sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Pihada triste

José Diogo Quintela (JDQ) assina no Público de hoje um artigo de opinião sobre a polémica à volta das declarações do ministro Rui Machete de que haverá jihadistas portugueses, a maioria raparigas, que querem desertar das fileiras do Daish.
(Ver o meu post sobre a adopção do termo Daish para designar o proto-estado terrorista surgido no Iraque e na Síria.)

Ao contrário de Ricardo Araújo Pereira (RAP), de quem li diversas crónicas, ouvi diversos comentários e vi diversas intervenções públicas — mais ou menos sérias, mais ou menos satíricas, quase sempre brilhantes —, de JDQ pouca coisa tenho lido, pelo que corro sérios riscos de injustiça no diagnóstico que agora avanço: a este “Gato”, ao contrário de a RAP, falta um pouco (para sermos simpáticos) de perna que lhe permita dar a passada que leva do humor puro e simples, com tons de nonsense, ao comentário jocoso e até sarcástico, mas certeiro.

Opina José Diogo Quintela:

Não se trata apenas de ter colocado em perigo as raparigas que se alistaram numa guerra. A inconfidência de Machete é um símbolo do desprezo deste Governo para com as condições de trabalho em que os jihadistas lusos espalham a morte na prossecução dos objectivos da organização terrorista onde são voluntários.
Os deputados da Comissão devem certificar-se que o Governo está a fazer tudo ao seu alcance para garantir o bem-estar dos nossos compatriotas terroristas. [...] Talvez fosse boa ideia enviar uma delegação da Autoridade para as Condições do Trabalho.

O texto de JDQ mostra que ao humorista falta pensamento estratégico: a sua sofisticação nesta matéria situa-se ao nível da dos intervenientes na “Liga dos Últimos” — ou, para usar uma referência mais contemporânea, ao nível da do ministro Rui Machete.

O caso Rui Machete, de resto, é deveras interessante, porque misterioso: estaremos perante um caso de discurso não filtrado pelo cérebro (aquilo que no meu Pátio chamávamos «ser boca de lavagem»), de burrice pura e simples, ou de senilidade? Pela minha parte, inclino-me para uma das duas últimas, em especial tendo em conta declarações posteriores do ministro, de que não teria «revelado a identidade de ninguém».
(Segundo as estimativas, haverá 12 a 15 portugueses nas fileiras do Daish, incluindo duas ou três raparigas. Mesmo não revelando as suas identidades, não será difícil às chefias do grupo terrorista vigiar mais atentamente uma dúzia de pessoas... Cereja em cima do bolo, tendo em conta que o ministro dos Negócios Estrangeiros revelou que os potenciais desertores seriam «dois ou três, sobretudo raparigas» — e admitindo que os jihadistas, ao contrário do ministro, sabem fazer contas —, a tarefa de descobrir os relapsos não é intelectualmente exigente, em especial para uma organização que, ainda que de cortadores de cabeças, vai além do machete.)

Mas voltemos a José Diogo Quintela: a sua ideia é, resumidamente, «Que interessa que o Daish limpe o sebo aos desertores? São todos terroristas!»
E é aí que JDQ está errado e demonstra o tal défice de pensamento estratégico: interessa, e muito.

Quem me conhece minimamente sabe que o bem-estar dos jihadistas, arrependidos ou não, é tudo menos uma preocupação minha. Mas nem só a preocupação pelo bem-estar dos outros alimenta o nosso interesse em mantê-los vivos: um desertor é uma aquisição valiosa.

Em primeiro lugar, um desertor pode revelar informação militar importante. Este, em princípio, não será o caso dos jihadistas portugueses, que, tanto quanto se sabe, terão “patente” relativamente baixa. Adicionalmente, e ao contrário do que JDQ dá a entender, não há qualquer indicação de que as “noivas da Jihad” estejam efectivamente a combater: conhecendo o que os fundamentalistas preconizam para as mulheres, o mais certo é que a participação destas se resuma ao apoio emocional dos combatentes, recompensando-os pela sua entrega à Causa do Profeta, e ao papel de parideiras; mulheres em armas, a combater, é coisa dos «apóstatas» curdos... Mas, ainda assim, o valor da informação que eles ou elas possuam só pode ser apurado se chegarmos a interrogá-los — circunstância que, médiuns à parte, requer que se mantenham vivos.

Em segundo lugar, um desertor pode ajudar a perceber como funcionam os circuitos de recrutamento dos radicais, como se processou tão rapidamente a sua adesão a uma versão tão extrema e violenta do Islão. Além de a reconstituição do seu percurso de radicalização permitir, eventualmente, chegar a “peixes” mais gordos, a simples compreensão dos mecanismos sociopsicológicos que levam à adesão à Jihad pode revelar-se valiosíssima no combate ao marketing jihadista.

Finalmente, a possibilidade de apresentar desertores da Causa é uma das melhores formas de a minar. As causas radicais vivem quase exclusivamente do monolitismo interno e da percepção de um confronto Nós/Eles. A existência de desertores entre as fileiras dos que realmente conhecem a verdadeira face da Causa — e que falam a mesma linguagem dos seus novos potenciais aderentes — será mais um trunfo no combate ao discurso radical.

Vamos abrir mão destes trunfos?

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