quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Da praxe no parque à escatologia: ensaio taxonómico sobre a academia

A propósito de uma sucessão de casos, ou antes, da cobertura jornalística de casos de francos excessos nas praxes académicas, e em sequência de uma débil pressão social ou de uma réstia de escrúpulos, algumas universidades lá assumiram que lhes cabiam desempenhar um papel, não exactamente na formação de carácter dos seus alunos (não exageremos), mas de moderação da selvajaria. Passaram a existir regras um pouco mais restritivas para a praxe em alguns campus. Como em certas cidades mais progressivas do farwest, os alunos foram convidados a deixar as armas no portão. Se querem brincar aos índios e cowboys, que o façam lá fora. A academia nada tem contra os tiroteios e a caça ao escalpe — desde que essas românticas actividades ocorram extramuros.

E também assim a academia volta as costas à comunidade, ao mesmo tempo que renega as suas incumbências fingindo que a sua jurisdição sobre o estudante é limitada pela vedação do campus.

Os grupos de praxe, aliás, parecem não caber no âmbito jurisdicional de nenhuma instituição, civil ou uniformizada. Desde que notoriamente envolvidos — quer como vítimas, quer como algozes — nessa fundamental ocupação dos vinte anos que é a praxe, é-lhes passado um livre-trânsito, uma espécie de carta de alforria para a ignomínia e o vandalismo, sem limitação de decibéis.

Se você, caro cidadão, dando-lhe na veneta, resolvesse, como por aqui se faz, chafurdar ou fazer bodyboard na relva húmida de um parque até transformar o círculo do seu enchafurdamento num lamaçal, ou arrancar, com sequelas para o futuro botânico do sítio, qualquer vestígio de relva no percurso do seu reiterado deslizamento, provavelmente teria um funcionário municipal ou um agente da autoridade a censurar-lhe o comportamento (por mais genuinamente divertido que você estivesse) e a sacar do bloco de multas para lhe pedir contas. Tratando-se de grupos de praxe, as instituições do Estado quando muito abanam a cabeça com aquela indulgência que se oferece às crianças e aos malucos da terra.

Tempos houve em que as cidades médias viam no estudante universitário a galinha-dos-ovos-de-ouro e temiam incomodar a debicante espécie com os seus escrúpulos e as suas preocupações cívicas (se as tinham). Galinhas desta estirpe, achava a mentalidade mercantil dos burgos, deviam ser deixadas a cacarejar estridentemente antes de cada postura. A caca de galinha com que revestiam abundantemente as calçadas da urbe não devia ser censurada, pois saía do mesmo sítio de onde saíam os áureos ovos. A escatologia era assim preocupação dominante nestas pequenas ou médias comunidades, quer na sua acepção científica (relacionando a merda estudantil com a saúde económica do condado), quer na sua dimensão filosófica (o fim dos universitários era o fim do mundo).

Claro que da ignara e vil burguesia mercantil e das instituições dos burgos, constituídas tantas vezes por meros perus emproados ou galináceos da mesma cepa estudantil, não se esperariam conhecimentos zootécnicos. Era natural que desconhecessem serem inúteis as asas das aves poedeiras e, por isso, desadequado o temor melodramático quanto à fuga das galinhas. Seria talvez uma iconoclastia humilhante e traumática alguém informar as comunidades que os Gallus gallus aureos, vulgo estudantes universitários, arrendariam igualmente casas, se alimentariam quotidianamente e quotidianamente apanhariam pifos mesmo que algumas regras da civitas lhes fossem impostas.

Deve ter sido por isso, para não ferir o frágil amor-próprio e os doces sentimentos das forças vivas das terras universitárias, que a academia se demitiu de lançar luz sobre o assunto. (Talvez também para não melindrar o orgulho arrivista e vindicativo dos progenitores no entremez académico das suas crias.) Ou isso ou as reitorias, em vez de faróis, confundem os seus gabinetes insonorizados e de vistas bucólicas com torres de marfim.

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