sexta-feira, 29 de novembro de 2013
Primazia cronológica
quinta-feira, 28 de novembro de 2013
Entre o ser e o não-ser
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
Duas perguntas
terça-feira, 26 de novembro de 2013
Melancolia
Diz a Wikipédia que é «um estado psíquico de depressão com ou sem causa específica» e se caracteriza «pela falta de entusiasmo e predisposição para actividades em geral». Não parece a descrição da minha patologia. Se é certo que a maioria das actividades em geral me parecem repulsivas quando me inclino para ouvir “Gallows” em loop, a verdade é que nestes momentos sinto um grande entusiasmo literário. Os frívolos dirão que literatura não é actividade, e terão a sua razão terrena. Mas quem se interessa por actividades quando tem as CocoRosie a sussurrar-lhe ao ouvido canções de assombramento, uma pilha de livros à distância de um braço e disposição para reescrever o mundo em vários tomos? Quem se interessaria por um emprego, uma comunidade, um país ou um planeta se pudesse simplesmente permanecer arrebatado?
A única parte triste da melancolia é termos de desligar a música, fechar os livros e ir picar o ponto nessa coisa a que chamamos vida adulta e responsável.
segunda-feira, 25 de novembro de 2013
A carranca do vizinho
Parque de estacionamento, à espera que o portão se abra. O vizinho chega ao fundo da rampa e o morador recua. O vizinho cruza com o seu automóvel a entrada assim franqueada, passa ao lado do Chevrolet-dos-tesos do morador e nem um gesto de gratidão, nem um meio sorriso de reconhecimento, nem um aceno de cabeça que o faça descer do pedestal de repulsiva sobranceria a que ascendeu. Também costuma, na sua impaciência de ridículo aristocrata, subir a rampa ao mesmo tempo que as pessoas a descem a pé, obrigando-as a colar-se à parede.
O morador recorda-se de o ver no parque, «um advogado e um pastor alemão com o mesmo ar de poucos amigos, ambos sem açaimo». Felizmente que neste jogging arrastado em dia de alma de chumbo são outros os bichos que passeiam. Alguém traz um cão vivaço e curioso. Trocam olhares cúmplices a propósito do bicho e abrem-se sem resistência os sorrisos. Dois perfeitos estranhos cruzam-se e desnudam a alma numa partilha espontânea, despretensiosa, franca, uma repentina felicidade a propósito de nada, um nada que a carranca do vizinho obviamente desconhece e que ao morador faz esquecer a carranca do vizinho pelo resto do dia. Até à hora ritual em que os demónios são convocados para exorcismo. Xô!
«A esquerda sem povo»
A propósito deste pragmático artigo de Jorge Almeida Fernandes no Público, recordei uma passagem do meu ainda inédito Aranda, escrita há três anos:
Era difícil, mesmo para alguém de esquerda como ela teimava em se dizer, refutar tal argumentação. O povo que a esquerda queria defender — as classes inocentes, oprimidas, ansiosas pela emancipação económica e intelectual — era um grupo residual ou não existia para lá do imaginário socialista; a História ultrapassara as ideias, retirara-lhes massa humana a que elas se pudessem aplicar, e essa era uma vitória do capitalismo e da democracia. Talvez por isso a ecologia tinha a importância que tinha para os pensadores de esquerda, pessoas no fundo com a consciência de que tinham perdido os humanos. Viravam-se para as outras formas de vida porque a Natureza se prestava facilmente, credivelmente, ao papel de vítima, tão necessário ao socialismo. Era o povo quem tornava as coisas difíceis. Como se podia defender mais democracia, uma maior identificação da política com a comunidade se ambas eram já o reflexo uma da outra? O que a esquerda tinha a fazer, achava Inês, era tornar-se realista e reconhecer que não tinha uma base social de apoio: o inimigo era a direita e o povo, afinal intensamente reaccionário, burguês e corrupto.
O anel e a invisibilidade
sábado, 23 de novembro de 2013
Memórias
quinta-feira, 21 de novembro de 2013
Sísifo
(versão sindicatos / versão governo)
Claramente, a versão original do post «Sísifo» pedia para ser reformulada, a bem da pluralidade...
quarta-feira, 20 de novembro de 2013
Sono aplicado
terça-feira, 19 de novembro de 2013
Mudar de ideias
segunda-feira, 18 de novembro de 2013
Conservador
Nos anos do Independente sentia-me um pouco de direita. Não exactamente por partilhar de ideais politicamente conservadores. Mas porque, consciente ou inconscientemente, queria estar do lado da inteligência, do humor, da rebeldia, da iconoclastia, e estas coisas, como se sabe, no Portugal dos anos 90 estavam no Indy (e na Kapa). Posteriormente, aprendi que o liberalismo da direita era final bem pouco liberal em demasiados assuntos e afastei-me. De qualquer modo, o jornal e a revista tinham acabado. E a direita estava a ficar cada vez mais estúpida também no que se referia às artes e à paisagem, coisas para mim caras. Com a crise iniciada em 2008, um decidido misantropo como eu descobre a sua paradoxal costela humanista e solidária e chega-se mais à esquerda do que nunca, embora a nenhuma esquerda organizada politicamente.
Hoje sou sobretudo um desiludido do capitalismo, essa oligarquia, e um conservador. Sim, leram bem, um conservador. O que se vê na foto é parte do que eu conservaria rigorosamente sem alterações, sem uma árvore abatida, caso mandasse. Claro que se mandasse, também restringiria implacavelmente o acesso ao local. Todos os conservadores são na verdade antropófobos, e o direito à propriedade, que aqui reivindico, é instrumental para o cumprimento da vocação.
domingo, 17 de novembro de 2013
Coerência
Hoje é o Dia Mundial da Prematuridade. Por uma questão de coerência, a efeméride deveria ter sido celebrada ontem.
Casal a vozes
Amigos
A manchete do JN
sábado, 16 de novembro de 2013
O túnel
quinta-feira, 14 de novembro de 2013
Infinitude
quarta-feira, 13 de novembro de 2013
A perdulária arte de chegar tarde
Correspondências
De donde és?
Aquelas duas aldeias eram conhecidas pelo afinco que os habitantes tinham à terra, particularmente a rapaziada mais nova. Numa altura em que a juventude estava toda a emigrar, os moços e as moças dali permaneciam, raramente se afastando das povoações, aliás. Também eram conhecidos pela timidez, mas nunca ninguém ligou muito as duas coisas. Ou se ligavam era com um raciocínio incompleto: imaginavam que a timidez se devia a nunca terem saído, a isso lhes ter gravado no carácter um proverbial acanhamento provinciano. A verdade era um pouco diferente. Não saíam porque tinham vergonha de responder se alguém nos longes onde fossem parar lhes perguntasse de onde eles eram — e eles eram, sem culpa disso mas embaraçados por isso, do Monte das Pitas e do Sítio da Éguas.
(Ideia de e dedicado a A. P.)
terça-feira, 12 de novembro de 2013
Explicações
segunda-feira, 11 de novembro de 2013
O olvido do ovino
Talvez coisar
Ouço no programa do provedor de uma rádio que ouvintes se queixam de passarem ali músicas com palavrões. (Um dos exemplos é “Anos de bailado e natação”, o belíssimo tema dos Mundo Cão com letra feliz de Valter Hugo Mãe de que já aqui falei.) Isto no mesmo santo dia em que a televisão dedica todo o período da tarde a fazer desfilar um inesgotável repertório de grosseria e brejeirice.
Pergunto-me se os provedores das TVs (existem?) recebem queixas de badalhoquices verbais no pequeno ecrã, mas suspeito que não. A cultura pimba é ali hegemónica ou exclusiva. E, mesmo que não primem pela subtileza ou pela elegância, os letristas pimba conseguem nos seus trocadilhos soezes evitar nomear as coisas de que obsessivamente se ocupam. Ora, a hipocrisia nacional tolera o mau-gosto, o machismo, a misoginia, a homofobia, o kitsch mais obsceno e a mais estridente ausência de talento — mas nunca o vernáculo radiotransmitido.
Se não tivesse há muito sido banida qualquer forma de arte da TV lusa, os Mundo Cão teriam na conjugação do verbo foder, ainda que poética, a razão do seu ostracismo hertziano.
domingo, 10 de novembro de 2013
Impossibilidade
sábado, 9 de novembro de 2013
Erguer o braço
O elogio do grupo
(Ensaio de um ex-baixista frustrado)
Não sei se por ter sido baixista e na definição clássica um baixista ser um guitarrista sem talento e frustrado, sinto grande simpatia pelos membros esquecidos das bandas. Por exemplo, fico retrospectivamente contente quando leio que Morrissey perdeu o diferendo jurídico que manteve com o baterista dos Smiths. É que, embora se saiba que o génio de um grupo é quase sempre individual ou, vá lá, bicéfalo, não é menos verdade que na maior parte dos casos tudo o que de realmente genial esses génios individuais fizeram aconteceu enquanto estavam no grupo. O que são Lloyd Cole sem os Commotions, Roger Hugdson sem os Supertramp, Roger Waters sem os Pink Floyd, John Lennon e McCartney sem os Beatles, o próprio Morrissey sem os Smiths? Génios, é verdade. Mas génios menores. Talvez eu pudesse idolatrar o trabalho deles a solo se não os tivesse ouvido antes, quando tinham um grupo. Assim, apenas posso amar as suas carreiras a solo.
Há algo num colectivo que faz o som de uma banda. Uma banda pode ter num tipo que se limita a abanar a pandeireta um elemento fundamental. Toda a gente sabe abanar uma pandeireta, mas só quem bebe connosco ou fuma connosco abana a pandeireta daquele jeito que o grupo precisa. É corrente gozar-se com Ringo Starr, mas o que seriam os Beatles se na bateria tivessem John Bonham? Diferentes, claro, mas também piores, acreditem. A genialidade dos grupos pop/rock não está apenas no talento dos seus instrumentistas ou compositores, mas no cozinhado que eles conseguem fazer com as diferentes capacidades e contribuições dos seus elementos. Um hit pop é um acidente no universo da música. Tem menos a ver com o virtuosismo das partes do que com o cruzamento delas. Em rigor, não há filhos sem pai ou sem mãe. Frequentemente, apenas um dos progenitores tem genes que se aproveitem (e, tantas vezes, nenhum), mas a beleza de alguém é sempre um cocktail que resulta da sacudidela conjugal. Ou de haver sorte no banco de esperma.
Os génios que se lançam numa carreira a solo cometem o pecado da soberba. Se não conseguem deixar de se zangar com os bandmates, deviam ter a coragem de se reformarem ou morrerem para deixar o mito intacto. Mas não, suas excelências acham que ainda têm muito para dar (e é verdade) e vão para estúdio com um conjunto de tipos contratados à espera que a magia aconteça entre estranhos como entre íntimos. Os músicos contratados ou requisitados para acompanhar vedetas recém-divorciadas são tratados com paninhos quentes (no caso de serem eles próprios vedetas de outras proveniências) ou como escravos. Ora, com escravos fazem-se pirâmides, não música. E a cordialidade entre pares dá palmadinhas e salamaleques coreográficos, não canções.
Acresce que o génio desagrupado tende a achar que, desde que tecnicamente correcta, é indiferente a linha de baixo, a malha de guitarra, a agitadela da pandeireta que passam a acompanhar a sua música. Na sua arrogância recém adquirida (ou exacerbada), julgam auto-suficiente a canção que compõem. E por isso gravam discos sem personalidade, ou com a personalidade de um grupo de swing (um grupo de adeptos da troca de pares sexuais, excitante, mas inconsequente). Pressente-se ali o talento melodioso do compositor, a voz distinta, a interpretação temperamental — mas como ecos do passado. The Pros and Cons of Hitch Hiking podia ser um bom álbum, mas sem os Pink Floyd é um fraco sucedâneo de The Wall. (Pelo seu lado, A Momentary Lapse of Reason sem Roger Waters tem muita dificuldade em parecer música.)
Quando se esteve num grupo, não se devia pretender a arrogância de uma carreira a solo. Quem quer uma carreira a solo chama a si próprio desde o início David Bowie e calça-lhe os sapatos de plataforma.
Fica aqui o meu elogio aos grupos — e a minha frustração por, enquanto ex-baixista, não ter um grupo a quem pedir indemnização.
sexta-feira, 8 de novembro de 2013
A bagagem
«Vá cortar as unhas!»
Coisas que me dispuseram bem no Facebook hoje:
- Chamarem Tico e Teco aos dois neurónios de Margarida Rebelo Pinto.
- Dizerem-lhe: «Vá cortar as unhas»
Coisas que me dispuseram mal:
- Um link para um artigo do Público onde Pedro Lomba mostra como também sabe ser hipócrita. Ou parvo.
Há uns tempos o problema era a produtividade, a função pública precisava de trabalhar mais horas. Hoje soubemos que afinal a função pública pode trabalhar menos horas e que isso, levar mais horas mas menos dinheiro para casa, é bom para as famílias. O empobrecimento passou de necessário a bom.
É como a demografia: a direita tonta que Lomba frequenta (e que, por contágio, o entonteceu) não se cansou durante anos de alertar para a o problema de uma demografia envelhecida, era preciso combater o aborto e fazer filhos, ter grandes e sólidas famílias tradicionais, monárquicas também podia ser. Depois os tontos, muito educadinhos e aperaltadinhos e sabujinhos, abriram a porta à tia troika e foram para o poder com pins na lapela (ler a crónica de Lobo Antunes é imprescindível) e afinal já não importava nada envelhecer o país mandando os jovens emigrar.
Estes bebés prematuros, espermatozóides de gravata ao pescoço, acham que os outros tiveram o mesmo tipo de desenvolvimento intelectual que eles, que também formaram pensamento e currículo na incubadora da Alfredo da Costa. A desfaçatez é tão grande e tão óbvia que num acesso de ternura, como os que por vezes se tem perante os tolinhos da aldeia, somos inclinados a pensar que tomarem-nos por parvos é a maneira deles um elogio, é dizerem-nos que nos consideram seus iguais.
É que tipos destes chegam a acreditar nas imbecilidades que dizem. Não se importam de ser parvos em nome da causa. Sacrificam a sua inteligência (considerando a possibilidade de terem mais do que um Tico e um Teco debaixo da melena beta) e a sua honra em nome de um bem superior (uma entidade tão insondável quanto os mercados, possivelmente um heterónimo destes). Tais secretários de estado e assessores so british, com muito ciência política à inglesa (a francesa é hó-rro-ro-sa!), são as tias louras da direita tonta portuguesa.
Ok, talvez Pedro Lomba tenha mais um neurónio do que Margarida Rebelo Pinto (um Huguinho, um Zezinho e um Luisinho, digamos, ou os Irmãos Metralha), mas a sua argumentação está ao nível da da escritora, é tão possidónia quanto a dela. Não se admire, por isso, sr. secretário de estado, se na rua alguém lhe disser com a igual escárnio: «Vá cortar as unhas!»
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
O absurdo
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
Exortação
Portugal na cauda da Europa
terça-feira, 5 de novembro de 2013
Ciclo existencial
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
Três possíveis consequências
domingo, 3 de novembro de 2013
Dispersão
sábado, 2 de novembro de 2013
Lugar desconhecido
sexta-feira, 1 de novembro de 2013
Hermenêutica futebolística
O amigo chegou, encomendou a sandes e a mini ao balcão e virou-se para a TV, onde passava um jogo de campeonato estrangeiro. O outro, quando se deu conta, arrastou-se lá do fundo e, depois do cumprimento, atirou:
— O árbitro está a ser tendencioso a favor dos azuis.
O tom era neutro, indiferente, de quem invoca as condições climatéricas para início de conversa.
Reflectindo nas palavras, fiquei na dúvida se aquela observação de circunstância significava que:
- É possível dedicar-se uma atenção mecânica mas minuciosa a um jogo de futebol mesmo que se desconheça os clubes ou eles não sejam suficientemente importantes para merecerem ser fixados;
- A parcialidade da arbitragem ou a crença de que há parcialidade na arbitragem são tão inerentes aos jogos quanto a rotundidade da bola;
- Os rituais de desculpabilização e a hermenêutica televisiva mudaram o foco do jogo para a incidentalidade.
- O autor da observação era um irredimível benfiquista.
Mas, pensando bem, talvez fosse apenas verdade que o árbitro estava a ser tendencioso a favor dos estrunfes.
«Esquinado»
«1640 financeiro»: Troikas, ingerência estrangeira e impostos — uma perspectiva histórica
Portas: “Em 2014 vamos viver uma espécie de 1640 financeiro”
Vice-primeiro-ministro compara resgate à perda de independência de Portugal para a Espanha em 1580.
O vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, criticou o líder do PS por sustentar que Portugal ficará pior no fim do programa de ajustamento, em Junho de 2014, lembrando que é nessa altura que o país vai recuperar a soberania financeira.
“Em 2011 vivemos uma espécie de 1580 financeiro. Em Junho de 2014 podemos viver uma espécie de 1640 financeiro”, disse, no encerramento do debate na generalidade do Orçamento do Estado (OE), referindo-se ao período em que Portugal esteve sob domínio espanhol.
A comparação que Paulo Portas fez mostra que o Sr. Vice pouco sabe da História de Portugal para além do que se aprendia nos programas do “historiador” José Hermano Saraiva...
Segundo as Estatísticas Históricas Portuguesas, publicadas pelo Instituto Nacional de Estatística, durante a Monarquia não constitucional(nota 1) houve várias Cortes dedicadas total ou parcialmente à criação de «impostos extraordinários». De facto, estas «extraordinariedades» ocorreram pelo menos(nota 2) em 1391–92, 1394–95, 1398 (2 vezes), 1404, 1406, 1418, 1430, 1436, 1441, 1442, 1447, 1451, 1455, 1456, 1460-61, 1471, 1475, 1477, 1478, 1482–83, 1490, 1502, 1525–26, 1535, 1544, 1562–63 e 1619.
Ou seja, no que toca aos tais «impostos extraordinários», durante a soberania nacional (concretamente, a Dinastia de Avis, por muitos considerada a mais “gloriosa” da nossa História...), Portugal recorreu a esta solução pelo menos 27 vezes, o que dá uma média de um imposto «extraordinário» a cada seis anos e meio: o que houve de mais comum (logo, de menos extraordinário) foi a criação de «impostos extraordinários»!
Em contrapartida, nos 60 anos de domínio espanhol, e ressalvando a informação indisponível, apenas por uma vez foi necessário tal.
Outro dado (atenção, Dr. Portas!): em Portugal, livrarmo-nos do «domínio estrangeiro» significou quase sempre a criação de novos e futuramente famosos impostos (a título não extraordinário): assim se passou em 1385 (criação das «sisas», renovadas nas duas Cortes de 1387) e em 1641 (criação da «décima»).
Notas:
(1) O autor chama-lhe «Monarquia Absoluta», mas penso que é um erro histórico considerar que já no século XIII (altura em que começa a cronologia apresentada) a Monarquia, por não ser constitucional, era absoluta.
(2) O teor de algumas Cortes é desconhecido ou não consensual entre os historiadores.
O amor em Portugal
— Não ficavas feliz se te saísse [o euromilhões]?
— Feliz fiquei foi quando a conheci.
A confidência, inesperada, embaraçou por instantes os comensais. O tom era rude, mas segundo se diz nada impede os brutos de amarem.
Na verdade, havia uma cumplicidade amorosa entre o casal. Corroboravam-se mútua e jovialmente na conversa animada que mantinham com o resto da mesa, nas histórias que contavam. Havia um ligeiro tom dissonante: os episódios acerca da mulher eram quase sempre elucidativos da dureza dela — eram os feitos ao volante, os feitos ao balcão, a sua resistência física ao esforço e os copos que ela aguentava —, mas quem não está disposto a dar uma oportunidade ao amor?
Riam bastante das coisas um do outro e em nova tirada repentina, como que a sublinhar o entusiasmo e o orgulho nela, ele anunciou à mesa que nessa noite pinariam.
Tudo era afeição e brejeirice e picardia. Como quando, respondendo a uma pequena divergência num relato, ele anunciou no mesmo tom folgazão, com a mesma aparente intencionalidade histriónica, que lá em casa ela apanharia. Ou quando, ela reincidindo, o eufemismo e o verbo mudaram para enfardar. À terceira originalidade da mulher ele perguntou-lhe, como antes lhe revelara o desejo sexual, se ela queria ser humilhada já ali na frente de todos.
Talvez ele estivesse, de novo, a ser apenas jocoso, certo de que o seu rude e provocador sentido de humor tinha já sido percebido por todos. Talvez a insinuação de bruteza fosse instrumental, constitutiva da persona dominadora mas apaixonada que ele interpretava.
Ou talvez ela não tivesse ensaiado mais nenhuma dissidência por ter notado que nenhum dos circunstantes contestara que apenas ela seria humilhada se enfardasse ali diante de todos. Ou onde quer que fosse, incluindo mais tarde, em casa.