sábado, 13 de julho de 2013

Primeiros parágrafos…

…de um falhanço dos idos de Março

(É longo, desculpem lá ou passem à frente)


«Lembram-se do esqueleto que há uns seis meses alvoroçou a cidade? Era eu. Sei que é difícil de acreditar, até porque o esqueleto usava barba. Mas era eu. Hoje estou muito melhor, comi qualquer coisa entretanto e barbeei-me, voltei a usar roupa. Mas as fotos que viram nos jornais eram minhas. As tíbias, os fémures, os rádios, as falanges, todo o chocalhante conjunto era meu. Até o chapéu era meu. Sim, reconheço, podia ser de um cigano. Porém, era meu. Tomaram-me por um junkie, mas isso era uma acusação sem cabimento. Naquela altura eu já tinha deixado de me injectar, as agulhas partiam-se-me nos ossos. Bebia, de facto, mas não muito. Um pouco menos do que o Rasputine. Eu sei que ele era ligeiramente maior do que eu e isso faz diferença. Ok, umas três vezes maior do que eu. Sou um tipo baixo. Um baixote. Um minorca. E magro (agora já nem tanto). E louro. Se fosse moreno, teria sido mais difícil ser baixo. Era demasiado azar para se continuar vivo. Um gajo louro tem outro lustro. E depois há os olhos azuis. As mulheres quando olhavam para mim não viam um gajo baixo, estavam demasiado ocupadas a derreterem-se com o lourinho de olhos azuis. Quando finalmente se dispunham a medir-me a altura, faziam-no aos palmos e era raro passarem dos tomates. De resto, eu tinha ali uma surpresa para elas, uma a que se agarravam de mãos e dentes. Um tipo pode ser baixo e ter um pau comprido. As leis da física não o impedem. Fizeram-se testes. Eu fiz testes, na adolescência. No início, quando percebi que tinha uma coisa telescópica entre as pernas que em certas alturas não parava de crescer, assustei-me. Achei que aquilo me podia desequilibrar. Nunca a deixava crescer sem me encostar com uma mão a uma parede. Não é incomum que os putos o façam, embora nem todos limpem a parede depois. Mas fui ganhando confiança, como os funâmbulos se adaptam à vara que os equilibra no arame. Se pensam em termos gráficos, talvez estejam com dúvidas sobre a funcionalidade do sistema, mas a representação não esclarece tudo. Há os glúteos, que se desenvolvem com o crescimento. Imaginem isto: as mamalhudas não passam o tempo a cair de queixos, pois não? Bem, algumas passam, é verdade. O que quero dizer é que o nosso sistema muscular se adapta à carga com que tem de lidar. Não era um daqueles tipos com bíceps hiperdesenvolvidos porque não precisava assim muito dos braços. Isto pode deixar confuso um alferes, quando se vai para a tropa e se fracassa nas flexões na barra, mas não as mulheres. Pelo menos há vinte anos não. Entretanto tive de me adaptar, frequentar ginásios, arranjar-lhes uns bíceps que pudessem apalpar. O centro gravitacional de um corpo não muda com as épocas e os gostos, mas por vezes tem de se arranjar uns pontos de apoio para as mãos.»

Decerto alguns de vocês pensaram que é preciso um tipo descer muito na vida para se passear pelas ruas nu e com a barba por fazer, os ossos mal seguros por umas pelicas de frango depenado. Outros, pelo contrário, ficaram encantados com a publicidade que eu tive, aquilo era uma coisa que vocês podiam fazer. Afinal, toda a gente anda a tentar dar nas vistas, a desenvolver uma nova metafísica da existência: apareço, logo existo. Mas não escondo que tinha descido na vida. Tinha descido às profundezas do Inferno e não foi porque me enganasse no caminho quando tentava vernianamente descobrir o centro da Terra — não tenho a sorte nem o espírito aventureiro, ou a astúcia, de um Pedro Álvares Cabral. Se fui parar ao Inferno foi porque meti no GPS essas exactas coordenadas e obedeci com satisfação a cada directiva dada pela menina concupiscente do TomTom.

Tudo começou vinte anos antes, quando num dia solarengo de Fevereiro, desses em que nos atrevemos a mergulhar no oceano apesar do risco de síncope cardíaca, fui arrebanhado para a vida militar. Se havia alguém que não fora concebido para a tropa, era eu: o único desporto que tinha feito até à data era o sprint, quando tentava fugir do ;bullying na escola. Sobre a porta onde fazíamos fila para entrar, como estúpidos cordeiros voluntários para o sacrifício, havia uma sigla, «EPI», e só mais tarde soube que não significava «Escola Prática de Infantaria» mas sim «Entrada Para o Inferno». Claro que o Inferno ali, no átrio barroco do antigo convento, era ainda cálido, apenas chamuscava, era mais fanfarronice militar do que realidade. Tinha muito de Comboio Fantasma, onde umas figuras com insígnias e galões procuravam desempenhar o papel de almas penadas e monstros avulsos. Um tipo assustava-se e ria-se, tudo ao mesmo tempo. Os furriéis e os alferes logravam ser tão ridículos, nas suas fardas engomadas e nas suas botas luzidias, quanto certas representações naïves da morte com gadanhas ergonomicamente erradas.
A mim a tropa trazia-me entre o divertido e o entediado, mas frequentemente estava apenas irritadiço. O regulamento e os horários eram absurdos. Quando às seis da manhã acordava com o matraquear das giletes no mármore oxidado dos lavatórios dava graças aos céus por ter sido brindado com um rosto que naquela altura ainda era quase imberbe e onde a escassa penugem loura resultava invisível aos olhos de orangotango macho e míope dos graduados. Para eles, eu não tinha barba. Tinha bochechas como nádegas de gaja, onde apetecia assentar a mão, e julgavam que me incomodavam com isso. Eu ria-me como se eles tivessem contado uma anedota e eles diziam que não era para rir e davam-me um calduço. Parecia-me paga aceitável para o privilégio de me levantar seis dias por semana mais tarde do que os outros. Por vezes acordava antes do ritual da barba, porque havia uns imbecis cujo zelo pela pontualidade na parada os fazia levantar ainda mais cedo e, no seu nervosismo, não conseguiam abrir os cacifos metálicos sem parecer que os estavam a assaltar. Eles tinham a chave do seu próprio cacifo, mas abanavam-no e batiam-lhe como quem está a ser perseguido pelo Freddy Krueger e não consegue acertar com a chave na fechadura. Depois de finalmente o abrirem, não o sabiam fechar sem bater com as portas, metidos naquela sua cabeça e naquele seu mundinho onde só havia lugar para a obsessão com as horas e a obediência cega à hierarquia.
Depois de sermos admitidos naquele patético clube masculino, tinham-nos cortado ainda mais rente o cabelo e, num patamar de uma larga escadaria, fizemos nova fila para receber o fardamento, tudo nos previsíveis tons de verde azeitona, incluindo a roupa interior, as meias e os lenços de assoar (excepto o equipamento desportivo, que era de um branco pronto a aceitar as manchas de suor, e as botas, pretas como pneus novos de chaimite parafinados). Ao contrário da maioria das lojas, ali não se aceitavam trocas, pelo que éramos obrigados a lembrar na hora os nossos tamanhos ou a viver com o remorso de os ter esquecido — e com as peças demasiado apertadas ou demasiado largas. Mas ter boa memória não chegava: as botas que recebi eram do número certo, só que, numa prova de que o rigor militar é um mito, isso não significou que elas se ajustassem aos meus pés. Nas semanas seguintes, até ser autorizado a ir a casa, tive de usar em simultâneo todos os pares de meias que me calharam para conseguir caminhar sem deixar as botas para trás, e isso não favoreceu em nada a atmosfera empestada da caserna.
De resto, cedo comecei a desinteressar-me das rotinas militares. Havia um mínimo que eu cumpria, que era permanecer no quartel, fora disso não me preocupava demasiado o que indicava o menu do dia, não estava para me aborrecer com detalhes. Os militares eram, por exemplo, muito ligados à etiqueta, falsamente convencidos daquela treta de oficial & cavalheiro. Diziam que não se misturavam peças do uniforme número dois (o de saída) com o número três (o de trabalho ou operacional) e muito menos com o de ginástica. A continência só se fazia com a cabeça coberta. Não se ficava de cabeça coberta no refeitório. Nunca se pegava numa arma enquanto se envergava a alvura do equipamento de ginástica (como se assim vestidos nos tornássemos anjos, seres incompatíveis com a violência da G3). Enfim, um rol de limitações e exigências que poderia baralhar um tipo desatento como eu era. Como resultado disto, não foram raras as vezes em que apareci na parada, com o atraso do costume, embrulhado em branco-noiva quando todos estavam de verde-oliva ou vestido para ir às putas quando havia ordem de permanência de fim-de-semana.»

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