baixo estatuto do que nós, que a seu tempo teremos oportunidade de humilhar? Se é a este tipo de integração que se referem, está tudo dito.

Quanto ao espírito «rebelde» subjacente à Praxe: é exactamente o contrário — reprodução acrítica de comportamentos. (De resto, como a maioria das tradições; a diferença é que poucas são tão estúpidas e com princípios e valores subjacentes tão baixos como os da Praxe.)


P.S.: Fiz este flyer em Setembro de 2009, tendo-o distribuído (em pequenas quantidades) pelo sítio onde trabalho. Foi originalmente publicado no meu blogue Grafismo Sem Rede, acompanhado do texto que reproduzi acima. Vejo hoje que poderia ter sido publicado a acompanhar o artigo de opinião que Daniel Oliveira publicou no Expresso em 2011 e que por estes dias ressuscitou nas redes sociais.

Praxe

Comentário de um paisano sobre a praxe ali perto: «Ainda nem os deixaram ir ver a universidade e já os estão a foder.»

Ou de como a sageza popular é suficiente para deitar por terra qualquer treta hipócrita sobre a praxe enquanto forma de introduzir os novos alunos na vida universitária, de os guiar pelo campus, de os integrar na comunidade académica.

A realidade bruta

Achava que a escrita devia exprimir apenas «o real nu e cru». Decidiu mesmo aprender estenografia, para que nenhum pormenor lhe escapasse nem tivesse tempo de reflectir. Em esplanadas, confiava ao papel «a existência bruta». Uma tarde, a caneta esbarrou com excremento de pomba. A matéria fecal interrompeu-lhe uma frase em que, transgredindo a norma abstracta, opinava sobre gestos concretos. Pensou: «Se a realidade pune desta forma um delito menor, ela deve ser implacável com os dissidentes.»

10 tipos de pessoas

Só há 10 tipos de pessoas: as que sabem binário e as que não

Motivado por um post do Zé.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

«Two kinds of people»

Diz a anedota que, relativamente à matemática, há três tipos de pessoas: as que sabem fazer contas e as que não. Em termos gerais, a regra consiste em haver só dois. A ideia, que invadiu o cinema, radica na eterna luta de contrários, conhecida pelo menos desde a expulsão do Éden. Para extinguir tal cliché, dever-se-á criar um paradoxo. Só há dois tipos de pessoas: as que não se enquadram nisso e as que ficaram de fora.

de[s]amor: adeus

T-shirt, teste de visão: A Z Y E U W Q... «vai lendo, que elas já diminuem...»

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Nada garante que não seja veneno

Numa disposição de pontos que faça lembrar um triângulo, a maioria percepciona, efectivamente, um triângulo: une os pontos com linhas imaginárias. Ninguém jurará não haver qualquer figura, embora o acto de suprimir mentalmente os pontos adquira, por comparação, igual legitimidade. Na base da resposta encontra-se a tendência para o «enchimento», também implícita na cansativa história do copo: o optimista vê-o meio cheio; o pessimista, meio vazio. Mas o que importa é saber de que bebida se trata.

domingo, 15 de setembro de 2013

A máquina das experiências

Robert Nozick propôs que imaginássemos certa máquina capaz de nos fornecer qualquer experiência — se a ela nos ligássemos. Todos os desejos seriam satisfeitos, embora — sem o saber — flutuássemos num tanque, o cérebro estimulado por eléctrodos. Nozick acreditava que a maior parte das pessoas recusaria ligar-se, dispensando essa vivência exclusiva de prazeres ilimitados. Mas o aparelho também traria dor — se a desejássemos. Podemos inclusive presumir que, metafisicamente falando, estamos ligados a máquinas idênticas — porém anómalas, por uso impróprio.

sábado, 14 de setembro de 2013

Introspecção

Auguste Comte negava-lhe valor científico: na introspecção, o sujeito observador coincide com o objecto observado. E «ninguém pode estar à janela para se ver passar na rua». Tese plausível, frágil argumento: embora coincida com o objecto, o sujeito não coincide consigo próprio. Se a introspecção carece de rigor, é justamente pelo facto de, na vida mental, ser possível estar à janela e ver-se passar na rua — ou passar na rua e ver que se está à janela.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Os Idiotas — sessões de lançamento a sul

Hoje à noite (21h) é lançado em Castro Verde o livro Os Idiotas, do amigo e co-blogger Rui Ângelo Araújo, a leitura ideal para a época de patos bravos eleições autárquicas que vivemos.

Amanhã (18h30), é a vez de Faro.

Apareçam!

Fim de tarde

A tarde declina. Chego ao centro de uma aldeia que desconheço. Aproximam-se indivíduos avançados em idade. Entabula-se conversa. Um deles discursa. Quase nenhuma das frases lhe sai sem palavrões. Sente azedume: aquela terra perdeu o estatuto de freguesia. O velho mostra-se categórico: «Os novos deviam ir todos para o caralho!» Uma anciã leva o indicador à cabeça, gesto cúmplice. O homem, todavia, conclui a arenga ao estilo pessoano: «A aldeia é grande, mas a alma é pequena.»

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Lucidez

Refere Saramago que os seus livros deveriam exibir, na capa, uma fita onde se lesse: «Atenção, este livro leva uma pessoa dentro.» Eis entretanto as últimas palavras de Marx: «Vá lá, sai daqui! Últimas palavras são para tolos que não disseram o suficiente!» Também isto porventura «leva uma pessoa dentro». O mau uso histórico da doutrina marxista gera a sensação de que o filósofo não disse o «suficiente». Mas, pelo menos, manteve-se lúcido até à derradeira sílaba.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Wackypedia: Sexo (10)

BUCÓLICO/A. adj. Viciado/a em sexo oral. [Wackypedia: contributos para um léxico alternativo]

A maçada das utopias

Os habitantes da utópica cidade solar, descrita por Tommaso Campanella e governada pelo Metafísico, «têm em comum as casas, os dormitórios, os leitos, todas as coisas necessárias». Se a mente fosse despojada do princípio segundo o qual uma realidade é idêntica a si própria e distinta das demais, viveríamos o êxtase da fusão e do intercâmbio, concretizando a fórmula mística do «tudo em tudo». Eis duas soluções pouco agradáveis para quem gosta que o deixem em paz.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

O monólito

Chama-se Maxime Qavtaradze. Lembrando antigos estilitas, o monge vive há vinte anos no topo de um monólito: longe dos semelhantes, que todavia o alimentam; mais perto de Deus, apesar da divina omnipresença. Mas permanecer ali, rodeado de abismo e monotonia, pode também ser o convite ao exercício de «simplesmente existir»: sem memórias cruéis nem expectativas inúteis, para lá de um céu de promessas e de uma terra de desilusões. Todos deviam ter direito a uma pedra assim.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Repetição e contradição

Para evitar contradizerem-se, muitos gostarão de academicamente o repetir: «Quem não se repete contradiz-se.» Por sua vez, Cardoso Pires entende que o maior pânico do escritor, à medida que avança na idade e no trabalho, «é desconfiar que já leu aquilo em qualquer lado — dele». Portanto, ou o escritor demanda subterraneamente a contradição ou há modalidades de «não repetição» que nada encerram de contraditório. Eis o jogo entre o «mesmo» e o «diverso», cujas regras convém desconhecer.

domingo, 8 de setembro de 2013

A literatura ou a vida

Há muitos anos, no secundário, acordei de um sono profundo a meio de uma aula quando me encontrei com a Ode Triunfal. Tinha passado de batucar indolentemente com os dedos na mesa a folhear com eles o livro do colega de carteira, como se passando as páginas conseguisse fazer passar os minutos, os longos minutos que demorava a passar a aula de Português.
Depois do longínquo ronronar das coisas abstractas, cuja anatomia indistinta era dissecada na mesa de um jargão técnico estéril e cuja relação com a vida neste planeta eu não lobrigava, o livro estava a oferecer-me um texto que ligava as palavras a sensações, que descrevia com assinalável verosimilhança o mundo e o relacionava com emoções que eu era capaz de identificar.
Havia uma discrepância entre o que eu estava a ler e o que tinham sido as aulas de Português até àquele momento, fastidiosos lapsos de tempo onde, sem que eu tivesse como o perceber (e de qualquer modo os professores, eles mesmos, não o percebiam), o ensino da literatura se fazia distinto, quase antagónico, da literatura. Imaginei que aquela ode de Álvaro de Campos seria um dos textos que não iríamos abordar na aula, porque tudo o que abordávamos na aula era chato e colossalmente destituído de humanidade. Senti-me transgressor. A insuflar a alma de uma coisa que não era grosseira, amarelada e, para mal das alergias, carregada de pó como velhos in-fólios. (Anos mais tarde concluiria com naturalidade que o que me condenava ao sono ou ao tédio não eram os textos, mas quem os ensinava e a forma como eles eram ensinados.)
Creio que vem desse momento epifânico a minha aversão a romances que tenham como protagonistas escritores em pleno exercício do ofício, que sejam estudos psicológicos, existencialistas ou pós-modernos de escritores ou de leitores, bibliotecários, editores, a minha aversão a romances que sequer ambientem vagamente os enredos no métier literário, que procurem piscar o olho ao leitor geek, profissional, ou que pura e simplesmente desconheçam a vida para lá da literatura. Há bastantes destes livros, os escritores tendem a ser umbiguistas e a literatura de alguns deles, com a conivência ou o deslumbramento de editores igualmente autocentrados, francamente tautológica.
Receio sempre que os autores de obras assim sejam como os meus professores do secundário, gente que tuteia a literatura mas a esvazia de vida. Salvo excepções, quando quero ler sobre vidas de escritores ou sobre o escritor no seu labirinto, procuro biografias, entrevistas, ensaios próprios ou de terceiros. Dos romances, da literatura, espero que tratem da vida, até mesmo da vidinha. Do roncar das máquinas aos «escrocs exageradamente bem vestidos».


* Este post cita de cor e dando-se muita liberdade um texto que escrevi há talvez década e meia e foi espoletado, o post, pela admirável versão da Ode Triunfal que a Maria Filomena publicou no seu Ferramentas e Espelhos.

Distinção

Afonso XIII condecorou-o com a Grã-Cruz de Afonso XII. Miguel de Unamuno declarou, pois, ser uma honra receber semelhante distinção — altamente merecida. Surpreso, disse-lhe o rei que ele era o primeiro a expressar-se assim. Sempre os anteriores homenageados haviam referido que a não mereciam. Retorquiu o filósofo: «E provavelmente com toda a razão.» A franca arrogância gera, por vezes, um humor mais corrosivo que o da ironia. Já a modéstia, quando falsa, é somente ironia sem humor.

sábado, 7 de setembro de 2013

Wackypedia: léxico geral (4)

EXTERNO. adj. m. Que se tornou bruto. [Wackypedia: contributos para um léxico alternativo]

Falhas

Passo de um manual de lógica para o Livro Tibetano dos Mortos. O primeiro tenta definir, com exactidão, as formas válidas de pensar a vida. O segundo procura descrever, com ênfase, o que iremos achar após a morte. Mas ambos terão falhas. Cada morto representa um caso. Cada vivo inaugura um paradoxo. Deve, pois, existir algo que as «quatro figuras do silogismo» não abarcam e as «quatro nobres verdades» do budismo não contemplam: um caos rigorosamente impartilhável.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Momentos líricos

Um candidato a poeta dá a ler uma composição sua a sazonado diplomata. Embora não aprecie os versos, o auxiliador de talentos esforça-se — talvez inconscientemente — por captar momentos líricos bem conseguidos. Depois dirá ao principiante vate: «Achei sobretudo belíssima a expressão x.» A «expressão x» serviu-lhe de refúgio: cumpriu nela a expectativa estética, não contentável no geral do poema. O aforismo de Lavoisier ganha, neste contexto, outra figura: muito se cria, tudo se perde, nada se transforma.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

A imaginação em exercício

Duas anedotas. No desenho há vaca e erva. A erva não está — comeu-a a vaca. A vaca não consta — comeu a erva e foi-se. Frequentemente, caminhava em redor de um monte. Sempre numa direcção invariável. Anos depois, descobriria que uma das pernas encurtara. Decidiu-se pelo sentido oposto, até as igualar. A quem duvidava disso respondia: «Veja: as minhas pernas têm o mesmo comprimento!» A imaginação cria factos e elimina-os com hipóteses; cria hipóteses e ilumina-as com factos.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Técnicas

Uma técnica defensiva relativamente a «incómodos pensamentos dolorosos» consiste em negá-los à consciência, evitando traduzi-los em imagens e palavras. O exercício, porém, revela-se falível: os pensamentos vagueiam por perto, fantasmas sedentos de epifania. Outra técnica passa por considerar tudo ilusório e oco: volvidas décadas, não excederemos pó e esquecimento. A intenção é fecunda; o resultado, oco e ilusório. Há uma terceira técnica, mas imponderada: além de pressupor a colaboração do adversário, só pode ser usada uma vez.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Setas

Tanto o computador nos habitua a uma setinha azul, curva de aspecto, capaz de «anular a introdução», que instintivamente a procuramos para «anular» também o que de asneira «introduzimos» no quotidiano exterior ao Word. Em vão, no entanto, se demandará aí tal dispositivo de reversibilidade. A linha do tempo desconhece as setas curvas e azuis que neutralizam o sentido indesejado. Ela assemelha-se mais, enquanto flecha inexorável, às setas brancas sobre fundo azul — que indicam o sentido obrigatório.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Carne para canhão

Acusam-no, apesar do barítono, de não ter perfil de estadista — como afinal não tinha de cabeça-de-cartaz laferiano. Mas o nosso PM, para além de estentóreas qualidades tribunícias, tem uma digna postura generalícia, de general bonapartista. Tem o mesmo brilhantismo táctico (embora em segunda mão) e o mesmo sentido estético dos generais que berravam até a voz lhes doer para ninguém abandonar as linhas, para que todos marchassem ordeiramente. No campo de batalha como na parada. É verdade que o pensamento militar, que ainda havia de conceber as trincheiras, acabou por concluir pela estupidez da táctica, que apenas sobreviveu enquanto do outro lado vigorava estupidez semelhante. Mas tudo aquilo, todas aquelas encenadas e hollywoodescas manobras militares, que punham milhares de pessoas a mover-se num descampado como peças de dominó tombando num vasto e colorido jogo de efeitos, toda aquela carnificina apreciada à distância com o mesmo monóculo que se usava na ópera de Paris, todo aquele bailado demente muito apreciado pelos sádicos habitantes do Olimpo, foi necessário para que alguém escrevesse um calhamaço como o Guerra e Paz e, sobretudo, foi necessário para que hoje pudéssemos usar uma expressão tão exacta e esclarecedora como “carne para canhão”.

Se não existisse história militar, e perdoem-me a tautologia, não saberíamos hoje descrever o que pretende Passos Coelho e a aprumada, british style, tropa cerebralmente fandanga que temos como Governo. O que se nos pede, como há exactamente duzentos anos, é que, para que nada mude, para que se possa fingir que nada tem de mudar no sistema económico europeu, no próprio capitalismo, para que os rendimentos superiores possam continuar a ser abismalmente superiores, o que se nos pede e Passos Coelho repete com mais ingenuidade do que cinismo, embora este lhe sobre, é que tem de haver milhões de sacrificados.

Carne para canhão é, continua a ser, a grande táctica dos que, montados na garupa dos seus alazões, se relacionam com a mole humana ao milheiro, têm o milheiro como unidade de cálculo para os trocos como para os homens. Passos Coelho, como outros oficiais do ramo que o precederam, apenas cumpre ordens.

(des)inibições

Ler ao contrário

Com perturbação neurológica designada «fenómeno de orientação espacial», a sérvia Bojana Danilovic lê e escreve ao contrário. Recordo facto passado. Uma jovem da aldeia não sabia ler. Namorava um instruído moço da cidade. Certo dia, tomou o comboio para se encontrar com ele. Sentou-se e abriu o jornal sobre as pernas cruzadas. Disse-lhe um cavalheiro: «Desculpe, menina, está a ler o jornal ao contrário!» Desconhecendo Bojana, ela replicou: «Às direitas qualquer um é capaz de o fazer.»

domingo, 1 de setembro de 2013

Frases

Naquele país, os cidadãos — graças a um sistema informático de controlo mental — recebiam à nascença as frases que iriam dizer, e podiam livremente repetir, durante a vida. O conteúdo e o número variavam entre indivíduos, consoante os pátrios interesses. Estar ligado ao «sistema» (todos os sentiam) era tão instintivo como respirar. Não havia asserções melancólicas, embaraçosas ou contestatárias. De modo obviamente consensual, assim se definia «ser humano»: um amontoado bípede de frases implumes, com umbigo e narinas.