O Carlitos, líder derrubado pela nossa revolução infantil, destacava-se no nosso pequeno mundo por ser o habitante do Pátio das Cantigas com mais designações alternativas: para além do diminutivo que sempre o acompanhou e da alcunha de Pinguinhas que lhe foi atribuída nas Piscinas Municipais por ter medo até da água do chuveiro, era principalmente conhecido como Sareco. (Por um curto período, foi ainda o Nugget, por razões que agora não vêm ao caso.)
O percurso etimológico que desembocou na alcunha de Sareco é algo tortuoso e merece ser explicado.
A tasca que viria a ser dos pais do Carlos Sareco pertencera anteriormente a um senhor de nome Acácio, mas comummente apelidado de Passarinho. Mudando a gerência do estabelecimento, o Rui, irmão um pouco mais velho do Nuno, logo promoveu o “trespasse” também do cognome: como a falta de à-vontade não permitia apodar directamente o casal de novos proprietários, a herança onomástica saltou uma geração, para o filho. E assim passou o Carlitos a ser o Passarinho.
(A jogada do Rui foi uma espécie de “preemptive strike” avant la lettre: o Sr. Acácio era padrinho da mãe do Rui, pelo que, a não serem tomadas medidas, não seria de espantar se a alcunha ornitológica transitasse para ele e os irmãos...)
Com o tempo, Passarinho passou a Passareco. Um pouco mais de tempo e a lei da economia ditou o encurtamento da alcunha para Sareco.
As relações entre os putos do Pátio eram em geral amenas. O mais das vezes dividíamo-nos segundo linhas aproximadamente geracionais (os nascidos nos anos setenta, os dos finais da década anterior e, já mais distantes em mentalidade e vivências, os do seu início), com alguma liberdade ou tolerância no convívio entre grupos etários: de quando em vez, éramos convidados para um jogo de Monopólio no sótão do João Luís, onde funcionava o clube a que também pertenciam o Rui e o meu irmão.
Apesar da paz habitual, por vezes, porém, as coisas azedavam; terá sido nestas circunstâncias que, num episódio que ficou famoso, o Rui acertou o passo ao Carlitos.
A violência não passou do muito moderada, eventualmente pouco mais do que uns calduços, mas era ver o Sareco descer as escadas a berrar como um desalmado, prometendo medidas retaliatórias:
— Isto não fica assim! Vais ver, vais ver... Vou dizer à minha mãe e ela vem cá e bate-te!
Detém-se a meio do caminho, vira-se e acrescenta, peremptório:
— E se ela não vier cá, vai lá tu!